Você sabia que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, nasceu no Paraná? O ano era 1984, época de intensa movimentação política no Brasil com o movimento das Diretas Já, o que representaria o fim da ditadura e a reconquista da Democracia.
Foi durante o 1° Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, realizado em Cascavel, no oeste do Estado, centenas de representantes de camponeses, sindicatos rurais e movimentos sociais do campo, com apoio da Pastoral da Terra da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), criaram o que, hoje, conhecemos como MST.
Desde então, com altos e baixos como todo movimento de massa e de abrangência nacional, o MST se tornou uma das mais importantes organizações sociais do país, inclusive com reconhecimento internacional.
Até porque se engana quem pensa que o Movimento tem como pauta central a luta pela terra e pela reforma agrária. Claro, o ponto de partida sempre foi, e será, o enfrentamento à desigualdade no acesso às políticas públicas para os camponeses, tendo como pano de fundo a terra para uma vida digna e cidadã.
Mas vai muito além!
Para os dirigentes do MST, “se a terra representa a possibilidade de trabalhar, produzir e viver dignamente, a educação é o outro instrumento fundamental para a continuidade da luta. Os principais objetivos são a erradicação do analfabetismo nas áreas e a conquista de condições reais para que toda criança e adolescente esteja na escola. Isso implica na luta por escolas de ensino fundamental e médio dentro dos assentamentos, a capacitação dos professores para que sejam respeitados enquanto sabedores das necessidades e portadores da novidade de construir uma proposta alternativa de educação popular”.
Para dar conta desse desafio, que surge já nos primórdios do Movimento, o Setor de Educação busca dar respostas às necessidades educacionais dos trabalhadores Sem Terra nos acampamentos e assentamentos por meio da educação do campo, que valoriza os saberes, vivências e a cultura das populações rurais.
Com o tempo, apenas investir na educação básica não era suficiente. Foi aí que o MST, em parceria com outras organizações sociais, empreendeu uma luta para garantir o direito à formação técnica profissionalizante de nível médio, em cursos superiores e de pós-graduação.
Em 1997, foi criado o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), no 1º Encontro Nacional das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária, para celebrar uma década do Setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e produzir um balanço dos resultados obtidos nos diferentes níveis de escolarização até então desenvolvidos.
Educar para transformar
No Paraná, berço do MST como já vimos, encontramos vários exemplos de que a criação de políticas educacionais como o Pronera, com ênfase na educação pública, gratuita e de qualidade, está dando frutos. Neste contexto, a parceria com as Instituições Estaduais de Ensino Superior (IEES) tem sido fundamental para dar suporte à implantação de projetos de ensino, pesquisa e formação de mão de obra profissional.
Um dos exemplos é Jones Fernando Jeremias de Lima, morador de Ortigueira, região central, e graduado em Pedagogia, pela Universidade do Oeste do Paraná – Unioeste, no campus de Cascavel, em 2012. Como o primeiro membro da família a cursar uma universidade, atualmente, Jones está na coordenação do Setor de Educação do MST do Estado e tem uma visão bem prática de como a escola transformou a sua vida e das famílias integrantes do Movimento.
“Faço parte do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra desde a minha infância. Eu comecei como Sem Terrinha, projeto dentro do MST que prioriza a educação básica para os filhos de assentados e acampados”, relembra Jones.
Por isso, segundo ele, “também foi discutido, desde o período de fundação até os dias de hoje, que escola queremos. E isso faz parte da própria formação de educadores, que é importante estar aliada à formação profissional, junto às universidades para que se tenha acesso ao ciclo superior, mas também que se possa formar os Sem Terra para que eles sigam a sua luta”.
Espaço para todos
Ao longo dos 25 anos de existência, o Pronera recebeu cerca de 200 mil estudantes de todos os estados brasileiros, segundo dados do próprio governo federal. Vale ressaltar que um dos princípios político-pedagógicos do Programa é a relação da educação e do desenvolvimento territorial como condição essencial para a qualificação do modo de vida dos assentados, utilizando estratégias voltadas para a especificidade do campo. Neste sentido, também atua na capacitação e na escolarização de educadores.
Funciona assim: integrantes dos movimentos sociais buscam as universidades para implantar turmas exclusivas com seus afiliados. Para participar de um curso do programa no Paraná, por exemplo, é preciso comprovar interesse pela área de estudo e vínculo com os movimentos, indiferente se você está aqui ou em qualquer outro estado do país.
Passada a parte burocrática e sendo aceito, o universitário terá um acompanhamento pedagógico e de desempenho no curso pelo Conselho Social. Até porque os cursos, em sua maioria, são em Regime de Alternância, ou seja, fica-se um tempo na universidade cumprindo uma carga horária, às vezes até de três turnos, chegando até 60 dias; na outra parte carga horária são realizadas atividades na comunidade, geralmente no local de origem do estudante.
“Desta forma, conseguimos organizar o período de estudo e acompanhar o desempenho do militante, pois o objetivo é garantir o melhor aproveitamento educacional e que esse aprendizado volte em benefício dos acampados e assentados”, ressalta Jones.
A transformação de trajetórias de vida e a possibilidade de oferecer oportunidades a quem, dificilmente, teria outra alternativa de estudos, é um aspecto marcante da atuação do Pronera frente às mais diversas realidades encontradas nas áreas de reforma agrária, seguindo a orientação geral do programa. Neste espaço de inclusão fomentado pelo Pronera, criou-se a garantia de que os integrantes do MST pudessem ter direito à formação superior e ao sonhado diploma.
O Pronera aprofundou a relação entre o Movimento e as universidades, possibilitando uma maior parceria de forma direta e indireta com todas as universidades estaduais. “A UEM, a UEL, a UENP, a Unespar, a Unicentro, a Unioeste e até a própria UEPG, todas elas têm relações mais no campo da extensão, outras de ensino e outras, inclusive, até com acesso a cursos superiores promovidos em parceria com Incra, com o Pronera, movimentos sociais e universidades”, explica.
Ainda segundo Jones, “é bem interessante essa relação, até porque, mesmo que um dos objetivos do MST seja a reforma agrária, também faz parte da luta a gente ocupar os bancos universitários, que é um direito de todos os povos”.
Ao longo dos anos, a relação do MST com os cursos superiores tem se dado prioritariamente com a Pedagogia, para formação de professores atuarem nos espaços mantidos pelo Movimento. Mas há outros interesses, como Enfermagem, Psicologia e Medicina, na área da Saúde, bem como Agronomia, Veterinária e outros cursos técnicos profissionalizantes.
“Nosso objetivo, nos próximos meses, é fazer um levantamento de quantos assentamentos, quantas famílias já foram beneficiadas no Setor da Educação e quais as instituições parceiras”, ressalta Jones.
Educação para e pelo campo
Outro exemplo de sucesso da parceria entre universidades estaduais, MST e Pronera e da importância da valorização da Educação vem da região central do Paraná.
Djankaw Kilombola, 28 anos, é artista performática transdisciplinar, travesti e negra, moradora do Quilombo Invernada Paiol de Telha, Núcleo Entre Rios, em Guarapuava-PR. Entre tantas atribuições desempenhadas por Djankaw está a de acadêmica do curso de Licenciatura em Pedagogia: docência na educação infantil, nos anos iniciais para o contexto do campo, da Universidade Estadual do Centro-Oeste – Unicentro.
Com financiamento do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, o curso, que atende aos anseios das organizações e dos Movimentos Sociais e Populares vinculados ao campo e das populações camponesas que vivem em acampamentos, assentamentos e comunidades remanescentes de quilombos, forma o/a pedagogo/a, ou professor/a, para atuar em todas as frentes, mas com um foco especialmente voltado às necessidades do contexto do campo, por isso, leva esse nome.
“As políticas públicas, cursos, projetos e programas sociais como o Pronera, que visam promover a educação dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, bem como formar educadores para as escolas do campo [escolas Quilombolas], contribuem para a consolidação da educação do campo, em favor da erradicação do analfabetismo e garantia do direito à educação”, acredita Djankaw.
E os desafios não são poucos. Djankaw indica, sobretudo, a pluralidade de sujeitos: assentados, acampados, indígenas, ribeirinhos, quilombolas, trabalhadores e pequenos agricultores, que resistem para continuar vivendo no campo em uma relação dialógica de cuidado e coletividade com o território.
“Então, cada sujeito vai enfrentar diferentes desafios, que vão desde o não acesso à informação sobre cursos disponibilizados, vestibulares, bolsas e, principalmente, a permanência no curso, devido a ter que sair da comunidade para trabalhar, ou cuidar da roça ou mesmo dos filhos. Além dos desafios que vão se apresentando segundo às demandas de cada curso”, acrescenta a acadêmica.
A futura pedagoga ressalta, ainda, que a configuração do curso, em regime de alternância, faz toda a diferença para povos do campo, águas e florestas, pois possibilita que, esses sujeitos que têm uma relação de subsistência e cuidado da terra e do território, possam voltar da faculdade e ‘aplicar’ o conhecimento teórico em suas comunidades, alinhando com a prática e vivência social, histórica e cultural de cada território.
Espírito coletivo
O professor e vice-coordenador do Departamento de Pedagogia da Unicentro, Marcos Gehrke, que também coordena o curso de Pedagogia do Campo junto com professora Vanessa Toledo, conta que, ainda na elaboração do projeto do curso, em 2015, perceberam que os beneficiários poderiam incluir também os quilombolas. A partir de conversas com a comunidade quilombola do município de Guarapuava que não tem escolas, constatou-se a necessidade de se formar ali pedagogos.
“Dessa forma, no futuro, eles poderiam reivindicar escolas no quilombo, passando a atender os três territórios, junto com dos assentamentos e acampamentos”, relembra Marcos.
A pluralidade também merece destaque. A turma é muito heterogênea com alunos entre 18, 20 e 60 anos, sendo a maioria mulheres e, somente, quatro homens. “E a particularidade de termos um aluno trans e uma pessoa com sexualidade não definida fez emergir algumas questões no tratamento de gênero, a forma de chamar o nome social, o que, para o contexto do campo, é uma novidade muito grande. Foi conflituoso, mas foi muito interessante”, conta o coordenador.
E o curso também é heterogêneo no contexto geográfico. Há alunos de Minas Gerais, São Paulo e de diversas regiões do Paraná, que vivem em moradias mantidas com recursos do Pronera no período em que frequentam o campus. Todos recebem uma bolsa, no mesmo valor, e eles precisam administrar juntos os custos de alimentação, transporte e até viagens.
“Isso também gera conflitos e é bastante formativo, porque não é o ‘meu dinheiro’, já que eles recebem esse valor e é de uso comum. Eles possuem uma equipe de finanças, aprendem a fazer as compras, prestar contas, decidir se vão gastar mais aos finais de semana ou se vão comer só o que têm. Também são responsáveis pela gestão da vida cotidiana como a limpeza, a organização, as místicas e as atividades da universidade e culturais”, explica.
A turma, que começou com 49, perdeu muitos estudantes devido às dificuldades impostas pela pandemia e, hoje, 24 acadêmicos permanecem no curso. A formatura está prevista para outubro de 2024.
Juventude unida em consciência
Por seu caráter coletivo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra abre espaço para a diversidade em sua organização. Por isso, são bem vindas pessoas que realmente acreditam na transformação social por meio da posse da terra e da conquista de direitos sociais. E, como algumas famílias já estão na terceira geração no Movimento, como é o caso de Jones Fernando, os jovens passam a ser a renovação dos ideais dos pioneiros.
Assim, seguindo os princípios organizativos do MST, foram instituídas, há 10 anos as Jornadas Universitárias em Defesa da Reforma Agrária Popular (JURAs), que completam experiências coletivas e unem os mais diversos saberes. Ao longo desta década, a JURA se constituiu como espaço de união, resistência e de contribuição às estratégias de mobilização e pressão popular.
Realizada sempre no mês de abril, a JURA propõe ocupar os espaços democráticos das universidades e Instituições de Ensino Superior (IES) pelo país, para realizar debates, diálogos e trocas de experiências em torno da pauta da Reforma Agrária e da luta pela democratização da terra.
Atualmente, a JURA envolve mais de 70 Instituições de ensino superior brasileiras representadas por grupos, núcleos e laboratórios de estudo e pesquisas, bem como programas de pós-graduação, coletivos de trabalho, estudantes, movimentos e organizações populares do campo e da cidade, articulados em torno da compreensão da questão agrária e da construção da Reforma Agrária Popular.
Por fim, superados os desafios da pandemia e do desmantelamento das políticas públicas para a Educação nos últimos quatro anos, os movimentos sociais de massa conseguiram se manter íntegros e ativos. Isto se deu mesmo com a decisão do governo Bolsonaro em extinguir o Pronera a partir da retirada da sociedade civil da participação nos conselhos sociais e atingindo em cheio a articulação de programas que envolviam sem terras e quilombolas.
Jones e Djankaw são dois exemplos emblemáticos, ou seja, com forte significado histórico e social, que nos trazem esperança e uma visão positiva de futuro onde a Educação se torna ferramenta fundamental para transformação de vidas e, consequentemente, da própria sociedade. Assim, devemos valorizar cada vez mais iniciativas como estas para formar não só professores, mas profissionais de todas as áreas capazes de atuar em diferentes contextos, utilizando estratégias que respeitem as diferenças, contribuindo para a superação de exclusões sociais, étnico-raciais, culturais e políticas.
Avante!
Para saber mais sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a parceria com as universidades estaduais, o C² preparou o podcast Conexão MST. Dê um play e fique por dentro!
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Texto: Silvia Calciolari
Colaboração: Andressa Rickli
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Hellen Vieira e Mariana Muneratti
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS: