Há pouco tempo, durante uma das minhas caminhadas diárias com meus parceiros caninos, de pedigrees completamente desconhecidos, passei por duas senhoras na calçada, que comentavam, preocupadas, sobre o preço do óleo de cozinha, que havia aumentado nos últimos dias: “dobrou de um dia para o outro! Estamos voltando ao tempo do Collor, daqui a pouco, confiscam nossa poupança”.
Elas se referiam a um período que eu não tinha idade suficiente para lembrar. Mais especificamente, faziam referência a um acontecimento relevante para a história econômica do Brasil, quando, em março de 1990, em uma conturbada coletiva de imprensa com Zélia Cardoso de Mello, a então ministra da Fazenda do governo de Fernando Collor de Mello, foram anunciadas as medidas do novo plano econômico, o quarto em cinco anos, criado na tentativa de conter a inflação de 84% ao mês. Collor tinha acabado de ser eleito e o anúncio foi feito um dia após a posse. Ele se destacou na eleição como um outsider na política, tendo sido o primeiro presidente eleito pelo voto direto depois de quase 30 anos.
Eu ainda era uma criança e não senti os problemas causados pela mais polêmica medida desse plano, denominado Brasil Novo, popularmente conhecido como Plano Collor: o traumatizante bloqueio das cadernetas de poupança de milhões de brasileiros. Aquelas senhoras que encontrei durante a caminhada demonstraram um medo de que algo semelhante pudesse acontecer, atualmente, mas os índices ainda estão muito distantes. Naquela época, a inflação (definição no final do texto) chegava a 84% ao mês, em novembro deste ano, a inflação teve alta de 1,17%, alcançando 10,73%, no acumulado de 12 meses.
O medo dessas senhoras é causado por aquela experiência traumática de incerteza de um futuro próximo, que passaram durante o período do governo Collor e pré Plano Real, em que preços de produtos mudavam quase que diariamente e o poder de compra da população diminuía na mesma velocidade. Mas, para um especialista, esse medo é infundado: “não, essa comparação não faz sentido nenhum. Estamos com a inflação na casa dos 10%. No período pré Plano Real [anterior a 1994], nós falamos de uma inflação na casa dos 1000% (mil por cento!)”, explica o pesquisador e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas da Universidade Estadual de Maringá (PCE/UEM), Marcos Roberto Vasconcelos.
Esse é o exemplo da relevância e importância da pesquisa em Economia, pois esses pesquisadores conseguem olhar para os fenômenos passados com instrumentos e metodologias que justificam e compreendem os acontecimentos relevantes para o país e para o nosso dia a dia.
Quando discutimos, hoje, sobre o preço da carne e da gasolina, quando vemos desigualdades sociais, taxa de desemprego, o valor de revenda de um carro, quando prestamos atenção na taxa de juros de um financiamento de um imóvel ou quando esperamos para decidir sobre a compra de algum produto na Black Friday, estamos aplicando a economia na vida real. Neste momento em que a economia atravessa o cotidiano, os brasileiros mostram ao mundo que ninguém brinca melhor com a situação do país como o próprio brasileiro. “Tava bom. Disse que ia mudar pra melhor. Não tava muito bom, tava meio ruim também. Tava ruim. Agora parece que piorou”, resume, em um post, um usuário de uma rede social. “Inflação, ia mudar pra melhor, agora parece que piorou”, completa.
Sobre a comparação feita pelas senhoras, vimos que não devemos nos preocupar muito com a inflação (quando comparado ao que aconteceu na década de 90), mas o doutor Marcos ressalta um ponto excepcional e incerto que vivemos, atualmente: o baixo crescimento da economia brasileira. Ele explica que isso acontece desde o fim do ciclo de maior participação da China na economia internacional, que, inclusive, ajudou o Brasil a crescer na primeira década dos anos 2000, porque impulsionou o preço de diversos produtos que o país importava.
“Mas a China continua exportando”, podem pontuar. Sim, mas, hoje, a exportação chinesa cresce 2% ou 4% ao ano. Naquele período, o crescimento era em torno de 30% ao ano, o que “puxava” a economia brasileira e a economia mundial, o que, inclusive, também ajudou a reduzir a inflação mundial. Depois desse grande e rápido crescimento, em meados de 2010 e 2011, a economia brasileira estagnou.
Outro fato apontado como “curioso” por Marcos, que tem relação com o papel da China na inflação mundial, é que, já antes da pandemia, eles haviam anunciado que fariam uma matriz energética e uma estrutura produtiva mais limpa, o que, por consequência, causaria um aumento no custo de produção. Sendo a China, nos últimos 30 anos, uma grande indústria mundial, ela causou também uma redução no custo de produção no mundo todo. Portanto, o professor acredita que, talvez, estejamos no fim da era de inflação excepcionalmente baixa, que tivemos dos anos 1990 até 2018, 2019, pois o crescimento do custo de produção do país oriental vai aumentar o custo de produção mundial e, consequentemente, causar uma alta na inflação.
Portanto, o aumento da inflação no Brasil é resultado de uma alta da inflação mundial? Sim e não. Segundo Marcos, a pandemia e a questão econômica da China citada acima, juntas, criam um fenômeno de inflação internacional, mas que, por conta de algumas particularidades do Brasil, essa alta é amplificada.
“Aqui, nós tivemos um problema excepcional no câmbio, que, por erros políticos e até econômicos internos, a depreciação da taxa de câmbio, da moeda brasileira, é superior a depreciação que você observa em vários outros países. E aí, depreciar a moeda doméstica torna o produto importado mais caro no mercado doméstico, o que pressiona a inflação”, explica o pesquisador.
Ele também lembra e contextualiza que, no Brasil, existe um histórico de inflação acima da média mundial, então, mesmo em condições normais, ela já era um pouco acima que EUA e Europa, por exemplo. Um fato que pode ilustrar essa situação é o do barril de petróleo. O preço histórico não mudou tanto, mas, com o efeito do câmbio, o preço do petróleo e dos combustíveis estoura, o que gera um efeito cascata em toda a economia, porque tudo depende de transporte.
Portanto, caso o governo não haja efetivamente, a situação econômica brasileira pode chegar próxima ao que era no período anterior ao Plano Real, com a inflação a 40% ao mês, ou três mil por cento ao ano. Mas, Marcos considera essa hipótese muito improvável.
História econômica
O professor Marcos Roberto Vasconcelos eventualmente desenvolve trabalhos em uma área da economia conhecida como História Econômica, que ele mesmo define no vídeo abaixo:
Um dos exemplos de pesquisa realizados na área da História Econômica citado pelo pesquisador é o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de um ex-aluno da UEM, Marcelo Vilela de Carvalho Costa, do qual foi orientador. Deste TCC, eles produziram um artigo, que foi publicado no The Research, Society and Development Journal: “An estimate of the impact of budgetary institutions on the fiscal balance of South American countries: 1975-2017”.
Em sua pesquisa, Marcelo buscou responder como as instituições e regras fiscais (definição no final do texto), em conjunto com outras variáveis, afetam o desempenho fiscal dos países sul-americanos (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai, Peru, Uruguai), no período de 1975 a 2017. Países como Venezuela, Equador, Guiana, Guiana Francesa e Suriname foram descartados da análise do trabalho por falta de dados disponibilizados.
O então graduando observou alguns resultados interessantes, entre eles: impactos positivos no desempenho fiscal dos países analisados, gerados pela inflação. Basicamente, é o mesmo impacto positivo que o aumento atual da inflação tem gerado no desempenho fiscal dos governos municipais, estaduais e nacional.
No entanto, os resultados mostram que esse impacto positivo custou caro para a população desses países, assim como tem custado caro para a população brasileira, que enfrenta alta de preços da gasolina, da carne, do arroz, do óleo e tantos outros produtos, como bem perceberam as duas senhoras. O que, por sua vez, causa uma diminuição do poder de compra do consumidor e diversas consequências que estamos vendo em reportagens, como: elevação do número de pessoas em extrema pobreza, com fome e insegurança alimentar, aumento no preço do gás, levando famílias a utilizarem álcool e lenha para cozinhar, podendo causar acidentes domésticos perigosos, aumento do preço do combustível, que causa um efeito cascata que afeta toda a economia nacional, e tantos outros problemas.
Outro dado importante do trabalho, diz respeito ao impacto positivo que as instituições geram nos resultados fiscais. Por instituições, entende-se, no sentido mais amplo, todos aqueles conjuntos de regras formais ou informais, leis, normas, que delimitam o espaço de interação entre os agentes sociais ou agentes econômicos. São determinações criadas pelo homem que estruturam as interações políticas, econômicas e sociais.
Em países sem essas instituições na política econômica, as regras fiscais (teto de gastos orçamentários, por exemplo), na maioria das vezes, não são devidamente aplicadas. É o que ocorre, atualmente, com o Congresso Nacional, fragmentado, com muitos partidos, sem coalizões, cada um preocupado apenas com os próprios interesses.
“Todos os momentos da história em que a gente teve incerteza política, tivemos incerteza na economia, que retarda decisões de investimento e, com menor decisão de investimento, menor emprego, o que faz com que os agentes sejam mais preocupados com o comportamento futuro e aumentem seus preços no presente, que pressiona a inflação, que faz com que clientes domésticos ou estrangeiros transfiram recursos para o exterior, que pressiona o câmbio, que pressiona a inflação, a inflação aumenta e gera mais incerteza, a situação política fica mais conturbada”, explica Marcos, sobre o efeito cascata que a falta de um propósito comum pode causar em uma economia.
A via política é, portanto, na opinião de Marcos e Marcelo, a única forma de reconstrução desse ponto comum. Isso, de forma alguma, pode ser feito por candidatos que se dizem antipolítica e se vendem como outsiders. Fazer gestão de um país complexo como o Brasil, exige alguém com interesse, desejo e capacidade política, e não alguém que se coloque na sociedade como um não político, afirmando ser diferente dos “políticos ladrões”. “Isso é péssimo, porque não há um outro caminho em uma democracia, se não pelo caminho da discussão política”, afirma Marcos.
Assim sendo, apesar de podermos respirar aliviados por estarmos distantes de um cenário como o do início da década de 1990, Marcos acredita que, no momento, não existam razões para declarar que 2022 vai ser muito melhor que 2020 e 2021. E pior, quanto mais chegamos próximo de 2022, mais se vê que as expectativas estão se deteriorando, em grande parte, por causa da incompetência de políticos “não políticos”, que geram mais incerteza a cada dia. Esse olhar, aparentemente pessimista, é justamente o olhar de quem pesquisa e compreende as dinâmicas da História Econômica.
Glossário
Inflação
É o nome dado ao aumento dos preços de produtos e serviços. Ela é calculada pelos índices de preços, comumente chamados de índices de inflação. O IBGE produz dois dos mais importantes índices de preços: o IPCA, considerado o oficial pelo governo federal, e o INPC.
Regras fiscais
Regras que impõe uma restrição duradoura à política fiscal através de limites numéricos sobre agregados orçamentários.
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Rafael Donadio e Tiago Lucena
Degravação e edição de áudio: Rafael Donadio
Edição de vídeo: Thamiris Saito
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: John Zegobia
Supervisão de Arte: Thiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior