Toda quinta-feira, por volta da uma da tarde, o Victor Ferrarini bate na casa da chef Stela Machado com dois ou três quilos da tilápia fresquinha. A cozinheira usa o peixe para preparar marmitas toda sexta-feira. Ela cozinha as refeições que são entregues pela Cléo para os clientes fiéis que Stela conquistou. Isso ilustra uma rede interessante de geração de renda e prestação de serviço de pequenos negócios.
O mais interessante é que a Stela diz que o produto do Victor é de excelente qualidade. Segundo o fornecedor, o peixe vem de Ouro Verde, cidade do Paraná, onde as tilápias são cultivadas em açudes. “Os filés são preparados um dia antes da entrega dos nossos pedidos, chega fresco na quarta pela manhã e, no mesmo, dia fazemos a distribuição para nossos clientes”.
Isso permite que a Stela transforme os filés em um prato “com visual e sabor atraentes. Olha como são grandes e apetitosos”, mostra a chef carioca, que mora em Maringá, Paraná, há dez anos, e trouxe seu “negócio” para casa, depois de fechar o restaurante que comandava até a chegada da pandemia da Covid-19.
O que a Stela não sabe, ou nem pensa, é que a tilápia que prepara é produto de uma história de sucesso da ciência. Começou com a chegada de uma família de tilápias da África, enviada para uma região do Brasil antes de se tornar objeto do “laboratório” do Centro de Pesquisas em Piscicultura de Floriano, uma parceria da Companhia de Desenvolvimento Agropecuário do Paraná (Codapar) com o Departamento de Zootecnia da Universidade Estadual de Maringá (DZO/UEM).
Quem nos conta essa história de melhoramento genético de sucesso é o professor Ricardo Pereira Ribeiro. Primeiro, ele definiu o que o grupo entende como melhoramento genético.
Ricardo Ribeiro lembra que iniciou o trabalho com peixes quase no mesmo momento em que a piscicultura começou a se estabelecer de forma definitiva no Paraná. Lá na década de 80. A primeira curiosidade que o pesquisador nos traz é que tudo isso é fruto da suinocultura do Estado. Como?
Naquele momento, segundo o pesquisador, a criação de porcos começou a crescer bastante pelo Paraná e no oeste de Santa Catarina. “O produtor do Estado não sabia o que fazer com os dejetos dos suínos. Dessa forma, foram construídas lagoas para a sedimentação desses dejetos, para que não fossem jogados diretamente nos rios. E essas lagoas começaram a ser usadas para a criação dos peixes. Inicialmente, eram carpas. O interessante é que, em um determinado momento, o produtor percebeu que o peixe dava mais dinheiro que o porco, que a piscicultura era um grande negócio”, lembrou Ribeiro.
Com o tempo, os produtores viram, porém, que a carpa trazia uma série de desafios. Por viverem em um ambiente com resíduos de suínos, percebeu-se que ela acumulava muita gordura e que o consumo acabava ficando restrito às regiões de produção. Foi neste momento que esses produtores “descobriram” a tilápia como uma excelente alternativa. Mas, por que um peixe que não era natural do Brasil? Por que a tilápia?
O professor Ricardo respondeu que, “essa é uma espécie que cresce bem em ambiente de cultivo, possui uma carne de excelente qualidade e se nutre de alimentos de origem vegetal. Em resumo: é uma cultura com custos baixos, um produto muito bem aceito no mercado e pode ser produzido em vários tipos de sistemas de cultivo; ou seja, possui todos os atributos para uma espécie ser escolhida pelo setor produtivo”.
Volta ao mundo
Ricardo Ribeiro explicou, também, que as espécies Tilápia rendalli e algumas do gênero Oreochromis (Tilápia do Nilo) foram trazidas para repovoar os reservatórios do Nordeste, na década de 50. Esses peixes foram escolhidos para uso nessas represas, porque são espécies de origem africana que povoam lagos em regiões com características climáticas semiáridas, similares aos estados do nordeste do Brasil.
Esses grupos de peixes também foram utilizados em outras regiões do país com o mesmo objetivo até meados dos anos 1970. Mais especificamente em 1971, o Brasil começou a se preocupar com a qualidade dessas tilápias consumidas e comercializadas. A questão é que a variabilidade genética estava comprometida e ela é uma ferramenta importante para que os peixes tenham características “saudáveis”, que garantam a sua qualidade e, consequentemente, sejam fonte de sustentação de um mercado lucrativo para produtores. Por isso, era necessário empregar o processo de melhoramento genético.
O professor Ricardo explica que, da década de 50 até 1971, a reprodução dos peixes levados para o Nordeste se deu entre indivíduos de um mesmo grupo, como se fossem de uma mesma família. Isto é, a variabilidade genética era muito baixa em função da pouca quantidade de animais e de um período grande em que se reproduziram entre eles. “Se o estoque inicial é muito pequeno, de uma origem muito pequena, o acasalamento entre animais aparentados vai degenerar a população”, reforça o pesquisador.
Foi então que se estabeleceu um trabalho mais efetivo de melhoramento genético das tilápias. Naquele momento, o Brasil importou pouco mais de 70 animais da espécie Oreochromis niloticus (Tilápia do Nilo ou Nilótica), que vieram da Estação de Piscicultura da Bouaqué, na Costa do Marfim, país do Leste da África. Os peixes foram, mais uma vez, levados para o Nordeste: para a Estação de Pentecoste, no Ceará. Esse grupo foi recebido pela Estação e os primeiros peixinhos, chamados de alevinos, “nascidos” por lá, foram distribuídos para todo o país e essa genética sustentou a piscicultura, mais especificamente a tilapicultura brasileira, até 1996.
Nesta época é que o Paraná entra neste cenário. Em 1996, o Estado se uniu a um pesquisador do Rio Grande do Sul, doutor Sérgio Zimmermann, e importou a primeira linhagem de tilápia do Nilo, da Tailândia, chamada de linhagem Chitralada (Oreochromis niloticus). O objetivo era melhorar a qualidade genética daquela linhagem vinda para o Brasil, em 1971. Eram 20 mil indivíduos, que foram distribuídos para vários produtores do Paraná e de Santa Catarina. Só que, segundo Ribeiro, não foi dada atenção adequada a essa proposta e a qualidade genética dela acabou sendo reduzida; isto é, a linha genética não foi acompanhada por nenhum Programa formal de melhoramento genético no país.
Esse quadro só começou a mudar em 2001. A UEM já trabalhava com tilápia desde 1989, fazendo acasalamentos e cruzamentos, porém esses trabalhos eram apenas de avaliação, não havia um programa de acasalamento seletivo. O que mudou foi um contato feito pelo WorldFishCenter, da Malásia. Os pesquisadores malaios queriam saber quem trabalhava com a genética de peixes no Brasil, porque tinham interesse em estabelecer contato com a América Latina e enviar as tilápias de uma nova linhagem, chamada de Gift.
A peça-chave do contato foi o doutor Raul Ponzoni, que era o responsável pelo programa de melhoramento da Gift, no WorldFishCenter. Por meio dele, foi negociada a vinda da linhagem para o país, em 2003. O processo de melhoramento genético foi viabilizado com recursos do governo federal.
“O início das atividades demorou praticamente dois anos e, quando estávamos quase desistindo, o financiamento saiu. Foram aproximadamente R$ 140 mil. Com esse dinheiro conseguimos fazer uma pequena adequação na estrutura de nossa Estação de Piscicultura em Floriano, distrito de Maringá, para receber os animais. Praticamente, a verba conseguiu pagar a importação, que, na época, custou cerca 20 mil dólares. O WorldFishCenter cobrou apenas o transporte. Vieram 600 animais, de 30 famílias da linhagem”, lembra o professor Ricardo.
O processo
Os peixes chegaram em novembro de 2004. Em abril de 2005, a reprodução desses animais começou. O processo de melhoramento funciona da mesma maneira, até hoje. São 13 gerações de seleção, manejadas da seguinte forma: ao atingirem cinco gramas os peixes ganham um microchip, implantado na cavidade abdominal, tomando-se todos os cuidados com o Bem Estar dos Animais. O implante é feito em cada peixe de forma individual. Os dispositivos servem para a identificação de cada um e são controlados por um aparelho que faz a leitura pelo computador. Para planejar os cruzamentos, os peixes são minuciosamente analisados. Aqueles que apresentam as melhores características são cuidados com atenção, individualmente.
“Os escolhidos são os indivíduos mais fortes e são selecionados para que possam ser acasalados de modo a proporcionarem o maior ganho de peso possível com a menor taxa de consanguinidade, de modo a otimizar os ganhos genéticos e ser possível manter o programa de melhoramento genético por muitas e muitas gerações”, anunciou o professor Carlos Oliveira. Ele é o responsável pelos cálculos matemáticos necessários para determinar a distância genética entre os peixes da Estação de Floriano e comanda o Grupo de Pesquisa PeixeGen, da UEM, responsável por todo o processo de melhoramento.
Em outras palavras, os pesquisadores identificam cerca de 30 características. São feitas análises em todas as gerações de peixes. As principais são as ligadas ao ganho de peso, além de: comprimento, largura, altura, rendimento de filé e conversão alimentar, que é a quantidade de alimento que o animal ingere para ganhar um quilograma de peso vivo. Enfim, há um controle do pedigree completo dos animais, desde a primeira até a última geração.
“Porém, o ganho de peso é um dos critérios mais importantes para a seleção, porque essa característica é muito significativa do ponto de vista econômico. Recebem mais atenção os animais que ganham mais peso em menor tempo de cultivo, porque vão proporcionar mais lucro. Enfim, economicamente falando, o peso é o que interessa mais para o mercado. Mas também não promovemos o acasalamento de indivíduos aparentados com mais de meio por cento de proximidade parental por geração”, avisa Oliveira.
UEM no Brasil e de volta à África
A partir de 2007, foi iniciada a distribuição de alevinos, para servirem como reprodutores para criadores de todo o Brasil e vários países da América Latina. Hoje, os pesquisadores estimam que, aproximadamente, entre 70 a 80% da genética de tilápia que há no Brasil, ou pura ou cruzada, teve origem das matrizes produzidas no Programa de Melhoramento Genético de Tilápias da UEM e está presente em todos os estados brasileiros, praticamente.
O peixe vendido pelo Victor à Stela vem de uma região que tem a influência das ações de melhoramento genético da UEM. Com esse peixe, a chef alegra a mesa de vários clientes semanalmente, sem se dar conta de que, de alguma forma, tem muita ciência envolvida na produção do filé que prepara. Porém, aquele peixe carrega o conhecimento de mais de duas décadas na UEM e de quase 50 anos, se pensarmos nas primeiras iniciativas de melhoramento genético no Brasil, registradas nos anos 70.
Quem agradece é a dona Hilda, 86 anos, e Júlia Nakagawa, que se deliciam com a marmita da Tia Stela. Júlia tem 64 anos é triatleta e, por isso, é assistida por um nutricionista esportivo que prescreve “comida de verdade”. Conheceu a marmita e indicou para a mãe. Exigente como toda boa cozinheira, Hilda diz que se rendeu à marmita da Stela pelo capricho no tempero, cardápio saudável e qualidade dos ingredientes.
Finalzinho de semana, a expressão que se houve na casa é “sextou”. “É uma alegria o nosso almoço da sexta-feira, porque é dia de tilápia, o prato mais esperado por nós, mãe e filha! Tilápia é nosso peixe preferido, ainda mais quando não tem gosto de barro. O sabor têm que ser da mais alta qualidade. Além disso, acreditamos que longevidade, saúde mental e física, alimentação, estilo de vida, estão sempre interligados e essa conexão é melhorada pela ciência”, reforçou Júlia.
Tem mais gente grata ao conhecimento desenvolvido e reproduzido pela UEM. São os alunos de graduação e pós-graduação do Curso de Zootecnia. Mais de 130 estudantes, que passaram pelo projeto. Hoje, muitos deles são professores em universidades particulares, confessionais, estaduais e federais, institutos de pesquisas, Embrapa, empresas nacionais e multinacionais, empresas de consultoria, empresas de extensão rural, indústrias, instituições internacionais de pesquisa, entre outras.
Um deles precisa de destaque. É o Humberto Todesco, um egresso do curso de Zootecnia, mestre e doutor em Melhoramento Genético, pela UEM. Ele participou durante quase oito anos do Programa das Tilápias. Neste momento, está em Moçambique, país africano. O Humberto teve o privilégio de abrir o caminho de volta da tilápia ao continente de origem da espécie. Ele atua como geneticista, em uma empresa, que viabiliza peixes de qualidade para dar combustível à economia da região onde mora. Ninguém melhor para contar essa história do que o próprio Humberto.
Para saber mais sobre a ação do PeixeGen, assista a esse vídeo da TV UEM
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto e áudios: Ana Paula Machado Velho
Artes/degravação da entrevista: Maria Eduarda de Souza Oliveira
Edição de vídeo: Thamiris Rayane Shimano Saito
Arte: Murilo Mokwa
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS: