O nome é Fernanda, mas pode usar o prefixo super porque, para chegar onde está, enfrentou desde o ventre da mãe pequenas e grandes armadilhas que testaram a capacidade de resistir, de se organizar e de responder com perspicácia aos ataques da vida.
Seus pais não tiveram oportunidade de estudar, sequer de saber a importância do conhecimento para incentivar os cinco filhos a mudarem de vida. Foi a filha do meio, a determinada Fernanda, quem mudou o rumo da própria história e também do casal de irmãos mais novos. Os dois mais velhos concluíram o Ensino Médio cursando o supletivo e logo entraram para o mercado de trabalho.
Com a condição financeira difícil, ao descobrir a terceira gravidez, a mãe chegou a tomar chá abortivo. Sem efeito e arrependida, procurou um médico que a tranquilizou dizendo que estava tudo bem e o chá só iria fortalecer o bebê. Começava aí a saga da Fernanda.
A vida da família nunca foi de fartura ou de luxo. Tudo era conseguido com muito esforço dos pais. Fernanda conta que, em determinado período, a mãe trabalhou como ascensorista em um edifício comercial com vários consultórios. Nessa época, ainda bem pequena, ela lembra que eram os médicos do trabalho da mãe que davam os presentes de Natal para ela e para os irmãos.
Gaúcha, de Pelotas, Fernanda descobriu cedo o gosto pela culinária e, aos 11 anos, já cozinhava para toda a família. Os pais e os irmãos mais velhos saiam cedo para o trabalho e a avó adoentada ficava com os pequenos.
Entre os afazeres domésticos e as brincadeiras de criança, Fernanda dedicava boa parte do tempo aos estudos e sonhava em ser médica. Entrou na primeira série com cinco anos e só completaria a idade exigida em outubro daquele ano.
O Ensino Médio da escola pública que cursava era profissionalizante e escolheu contabilidade, mas não sabe dizer o porquê. Ao ver que não tinha matérias como física, química, entre outras, percebeu que não teria condições de se preparar para o vestibular e pediu insistentemente à mãe que queria estudar em colégio particular. Com as boas notas, conseguiu uma bolsa no segundo ano como promessa de aprovação e divulgação para a escola. No entanto, com um primeiro ano de ensino deficitário, teve que fazer também as matérias que faltavam no histórico escolar. Mesmo assim, terminou o “terceirão” com 15 anos.
Como nada era tão simples na vida dela, o pai a tinha registrado com três anos de diferença e sua mãe ainda não havia corrigido o erro. Com 15 anos e ensino médio concluído, seu documento provava que tinha apenas 12.
O processo para comprovar a real data de nascimento precisou de declaração do hospital, fornecida apenas por meio judicial. Foi demorado e dispendioso. Nesse período, sua mãe tinha uma copiadora em uma das salas do prédio de Agronomia, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), onde Fernanda ajudava a fazer as cópias. Esse universo foi o que bastou para aquela mocinha ter certeza que não queria parar os estudos.
Enquanto aguardava a nova identidade, decidiu fazer um curso pré-vestibular e lá foi insistir com a mãe para pagar. Recusava a resposta “não tenho dinheiro, estuda do jeito que dá”. Com persistência, conseguiu o que queria. Logo estava, novamente, em sala de aula para interromper a repetição de comportamento e se tornar a primeira pessoa da família a ter uma graduação, entre irmãos, primos, pais, tios e antepassados, disse.
Com a filha na faculdade, aos poucos, a mãe foi percebendo a importância do estudo e começou a cobrar mais dos filhos menores que também se graduaram sob a influência da irmã estudiosa.
A adolescente sabia que queria estudar, mas o quê? Diante das dificuldades financeiras, a Medicina ficou para trás. Farmácia e Psicologia foram escolhas iniciais, porém, ainda não estavam na grade curricular da universidade pública. Pediu então conselho a uma tia professora que a apresentou a Química como uma opção. E a “química” rolou desde então.
Sempre dedicada aos estudos, aos 16 anos, começou a graduação, que foi concluída em licenciatura e bacharelado pela UFPel. E se viu diante de outra armadilha da vida. Os colegas tinham feito o curso técnico em Química e ela sentia falta de saber mais. Com a graduação em período integral, tentou cursar o técnico à noite. Em seis meses, viu seu rendimento cair nos dois e decidiu se dedicar à graduação, alcançando sempre as melhores notas.
No meio do curso, amava estar em laboratórios, já sabia que queria ser pesquisadora e não se via professora. Entretanto, Rosa é apenas sobrenome, nada era flores no seu dia a dia.
Na casa dos pais, dividia quarto com a irmã mais velha que engravidou e dormia na cama de cima do beliche. Quando o sobrinho nasceu, o berço ficava ao lado da sua cama e acordava pisada pela irmã sempre que o bebê chorava.
De modo geral, a residência era movimentada e barulhenta. Tinha sempre parentes entrando, saindo, tomando chimarrão, conversando bastante, criança andando de “motoquinha” e cachorro latindo atrás. Não tinha como estudar. Ela, então, mudou o horário de pegar os livros em casa para as madrugadas. Hábito que carrega até hoje. Mesmo morando sozinha, ama o silêncio e disse que rende muito mais.
Graduada, hora de sair de Pelotas em busca de mais conhecimento. Em Santa Maria, 300 km de distância de casa, fez mestrado e doutorado e foi onde enfrentou os maiores desafios da vida até então. Morar com amigas, não conhecer a cidade e os perrengues iniciais foram até divertidos. Enfrentar um batalhão masculino no primeiro dia de aula foi assustador. Na pós-graduação, Fernanda descobriu seu poder estratégico para driblar bullying, assédio moral e sexual. A situação melhorou depois de começar a namorar. Até então, em todas as adversidades vividas, só conhecia de perto o machismo do pai. Ali, em ambiente acadêmico, sentiu na pele o preconceito e a dificuldade que a mulher ainda enfrenta para seguir a ciência.
As condutas inaceitáveis não foram compartilhadas. Fernanda sofreu em silêncio e passou por tudo sem sucumbir às pressões e atribui essa força à base familiar. Com foco no conhecimento científico, mostrou seriedade e competência, encerrou o doutorado e fala com orgulho da superação e da super ação ao enfrentar com muita dignidade a desigualdade social e de gênero.
Em concurso para docente da UFPel, escutou da banca examinadora que era muito jovem para ser aprovada. Entrou como pesquisadora na indústria farmacêutica, em Toledo, interior do Paraná, onde um colega deu a dica do concurso aberto na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Era o que ela queria!
Entre todos feitos, realizados em tão pouco tempo de vida acadêmica, a pesquisadora, que já formou mestres e doutores, quer contribuir com a consolidação da mulher na ciência e ser exemplo e inspiração para meninas que queiram ser cientistas.
Pandemia
A pandemia instaurou a jornada remota e triplicou o trabalho. Como sempre gosta de começar o dia, normalmente às 4h30 da manhã, a vice-diretora do Centro de Ciências Exatas, professora, pesquisadora, vice-diretora da Divisão de Química Orgânica da Sociedade Brasileira de Química (SBQ), noiva e mulher já estava a postos para seguir até a exaustão da noite.
A cada nova informação da doença, surgiam infinitas demandas de reorganização e incontáveis reuniões dos setores. Organizada, Fernanda administrava seu valioso tempo sem perder o foco na pesquisa.
Com o projeto Reposicionamento de Fármacos e Desenvolvimento de Protótipos de Fármacos: avaliação pré-clínica e obtenção de máscaras antivirais para o controle e tratamento da covid-19, em 2020, Fernanda ganhou um edital da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no valor de R$100 mil. Para pôr em prática, voltou ao laboratório com alunos do doutorado e pós-doutorado e já apresenta alguns resultados. O orgulho da família, virou heroína ao contribuir no combate do Coronavírus.
Ao avaliar o atual cenário brasileiro, a cientista acredita que a situação não está pior exatamente por conta da pandemia. “Apesar do negacionismo, a ciência mostrou sua importância e obrigou a revisão de aplicação de recursos. Em relação a países desenvolvidos, nossa situação é crítica. Não temos investimentos quando queremos apenas estudar, pesquisar e melhorar a vida das pessoas. É muito triste”.
Sobre sua trajetória, diz que a infância acabou cedo. Pela ligação com o irmão mais velho, aprendeu a jogar futebol e manteve como hobby até no período de mestrado e doutorado. Leva a vida leve, pratica exercícios, está noiva, adora um happy hour com amigas e é apaixonada pela profissão. A ciência precisa de mais “fernandas”. Uma mulher poderosa, que merece ser reverenciada pelo que faz e por tudo que ainda pode fazer. Aguarde.
Confira a segunda temporada do podcast “Donas da ciência”, e ouça a história da Fernanda contada por ela mesma
Donas da Ciência – T2 E2 – Fernanda Andréia Rosa – Conexão Ciência C²
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Noth Camarão
Arte: Murilo Mokwa
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior