Rodrigo Gontijo nasceu na maior cidade do Brasil, São Paulo, e sempre quando visitava sua avó, que era natural de Cascalho Rico, ouvia histórias sobre as passagens de jagunços pelo interior de Minas Gerais. Nascida na zona rural, ela relatava ao pequeno Rodrigo que os jagunços paravam na porta de sua casa e pediam por comida e água. O misto era de uma certa admiração e medo. De tanto ouvir os “causos” contados pelo seu pai e por sua avó, anos mais tarde, o professor e pesquisador teve contato com a obra “Grande Sertão: Veredas (1956)”, livro grandioso de Guimarães Rosa, a partir de uma edição que ganhou do próprio pai. A obra, que relata casos semelhantes, se tornou uma relíquia pessoal e um motivo para a pesquisa do professor de Comunicação.
Anos mais tarde, já doutor em Multimeios e com pesquisas sobre a linguagem cinematográfica, Rodrigo se propôs a ministrar a disciplina de Cinema Brasileiro, na Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná. Alinhando seus interesses de pesquisa, ensino e extensão, o professor articulou a memória afetiva da sua infância com a história do cinema brasileiro. Ele nos lembra que o cinema tem muitas produções que retratam o Brasil na perspectiva das grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, mas, segundo ele, cabe revisar outras formas de se pensar essa cinematografia.
Em 2020, ele passou a refletir sobre a representação do sertão em diferentes momentos do cinema brasileiro, ao mesmo tempo em que coordenava o projeto de extensão chamado Cine UEM, que tinha por objetivo promover uma reflexão sobre cinema na Universidade.
Quando pensamos no sertão, o que rapidamente nos vêm à cabeça são imagens que retratam as paisagens do nordeste brasileiro. Na literatura, porém, como no livro de Guimarães Rosa, o sertão passou a representar um estado de espírito. “Sertão: é dentro da gente”, “Sertão é o sozinho” e “O sertão é sem lugar”, escreveu o romancista.
Na história, a imensidão e a força da paisagem são elementos potentes e necessários para a experiência que acompanha os personagens que são, em sua maioria, jagunços. Geograficamente, eles passeiam no norte do estado de Minas Gerais, mas o sertão que se fala ali se liga à origem da palavra, de uma “região afastada dos núcleos urbanos e do litoral”, geralmente associadas à violência e à rusticidade: “no sertão, até enterro simples é festa” e “…sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!…”.
Vemos, assim, bastante delicadeza e afeto nas representações do sertão na literatura e cinema. Ainda que se passe no interior imenso de Minas Gerais, o próprio autor nos lembra: “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. O Sertão é quando menos se espera”.
Para o professor Rodrigo, “a ideia da disciplina foi olhar o sertão como algo muito mais amplo do que um ecossistema. Normalmente, quando pensamos no sertão, pensamos em uma região do Nordeste, que é árida, seca”, explica Gontijo. Mas a cinematografia brasileira indica que o sertão pode ser visto como um “local” de riqueza, de beleza e de força.
Veja o vídeo abaixo, que explica a origem da palavra “sertão”:
Diante disso, para organizar as produções cinematográficas para a disciplina, Rodrigo esquematizou a representação do sertão em alguns eixos: Cangaço, Cinema Novo, Adaptação Literária, Documentário, Documentário Contemporâneo, Experimentação de Linguagem, Cinema da Retomada, Filmes de Estrada, Cinema Indígena, Cinema Contemporâneo.
Um dos primeiros filmes sobre o Cangaço surgiu na década de 50, com a criação do Estúdio Vera Cruz, que tinha como objetivo produzir filmes com potencial para o mercado estrangeiro. O marco inicial dessa fase foi o filme “O Cangaceiro” (1953), de Lima Barreto, que trata da questão do cangaço, mas em um estilo americanizado, com forte influência dos filmes “western”, os famosos faroestes ou bang-bang.
Em um segundo momento, nos anos 60, o Cinema Novo vai tratar o sertão com um olhar mais voltado às questões sociais do Brasil. Nesta fase, as produções apresentavam características mais brasileiras, com narrativas que incorporavam as dificuldades do país, como a fome. As produções se valiam de recursos de linguagem que permitiam que personagens representassem instituições com atuações alegóricas em produções de baixo orçamento. Um dos maiores filmes dessa fase é “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), de Glauber Rocha.
Nos anos 90, após a extinção da Embrafilme, um órgão que financiava as produções cinematográficas brasileiras, e uma crise nas produções, uma nova fase começou e foi chamada de Cinema da Retomada. Com cortes rápidos, planos curtos e uma encenação dinâmica, os filmes idealizados neste período dialogavam com as produções televisivas da época, como é o caso de “Carlota Joaquina, Princesa do Brazil” (1995), de Carla Camurati. É dessa fase, também, o longa-metragem “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles, vencedor de diversos prêmios, entre eles o Urso de Ouro, Globo de Ouro e BAFTA, e indicado a duas categorias do Oscar. O filme começa no Rio de Janeiro e acompanha a jornada de uma mulher com uma criança pelo sertão do Brasil em busca da família do garoto.
Para o professor, é possível perceber, ainda, uma quarta fase, que surgiu a partir dos anos 2000 e vem sendo experienciada até os dias de hoje. A partir de suas próprias questões e dentro de seu lugar de fala, cineastas pernambucanos e cearenses vão produzir filmes com um novo ponto de vista sobre o nordeste. O filme que antecipou essa época foi “Baile Perfumado” (1996), de Lírio Ferreira, ainda da fase da retomada, que aborda o sertão e o cangaço de uma nova forma: a de não representar Lampião como um bandido, mas sob a perspectiva de outro personagem, o libanês Benjamin Abrahão, que acompanhava e registrava imagens do grupo. Uma produção que representa bem esse momento, e é carregado de ação, é “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça, que retrata a resistência de uma população de uma cidade aos ataques “estrangeiros”.
De um ponto de vista mais geral, a representação do sertão não é encontrada apenas no cinema, mas nas artes como um todo, como é o caso da literatura, do teatro e da televisão. Apesar de muito recorrente na cultura do país, essa representação, muitas vezes, é feita de um modo estereotipado, sendo retratado como um ambiente hostil, pobre e violento.
Pensar que o cinema é um documento de uma época é o que aponta a pesquisa do professor Rodrigo. Ele nos faz questionar sobre os investimentos na memória audiovisual do nosso país. Na proposta de Gontijo percebemos que o sertão evoca, como um lugar desconhecido, um imaginário rico e fértil. Ele tem demonstrado interesse em estudar, também, as visões indígenas do mesmo ambiente, analisando como o cinema indígena pode nos apresentar novas e diferentes concepções da paisagem e do Brasil. Ele cita produções que apresentam o sertão como poesia, como local para acontecimentos políticos, afetivos e históricos. Filmes do diretor Karin AInouz são ótimos exemplos nesse contexto: “Viajo porque preciso, volto porque te amo” (2009), realizado em parceria com o diretor Marcelo Gomes, “O céu de Suely” (2009) e produções como “Abril Despedaçado” (2001), de Walter Salles são alguns deles.
Para Rodrigo, a importância de formular essa pesquisa sobre o cinema brasileiro, a partir do sertão, vai muito além de sair das regiões centrais do país. “Eu não falo de nenhum filme sobre grandes cidades, como aqueles que retratam as comunidades no Rio de Janeiro, mas abordo essas produções que saem do eixo Rio – São Paulo, a fim de tratar de outras questões. Existem tantos filmes para falar sobre isso e que representaram, acho que de uma maneira muito mais interessante, a cinematografia brasileira, que nos levam a olhar para uma outra representação de vários ‘Brasis’., ou seja, de um Brasil profundo”
Pensando nisso, junto com os alunos e em diálogo com o Cine UEM, Rodrigo Gontijo organizou o Caderno de Cinema – vol.2, que apresenta uma edição com filmes sobre o sertão. Confira aqui esse trabalho.
O professor também explicou detalhes sobre o material, ouça o áudio abaixo para saber mais:
Diante de uma cinematografia tão rica, é essencial que essas produções sejam valorizadas pelo público, de modo que possam conhecer mais sobre essa cultura tão marcante para o país. E mais: desmistificar e conceber um Nordeste diferente, que vai além da pobreza, da seca e do cangaço.
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Valéria Quaglio, Isadora Hamamoto e Thamiris Saito
Degravação da entrevista: Thamiris Saito e Valéria Quaglio
Edição de áudio: Isadora Hamamoto
Roteiro de vídeo: Isadora Hamamoto, Thamiris Saito e Valéria Quaglio
Edição de vídeo: Thamiris Saito
Supervisão: Ana Paula Machado Velho e Tiago Franklin Lucena
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior