Sim. Infelizmente, somos um país racista com muitas desigualdades sociais e raciais onde gêneros, tons de pele e classes sociais ainda sofrem com o preconceito e a falta de oportunidades.
Para a carioca Marivânia Conceição Araújo, filha de pai metalúrgico, mãe funcionária pública e quatro irmãos, essa situação foi evidenciada desde sempre.
A família do subúrbio do Rio de Janeiro não era carente. Vivia com dificuldades como qualquer família de classe popular e sem grandes problemas. Sem estudos e com todas as dificuldades financeiras, os pais deixaram para os filhos a maior herança que puderam: o amor pelos livros e Marivânia, que sempre estudou em escola pública, foi a primeira entre os irmãos a entrar numa universidade também pública.
Marivânia conta que, até começar o ensino médio, não sabia no que iria se formar. No final do curso, meses antes da inscrição no vestibular, começou a pesquisar áreas de atuação e descobriu as ciências sociais. Investigando um pouco mais, percebeu que a sociologia, uma das áreas que compõem as ciências sociais, tinha tudo a ver com seu jeito de ser.
“Eu sempre gostei de observar, de ler e pensar sobre as coisas do mundo e a sociologia é isso. Ela olha para a sociedade, entende quais são as características e como a gente pode explicar o comportamento das pessoas em grupo. E lá fui eu prestar vestibular numa área recém-descoberta”, lembra.
E Marivânia passou no seu primeiro vestibular, na Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ), que ficava a uma hora e meia de ônibus da sua casa. “Sem trânsito e sem chuva! Porque morar na periferia de uma grande cidade e estudar longe de casa é um desafio. Falo isso para mostrar na prática as dificuldades das classes excluídas. Naquela época, a UFRJ tinha bolsa de apoio ao estudante e isso foi fundamental para minha permanência na instituição. Não era bolsa, era uma pochete de tão pequeno recurso, mas dava para pagar as passagens de ônibus, fazer cópias de material e comprar livros. No mais, meus pais se esforçavam para dar o suporte necessário para que eu não desistisse de estudar”, ressalta.
As dificuldades financeiras impedem muita gente a continuar os estudos. Dados apontam que ao final do ensino médio, ou antes até, boa parte dos jovens para de estudar para trabalhar. Para o brasileiro, negro e pobre isso é quase uma sina. A socióloga conta que é muito comum ouvir de pessoas negras mais velhas que a universidade nunca esteve em seu horizonte por falta de oportunidade.
“Eu tive o privilégio de ter pais que não estudaram mas sabiam da importância de estudar como forma de ascensão. Ficar dentro de ônibus por três ou quatro horas para ir e voltar da faculdade todos os dias é desgastante e cansativo, mas eu tinha o apoio afetivo em casa. E quantas pessoas têm essa oportunidade”, indaga.
Para ela, o Brasil só perde por não ter uma política forte que apoie e estimule o estudante.
Com o tempo, as oportunidades foram surgindo. Uma delas foi a pesquisa no Núcleo de Estudos Rurais (NUER), no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), feita com pequenos produtores de Angra dos Reis, município a 160km da capital carioca.
A socióloga diz que esse trabalho de campo foi primordial para que ela rompesse a barreira da timidez e se tornasse professora. “Até então, eu ainda pensava como ia me formar e dar aula com tanta vergonha de falar”, confessa.
Marivânia seguiu participando desse e de outros núcleos de pesquisa, descobriu a paixão pela ciência e começou a pensar seriamente na carreira acadêmica. Fez seu mestrado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em desenvolvimento agrícola.
“Era um desdobramento do que eu fazia antes. Na graduação, a pesquisa era sobre os migrantes nordestinos do Rio de Janeiro e a inserção no mercado de trabalho. Foi a minha primeira reflexão, minha primeira análise sociológica. A partir disso, entrevistei algumas pessoas migrantes nordestinas e todas elas eram casadas com migrantes nordestinos. Isso me chamou a atenção e esse foi o projeto do meu trabalho”.
A professora explica que entrou no mestrado com uma linha de pensamento e mudou o projeto inicial ao ir trabalhar com moradia e ocupação de terra no Rio de Janeiro. “A gente ia no bairro de Higienópolis, numa ocupação que abrigava uma comunidade agrícola. Apesar do nome, eles apenas moravam lá. Eles se declaravam moradores da comunidade. Diziam que ali não era uma favela. Trabalhei o conceito de identidade com esse grupo porque eles se declaravam moradores de comunidade e não favelados. Esse foi meu mestrado”.
Em 1997, antes mesmo de defender a dissertação, Marivânia soube do concurso para professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Aprovada, começou a pensar em suas pesquisas anteriores, na população negra no âmbito da constituição urbana e fez o projeto de pesquisa institucional voltado para as pessoas negras de Maringá. Esse trabalho serviu de base para o doutorado sobre ocupação no espaço urbano e as relações raciais, feito na Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), em Araraquara.
A professora conta que, quando apresentou o projeto, a orientadora falou: “aqui fala sobre representação, cidade e sobre pessoas negras em Maringá. São quase três temas diferentes. Sugiro que você faça uma opção”. Marivânia escolheu, então, falar sobre representação social e o espaço urbano de Maringá.
A tese da socióloga trata do bairro Santa Felicidade, pensando Maringá como um lugar que foi construído à beira da exclusão. Segundo a pesquisadora, “alguns autores trabalham sob essa perspectiva, então Maringá é uma cidade planejada na prancheta do arquiteto, com áreas bem definidas, espaços cívicos, centro comercial e subcentros como os bairros Alvorada, Zona 7 e o Novo Centro. Os prefeitos e o legislativo mantiveram esse desenho e essa divisão acaba colocando os grupos menores, com menor poder aquisitivo, na periferia da cidade. Eu parto desse princípio para falar da cidade organizada e excludente. Maringá não é a primeira a fazer isso, e eu peguei o Santa Felicidade como estudo de caso porque é um bairro pequeno, de três ruas apenas e com uma história triste. No trabalho de campo, fiz um diálogo entre geografia, antropologia e psicologia social. O bairro é uma realocação de moradores. A cidade se orgulha de não ter favelas, mas houve um processo de desfavelização, de desmonte dos cortiços e de habitações irregulares para outros espaços e outros municípios vizinhos como Sarandi. A história de Maringá tem seus pontos tristes e esse é um deles. O ponto mais relevante do meu trabalho é ouvir os moradores e aí entra o conceito de representação social, ouvindo, trazendo à tona e fazendo parte da filosofia que os grupos sociais têm sobre os fatos. É uma teoria sobre a realidade. A partir daí eles trabalham com essa teoria para nominar, pacificar e valorizar determinados elementos”, explica.
Revendo sua caminhada, a professora diz que, com a conclusão do doutorado, ela fechou um ciclo e um círculo. “No início, eu não sabia qual era a área que eu ia atuar e na minha família estava determinado que a gente ia estudar. A minha tese de doutorado ajuda a pensar nessa vocação de olhar para as coisas, tentar ouvir e entender o que as pessoas pensam e suas relações. Eu atendi a determinação da família e continuo a pensar nas relações raciais. Não deixo de querer saber como são essas relações no Brasil; o que as pessoas negras estão produzindo; o que causa essa desigualdade tão grande entre negros e brancos; por que a gente discute negro no brasil. Negro não é problema, e sim as relações que o racismo impõe. Isso tem que ser erradicado” decreta.
Neiab
Ser uma mulher negra e estar na universidade ainda causa espanto. A pesquisadora diz que, na época da faculdade, haviam poucos negros e muito preconceito. “Um bastante recorrente era o fato das pessoas não nos verem como alunos normais. Ficavam espantados porque estávamos na Universidade. Esperavam que a gente tirasse notas baixas, ou desistisse de estudar. Eu estudava, era privilegiada, ficava na universidade e participava de palestras e cursos. Tanto tempo se passou e a discriminação continua. Para fortalecer a luta na erradicação do racismo, há 15 anos atrás, formamos o Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-brasileiro (Neiab), da UEM e somamos junto aos vários Neiabs do Brasil para discutir sobre as relações raciais. É muito gratificante saber que pessoas que passaram pelo nosso grupo, fizeram mestrado ou doutorado com base nessas discussões na busca da inclusão dos conhecimentos das populações historicamente excluídas”, declara.
No meio científico não é diferente. Apesar do aumento de números de pesquisadores negros e de mulheres na ciência, ainda é notável a falta de reconhecimento desses profissionais.
Como contribuição na erradicação do racismo no município, o Neiab da UEM apresenta duas duas áreas de atuação. Uma aborda a educação e diversidade, com atividades, palestras e cursos. E já tem publicado dois livros sobre as questões raciais que são distribuídos gratuitamente. A outra linha de ação do Núcleo é sobre o feminismo negro nos diversos pontos da inserção da mulher na sociedade, na política, na ciência, no mercado de trabalho e na comunicação digital. Esse Colóquio acontece sempre em julho, na semana do dia 25, considerado o dia internacional da mulher negra latino americana e caribenha. O Neiab/UEM aproveita a data estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) para discutir o tema.
Marivânia se declara muito orgulhosa de participar da criação do Núcleo porque, “apesar de todas as dificuldades, nós resistimos, continuamos, produzimos e temos reconhecimento dentro da Universidade”.
Para divulgar as ações, o núcleo de estudos de relações raciais tem canal no Youtube, Instagram, Facebook e uma sala no bloco 04, sala 07, para receber aqueles que querem contribuir e trocar ideias.
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Noth Camarão
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior