Foi assim ao responder a um parente, de forma taxativa e excluindo qualquer outra opção considerada mais “atraente” por muitos, que Lígia Carreira demonstrou seu encantamento pela Enfermagem e tudo o que representa uma das profissões mais procuradas e ocupadas por mulheres, desde sempre. A cada visita às Mostras de Profissões organizadas pelas escolas, Lígia se identificava com o trabalho da enfermeira e a grande importância para a saúde das pessoas.
Ao relembrar seu ingresso, em 1995, na Universidade Estadual de Maringá (UEM), uma das mais importantes instituições de ensino superior do Brasil e América Latina, Lígia explica que havia uma mística em torno da profissão com sendo exercida pelas “irmãs de caridade”, com muita abnegação e generosidade. “A Enfermagem contemporânea prevalece o cuidado ao ser humano, mas tal princípio é norteado por protocolos e métodos que obedecem a rigorosos modelos científicos”, enfatiza. E foi exatamente esse viés pela ciência que a atraiu.
Nascida e criada em Maringá, cidade do Noroeste do Paraná, Lígia atribui como obra do acaso o fato de ter se formado na profissão que faz seu coração palpitar até hoje, integrar o corpo docente da UEM e, atualmente, estar na coordenação do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem.
Será que tudo é uma coincidência? Talvez não seja só uma questão de sorte ou meritocracia. Com certeza, há muito mais a ser considerado, como tudo que envolve o ser humano, ou seja: cada escolha pressupõe uma renúncia. E, quando se chega à universidade, não é diferente, diante das portas e janelas de oportunidades que se abrem para definirmos, digamos, o resto da nossa vida.
Vejamos. Dedicada aos estudos desde sempre, Lígia foi aprovada em primeiro lugar para uma vaga em Enfermagem e terminou o curso nos quatro anos curriculares, iniciando a carreira profissional logo após a formatura como tantas outras colegas. “Como hoje, naquela época o mercado de trabalho para a Enfermagem também tinha muitas e boas vagas, fazendo com que todas que obtêm o diploma consigam atuar prontamente”, afirma.
Este não era o caso de Lígia. Inspirada pelos cursos extracurriculares, de extensão e pesquisa, as atividades de iniciação científica na graduação despertaram o desejo de descobrir tudo o que a universidade tem a oferecer em termos de desenvolvimento de saberes. O envolvimento em diversos projetos não era apenas uma “felicidade de caloura”. É aí que a mulher cientista desperta no coração de Lígia e a faz canalizar todas as energias para construir uma sólida e respeitada carreira acadêmica e gestão.
O sonho de fazer uma pós e abraçar a docência era latente, mesmo não tendo outros exemplos na família. Mas o incentivo dos pais à educação de nível superior sempre houve para a prole. “A universidade pública desenvolve esse espírito crítico e investigativo, não só a graduação técnica, mas estimula a formação para a área da pesquisa. Comigo foi assim e tudo é graças à UEM”, acredita.
Em paralelo, foi, ali na graduação, encantada com a vida universitária, que Lígia começa a namorar o então estudante de História, hoje o também professor da UEM, Christian Fausto Moraes dos Santos, seu parceiro também na vida acadêmica.
Tão logo pegou o canudo, Lígia começou a trabalhar no Hospital Santa Casa, junto à unidade de diálise, ao mesmo tempo em que fazia uma especialização, na própria UEM. Ao término, aparece a oportunidade de fazer o mestrado pela Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, concluído em 2002. “Eu já estava casada e ele fazia a pós aqui em Maringá. Foi um imenso desafio estar só, mas eu queria estudar na segunda escola mais antiga do Brasil”.
Sem nunca ter morado fora de Maringá, no começo do mestrado na cidade maravilhosa, recebeu o apoio de familiares de Christian, mas depois morou na casa de uma enfermeira aposentada, que alugava quartos para alunas de pós-graduação de outras partes do país. Os esforços valeram a pena. Pouco antes da defesa da dissertação, Lígia já havia sido aprovada em concurso para professor na Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), com designação no campus de Guarapuava, região central do Paraná. O ano era 2002.
Para conciliar a docência com o doutorado, decide pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), onde aprofunda sua pesquisa em Gerontologia. Ela lembra que, ainda na graduação, a paixão pela área se deveu muito fortemente ao professor da UEM de Saúde do Idoso, Oséias Guimarães de Andrade. Emocionada, conta que, em 2006, meses antes da defesa da tese, foi removida da Unicentro para a UEM para ocupar a vaga que foi do professor Oséias, em função do seu falecimento.
Antes de encerrar o doutorado, Lígia é aprovada para um estágio na Escola de Enfermagem Cidade do Porto, em Portugal. “Foi uma experiência marcante que reflete em minha pesquisa em Saúde de idoso até hoje”. Com o doutoramento encerrado, o fim dos deslocamentos entre cidades e a estabilidade da docência para ambos na UEM, Lígia e Christian decidem investir suas energias na formação de uma família. Porém, nem todos os esforços físicos e emocionais com longos e exaustivos tratamentos foram suficientes para obter êxito. E a vida continuou para os dois, mais unidos do que nunca.
Diferente do mestrado e doutorado, em 2015, o casal viajou junto para o estágio dela no pós-doutoral na Universitat de Barcelona, Espanha, no Programa de Doctorado en Enfermería y Salud, da Escuela Universitaria de Enfermería, sob orientação da doutora Montserrat Puig Llobet.
Força de trabalho
No Brasil, mais de 65% da força de trabalho na área da Saúde são mulheres. O Sistema Único de Saúde (SUS) é majoritariamente composto pelo feminino. “Se levarmos em consideração que 80% da população brasileira dependem do SUS, vemos a relevância, a força e diversidade das mulheres, especialmente demostrado agora durante a pandemia”.
Por essa ampla representação, a área da Saúde foi uma das mais impactadas pela Covid-19, com sobrecarga de trabalho e muitas mortes, especialmente junto à Enfermagem, que envolve também os técnicos e auxiliares.
Com sua formação e experiência, Lígia atualmente é líder do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos Avançados e Pesquisas sobre Envelhecimento (NEAPE/UEM), estando diretamente envolvida em investigações voltadas para a linha de pesquisa de Enfermagem Gerontológica, além de atuar como consultora ad-hoc da CAPES, na área de Enfermagem. “O envelhecimento da população requer políticas públicas específicas para esse público e nós da universidade desenvolvemos pesquisas para ajudar nessa formulação”.
Passadas quase três décadas desde aquele longínquo 1995, quando iniciou a graduação, quem ouve Lígia falar percebe que o seu encantamento pela Enfermagem e pelas mulheres como protagonistas ainda persiste. Para colegas de docência e alunos, também é fácil perceber a alegria contagiante de quem ouviu o seu coração, aproveitou as oportunidades que se colocaram no horizonte e domou os seus demônios internos. Agora, colhe os frutos de todo seu esforço e dedicação. E os compartilha com toda a sociedade.
Confira a primeira temporada do podcast “Donas da ciência”, e ouça a história da Lígia contada por ela mesma
Donas da Ciência – T1 E3 – Lígia Carreira – Conexão Ciência C²
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Silvia Calciolari
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior