“Minha vida, na verdade, começou na universidade e eu nunca saí dela”. Isadora Vier, pesquisadora, professora adjunta do Departamento de Direito Público da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e criadora e coordenadora do projeto de extensão Núcleo Maria da Penha (Numape/UEM), passou boa parte da infância e da adolescência dentro da universidade, acompanhando a mãe na rotina de professora universitária. Mesmo sem entender tudo aquilo que ouvia e presenciava, o fascínio pela primeira mulher cientista com quem cruzou foi inevitável.
Apesar de ter cursado Direito, a pretensão de Isadora nunca foi o judiciário. Muito pelo contrário, naquele momento, dentro da mesma universidade onde cresceu, ela decidiu, definitivamente, que seria professora: “Para alegria ou tristeza da minha mãe, quando percebeu que eu tinha seguido a mesma carreira que ela”, brinca a pesquisadora. A batalha constante de uma universidade pública e de seus servidores, pelo Ensino Superior gratuito e de qualidade no Brasil, foi, também, uma importante influência para que ela desenvolvesse ações como ativista.
“Como mulher, eu já vivenciava essa experiência de diferentes formas, talvez não tão escancarada ou brutal, mas em contextos micropolíticos da minha vida, já era algo que me interessava e me chamava atenção. Mas o que aconteceu, especificamente, para me levar até a Lei Maria da Penha, e ao Núcleo Maria da Penha, foi o fato de a lei ser aprovada enquanto eu estava na universidade”, esclarece Isadora.
Com o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic), ela deu o primeiro passo como pesquisadora. O trabalho recebeu o prêmio Construindo a igualdade de gênero, o que lhe rendeu mais uma bolsa Pibic. Os estudos foram se complementando e, depois de formada, ela ingressou no mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), voltado para a violência contra as mulheres, de um edital da então Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM).
O ingresso para o doutorado veio logo depois, também na UFSC, com bolsa também da SPM e, mais uma vez, voltado à violência contra mulheres. A única diferença em relação à graduação e mestrado era que, naquele momento, a pesquisa seria interdisciplinar, contando com a orientação de uma antropóloga. “Foi bom para arejar um pouco as ideias e encaminhar um estudo um pouco mais complexo. Isso me estimulou a continuar na academia com o mesmo tema que eu vinha estudando desde a graduação”, explica.
O trabalho foi premiado como a melhor tese sobre a Lei Maria da Penha do Brasil, o que rendeu a Isadora uma bolsa para o pós-doutorado, no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas, da UFSC, sobre o conceito de violência psicológica da Lei Maria da Penha.
Núcleo Maria da Penha (Numape/UEM)
A criação do Numape foi uma importante realização profissional para ela e, atualmente, é também muito significativa para a universidade e para a comunidade maringaense. Efetivamente, o Núcleo começou a funcionar em 2016 e surgiu da vontade de Isadora de concretizar tudo o que havia estudado e pesquisado no seu percurso acadêmico.
O projeto atende mulheres em situação de violência doméstica e familiar ligada à Lei Maria da Penha, que estejam dentro do recorte de hipossuficiência econômica (incapacidade financeira para custear as despesas relacionadas ao acesso à justiça).
Os atendimentos jurídicos são realizados por uma equipe de quatro advogadas e duas estagiárias do curso de Direito. Mas existem, também, os atendimentos psicossociais, que são realizados por duas psicólogas (uma bolsista e uma residente técnica) e uma estagiária do curso de Psicologia. Completam a equipe, como orientadoras, a Isadora, a professora Crishna de Andrade Correa e a professora Gláucia Brida.
Um espaço que se propõe a escutar, acolher, orientar e realizar um encaminhamento especializado a mulheres vítimas de violência, teve o trabalho, durante a pandemia, quase que triplicado. “É uma epidemia dentro de uma pandemia”, define Isadora. Ela explica que foram diversos os fatores para o aumento de casos, entre eles: crise econômica, que acarreta maior uso de álcool e drogas, e redes de apoio que interromperam os atendimentos ou que passaram a funcionar remotamente, impossibilitando o contato com muitas mulheres sem condições de custear um serviço telefônico.
Pandemia
Adequação ao distanciamento, sem qualquer treinamento ou experiência para uma situação como essa, e falta de desenvolvimento de um protocolo unificado dos serviços públicos para esse tipo de atendimento foram alguns dos obstáculos das redes de apoio às mulheres. O Numape, especificamente, teve um agravante, que foi o período de degradação de estrutura e equipamentos da própria universidade, com a diminuição gradativa de repasses financeiros e descrédito e desinteresse com a ciência e a educação.
“Apesar da gente ter recebido suporte incondicional da Pró-Reitoria de Educação e Cultura (PEC/UEM), a gente sempre teve problemas durante o período de isolamento social: celulares que a gente teve que custear e disponibilizar por conta própria, por exemplo”, relata a coordenadora.
Os atendimentos do Núcleo, entretanto, nunca pararam. Todas as integrantes continuaram realizando suas funções de forma remota, até o dia de produção dessa matéria. Isadora sabe que o retorno às atividades presenciais pode ser tão duro quanto o período de pandemia, mas a determinação dela continua crescendo. “O que foi construído, não vai se perder nesse processo. Muito pelo contrário, ele só me encorajou a fazer mais pela universidade e por essas mulheres, e a me remoldar como mulher cientista dentro das possibilidades”, diz, confiante.
“A pandemia impactou imensamente a minha vida pessoal, porque coincidiu com a maternidade. A gente tinha feito um planejamento muito grande para ter a nossa filha, porque a carreira acadêmica exige bastante dedicação, mas fomos surpreendidos. Foi uma experiência de frustração muito grande, porque eu fiquei seis meses afastada, em licença maternidade, e quinze dias depois do meu retorno à universidade, a pandemia começou”, desabafa Isadora.
Ela imaginava poder investir em uma criação que, minimamente, dentro do atual contexto social, possibilitasse uma vida em liberdade para a filha, mas se viu, naquele momento, sem sequer poder sair à rua. A imagem que ela tinha da infância, circulando e brincando pela UEM, e que pensava proporcionar à filha, teve que ser reformulada. Isadora teve de aprender a construir uma relação materna que fosse livre dentro das paredes de casa.
Na vida acadêmica, Isadora, como mãe, cita outros obstáculos: a cobrança e a expectativa para que as mulheres desempenhem papéis de cuidado não só dos filhos, mas também dos familiares, além das atividades profissionais. Ou também a diferença do tempo entre licença paternidade e licença maternidade ou a expectativa social da mãe ser a pessoa a apresentar a criança como instruída, arrumada e educada para a sociedade.
Lembrando de seu imenso privilégio como mulher branca, cisgênero, de classe média e acadêmica, ela afirma: “São inúmeras as dificuldades para ser mulher em qualquer lugar desse país, especialmente neste momento. Todas nós, cada qual no seu lugar e com sua experiência de vida, aprende que, se a gente quiser construir um espaço, a gente tem que encontrar nossas ferramentas”.
Na história de Isadora, as formações, pessoal e profissional, andam juntas, uma contribuindo com a outra, encontrando não apenas suas ferramentas, mas também aquelas necessárias para a construção do espaço de milhares de outras mulheres: “A ciência me faz uma mulher mais forte, apesar de eu já me considerar uma pessoa forte por ser mulher”.
Confira a terceira temporada do podcast “Donas da ciência”, e ouça a história da Isadora contada por ela mesma
Donas da Ciência – T3 E3 – Isadora Vier Machado – Conexão Ciência C²
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Rafael Donadio
Arte: Murilo Mokwa
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior