Você já sentiu aquele prazer de comprar um ovo com a casca escura e com a gema de cor mais intensa? Eu sei que sim. Até se sentiu saudável e bem nutrido antes mesmo de tirar da sacola, imaginando que aquele produto “natural” vinha direto do campo. Chegou a fechar o olho e imaginar um sítio humilde, onde um senhor de idade tem suas galinhas e diz, com todo orgulho, que não se vendeu às modernizações que tem por aí e ainda cria seus frangos e suas galinhas da mesma forma que seus avós criavam, no fim do século XIX.
Mas, de todas as vezes que teve essa sensação, em quantas você sabia, com absoluta certeza, a procedência desses produtos? Caso não tenha essa informação, a probabilidade desses frangos, dessas galinhas ou desses ovos não serem caipiras é grande. As cores mais intensas dos ovos são resultado da alimentação em pastagens, mas elas também podem aparecer devido à adição de pigmentantes à ração daquelas galinhas que ficaram a vida toda dentro de uma gaiola ou dentro de um galpão.
Eu demorei um tempo para me recompor da quebra desse mito que viveu 35 anos comigo, então vou dar um tempo para vocês e aproveitar para deixar alguns dados: o volume de carne de frango produzida, em 2020, no Paraná, chegou a 4,49 milhões de toneladas e corresponde a 33,4% do total produzido no país. Ou seja, uma em cada três aves abatidas no Brasil, no ano passado, saiu do Paraná. O país está em terceiro lugar entre os cinco maiores produtores de carne de frango no mundo, atrás apenas da China, em segundo lugar, e dos EUA, que estão no topo.
Acho que já deu para puxar a alma de volta, então, agora, as notícias são boas. Graças ao aumento de exigências nacionais e, principalmente, internacionais de consumidores, as criações de aves no Brasil têm sido mais cobradas em relação ao sistema de produção e ao bem-estar animal, dados que são obrigatoriamente certificados e repassados ao consumidor.
Os ovos podem ter a cor que for e, mesmo assim, será possível saber quais são de galinha caipira. Além de saber se os cuidados com os animais foram respeitados segundo as normas do bem-estar animal.
Na Universidade Estadual de Maringá (UEM), existe o Programa de Pós-graduação em Produção Sustentável e Saúde Animal, que, segundo o próprio site, tem a missão de “promover a perfeita integração entre a produtividade sustentável quando se utiliza animais de produção, sempre com foco na saúde animal”.
No Departamento de Zootecnia da UEM, a professora e pesquisadora Simara Márcia Marcato atua na área de produção de não-ruminantes e é ,também, docente do Programa de Pós-Graduação em Zootecnia (PPZ), que tem como objetivo a formação de docentes, pesquisadores e profissionais especializados. No áudio abaixo, ela explica um pouco sobre os sistemas de criação das aves poedeiras (ou de postura, que são galinhas destinadas à produção de ovos). O infográfico exemplifica, visualmente, os sistemas.
Sistema de criação
Ovo Industrial (com gaiola)
Ovo industrial é o ovo de galinhas de linhagens geneticamente melhoradas, criadas em gaiolas e que recebem uma alimentação balanceada à base de insumos, como milho e soja transgênicos. As aves recebem medicamentos quimioterápicos e promotores de crescimento. O ambiente, a nutrição e a sanidade dessas aves são controlados.
Ovo Cage Free
Ovo de galinhas industriais que não são criadas em gaiolas. Elas têm ninhos, poleiros, recebem uma alimentação balanceada e ficam em ambientes com luminosidade e temperatura controladas. A ideia é prover um sistema de confinamento, mas que permita à ave expressar seu comportamento natural, com espaço para ciscar, por exemplo.
Ovo Caipira
Ovo da galinha caipira, ave de raça rústica, criada em ambiente com uma instalação fechada (aviário ou galinheiro) e também uma área aberta de pasto (piquete). A densidade de alojamento é de sete galinhas por metro quadrado no aviário e duas aves por metro quadrado no piquete. A ração não contém nenhum pigmento artificial e também se alimentam de verduras, ervas e legumes.
Ovo Orgânico
Ovo da galinha caipira alimentada apenas com insumos orgânicos, sem nenhum agrotóxico ou ingredientes transgênicos. Não podem receber medicamentos como antibióticos e promotores de crescimento. O conceito de orgânico também determina que a criação respeite o meio ambiente, sem causar danos ao solo, ar e outras culturas de produção.
Não é só a Bela Gil, chef e proprietária do restaurante Camélia Òdòdó, em São Paulo, que pode substituir os alimentos. Muitas pessoas pelo mundo, apesar de não serem vegetarianas ou veganas, estão cada vez mais conscientes e preocupadas com a procedência e com os cuidados tomados durante a criação dos animais e dos produtos derivados deles que trazem à mesa. Mas, de acordo com a professora Simara, o valor nutritivo dos ovos caipiras e dos ovos de outros sistemas de produção é o mesmo. Portanto, o motivo das exigências é a saúde do homem e do próprio animal.
Segundo Taiane Lopes, médica veterinária e responsável técnica pelo Frango Caipira do Campo, de Ivaiporã (PR), baseando-se em pesquisas já feitas pela empresa, em parceria com a UEM, um dos motivos dos consumidores escolherem a carne e o ovo caipira é saber, com segurança, que estão comendo um produto sem promotores de crescimento e produzido com cuidados que respeitam o bem-estar animal.
Mas, é claro que o paladar também fala alto. O sabor e o aspecto do produto estão entre os principais motivos de escolha. Os consumidores relatam um melhor sabor, a coloração mais intensa da gema do ovo e a carne mais firme.
Mas como saber que os animais tiveram o bem-estar respeitado? O que define o bem-estar animal em uma criação?
A partir do momento que a senciência – ou consciência de sensações e sentimentos – dos animais foi reconhecida pela comunidade científica em 2012, na Inglaterra, com a assinatura da “Declaração de Cambridge sobre a Consciência Animal”, o bem-estar dos animais passou a ser ainda mais discutido, pois, com esse reconhecimento, temos, automaticamente, um tipo de contrato social. Temos o dever de tratá-los de maneira que não sofram desnecessariamente.
Atualmente, o mundo utiliza a definição de bem-estar da Farm Animal Welfare Council (FAWC), da Inglaterra, que reconhece cinco liberdades aos animais: a liberdade fisiológica (ausência de fome e de sede); a liberdade ambiental (livre ou edificações adaptadas); a liberdade sanitária (ausência de doenças e de fraturas); a liberdade comportamental (possibilidade de exprimir comportamentos normais de cada animal) e a liberdade psicológica (ausência de medo e de ansiedade).
Segundo o Protocolo de Bem-estar Para Aves Poedeiras, publicado pela União Brasileira de Avicultura (UBA), em 2008, o termo bem-estar animal, de maneira geral, caracteriza os numerosos elementos que contribuem para a qualidade de vida de um animal, incluindo os que constituem as “cinco liberdades” da FAWC. Todos esses itens necessários para o bem-estar das aves poedeiras estão distribuídos em 23 páginas do documento.
A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), por sua vez, criou outro documento que norteia os cuidados que devem ser tomados com aves poedeiras: O Manual de Boas Práticas Para o Bem-estar de Galinhas Poedeiras Criadas Livres de Gaiola.
A pesquisadora Simara conhece poucos produtores que seguem o sistema cage free (livre de gaiola) ou free range (caipira, colonial ou “campo livre”, em tradução livre), próximos a Maringá. Um deles é Maurício Brina, em Assis Chateaubriand (PR), que, ao lado de sua esposa Kely Brina, cria cerca de dois mil frangos caipiras orgânicos, abatendo, em média, 60 por dia.
Ex-funcionário da C. Vale – Cooperativa Agroindustrial, Maurício notou a falta de produtores de frango caipira legalizados na região e resolveu abrir a Frango Caipira Delícia do Campo, em 2017. Depois de todos os processos burocráticos, o casal vende o produto orgânico certificado há dois anos.
Segundo o criador, “não é porque é uma ave para o abate, que ela precisa ter uma qualidade de vida ruim”. A preocupação com os animais vai além da criação livre de gaiola e em pastagem, o casal coloca um rádio no galpão, que fica ligado 24h por dia, e, até na hora do abate, não levam os frangos em caixas ou gaiolas.
E a preocupação com o rádio é coisa séria. Um estudo realizado pela Universidade de Bristol, na Inglaterra, concluiu que galinhas poedeiras foram ao galpão com uma frequência 159% maior nas semanas em que havia trilha sonora em comparação com os dias sem música. E parece que as aves não gostam de pop contemporâneo. Os galpões que tocavam Beethoven, Bach e Mozart eram mais visitados que os galpões com Lady Gaga e One Direction. A empresa que encomendou a pesquisa lançou um álbum no SoundCloud para “aumentar a felicidade, relaxamento e produtividade das galinhas”. Na prática, Maurício Brina diz que a música também funciona com aves de corte.
“Para ir para o abatedouro, que fica a uns 100 metros da granja, os frangos sobem em um corredor e vão para um viveiro grande, com água, onde passam a noite. Eu levo a tarde para abater no outro dia de madrugada, então, ela passa a noite no viveiro para não ficar estressada”, explica Maurício. A produção do Frango Caipira Delícia do Campo é pequena e as únicas galinhas poedeiras são utilizadas para alimentação do casal.
Depois do abate durante a madrugada, Maurício resolve questões da granja, ração e tudo que é necessário para a criação, enquanto Kely leva os produtos para os mercados e para as feiras-livres.
Já no Frango Caipira do Campo, a produção é realizada em uma escala maior que a do casal, tanto que as granjas, o abatedouro e a fábrica de ração estão em cidades diferentes, distantes de Ivaiporã, a cidade sede, 12 e 25 quilômetros. Na sede, estão instaladas cinco granjas, com oito mil aves de postura, em cada, totalizando cerca de quarenta mil galinhas. São abatidas cinco mil aves, diariamente, e alojam em torno de 70 mil pintinhos por mês. A carne e o ovo comercializados não são orgânicos, porque a quantidade de soja e milho utilizada para a ração é grande e, por isso, é convencional. Na região, não tem a quantidade necessária desses produtos orgânicos e comprar seria muito mais caro.
Ao contrário de Maurício, em Ivaiporã, o transporte até o abatedouro é feito dentro de caixas durante a noite, para serem abatidos apenas no outro dia. Quando no local de abate, as caixas ficam em plataformas com ventiladores, que também espalham água sobre as caixas, ventilando e controlando a temperatura, para que as aves não fiquem estressadas.
As aves poedeiras sob responsabilidade de Taiane também respeitam as exigências de densidade de alojamento impostas para a certificação. Dentro da granja, são alojadas sete aves por metros quadrados, enquanto no piquete, a área externa com pastejo, são alojadas duas aves por metro quadrado.
Para que as aves e os ovos sejam certificados como caipiras, livres de antibiótico, livres de gaiola ou orgânicos, tanto Maurício como a Frango Caipira do Campo devem seguir as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), criada pela Associação Brasileira da Avicultura Alternativa (Aval), além de diversos outros certificados, como o da Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (Adapar).
O preço dos produtos das duas empresas é mais caro que o preço da carne e do ovo convencional. São vários os fatores que elevam o custo, entre eles, a idade mínima de abate dos frangos, que é de 42 dias para o convencional (ou frango branco, como costumam chamar) e 70 para o criado livre de gaiola. Quase 30 dias a mais de mão de obra, ração, energia etc. Além disso, nos frangos certificados, os criadores não podem utilizar antibióticos, vermífugos e promotores de crescimento, o que exige um programa de vacinação maior e, consequentemente, mais caro.
Taiane explica que, por não poderem utilizar promotores de crescimento, eles dão aditivos naturais aos frangos, que são nutrientes probióticos, ácidos orgânicos e óleos essenciais, elevando, também, o preço. Maurício dá, além do milho e do farelo de soja, verduras e núcleo, um aditivo que fornece vitaminas, macro e micro minerais e aminoácidos. A proteína é vegetal, do farelo de soja, que é mais cara que a proteína animal dada aos frangos brancos. Além do preço do pintinho de linhagem caipira, que é mais caro que o pintinho convencional.
Para muitos consumidores dos produtos livres de gaiola, que aumentam progressivamente, o preço vale a pena, porque, além da garantia de qualidade de vida dos animais, o ovo e a carne são mais saborosos.
“Meus clientes sempre falam que quando começam a comer o meu frango, não querem mais voltar para os outros, porque eu incentivo eles a andarem para criar musculatura e a carne ficar mais firme, e dou vegetais, que deixa a carne com um sabor diferenciado”, relata Maurício Brina.
Por enquanto, as exigências dos consumidores mais conscientes por um produto criado com cuidados e que tenham certificados que garantam o bem-estar e qualidade de vida, ainda estão crescendo e se popularizando. Portanto, esse é o preço que deve ser pago, atualmente, para que seja possível comer uma carne ou um ovo com 100% de segurança de que, segundo Taiane, não tenha sido produzido com nenhum medicamento quimioterápico, não tendo, consequentemente, nenhum resquício químico.
No meio de tudo isso, outra boa notícia é que podemos ter aquela sensação de prazer e realmente sermos mais saudáveis e bem nutridos no momento em que comprarmos um ovo comprovadamente caipira. A imaginação do produto “natural”, direto do campo, continua. O local de criação e o criador serão diferentes. O sistema de produção, definitivamente, não é aquele do século XIX.
Probióticos são micro-organismos benéficos para a saúde humana.
Ácidos orgânicos resultam da atividade sintética de plantas e animais, e são usados como aditivo promotor de crescimento em rações.
Óleos essenciais (tomilho, orégano, alecrim e extrato de pimenta) são acrescentados às rações, promovendo aumento na produção de ovos, redução dos índices de mortalidade acumulada, redução do número de ovos sujos e aumento do índice de viabilidade das aves.
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Rafael Donadio
Edição de texto: Ana Paula Machado Velho e Rafael Donadio
Edição de áudio: Rafael Donadio
Edição e Roteiro de vídeo: Karoline Yasmin
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Thiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS: