Era mais um domingo incomum de 2021, quando Mônica saiu cedo de sua casa, na Zona Leste de São Paulo, para trabalhar no Hospital Emílio Ribas, na Zona Oeste da capital paulista. Dentre todas as atribuições no cotidiano da enfermeira, naquele que foi um hospital de referência no tratamento contra Covid-19, a experiente profissional de 55 anos ainda não sabia, mas ela seria a primeira pessoa no país a ser imunizada contra o vírus que, até então, tinha vitimado mais de 200 mil brasileiros.
Horas antes, naquele mesmo domingo, diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) se reuniram para discutir se as vacinas Coronavac (Sinovac/Instituto Butantan) e Oxford/Covishield (AstraZeneca/Fiocruz), receberiam autorização para serem aplicadas no Brasil. Mônica recebeu o imunizante Coronavac, desenvolvido pelo Instituto Butantan com matéria-prima chinesa, minutos após a aprovação das vacinas ser divulgada, em 17 janeiro de 2021.
Antes disso, outras vacinas para Covid-19 foram desenvolvidas e aplicadas no mundo, como o imunizante fruto da parceria entre a empresa farmacêutica americana Pfizer e a empresa de biotecnologia BioNTech, da Alemanha.
Profissionais de saúde, como Mônica, foram os primeiros vacinados contra Covid no Brasil. Sabendo que novas vacinas demandam, historicamente, anos para serem desenvolvidas, testadas e aprovadas, como foi possível o desenvolvimento de imunizantes para Covid-19 com tanta agilidade? A resposta para essa pergunta pode estar na importância de estudos e investimentos nessa área científica, que foi essencial para o enfrentamento de uma pandemia cruel que assolou o mundo por mais de dois anos.
Afinal, algo pode ser feito para prevenir novas pandemias?
Nanopartículas: pesquisa e inovação
O professor do Departamento de Patologia Básica da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Breno Castello Branco Beirão, faz parte e coordena o Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação (NAPI) Vacinas, um projeto que nasceu em 2021 visando produzir uma vacina para Covid-19, mas que, em pouco tempo, teve seu escopo ampliado. “Hoje, o objetivo do NAPI é formar um consórcio de desenvolvimento de imunobiológicos. De um único programa, para o desenvolvimento de uma única vacina, partimos para algo ainda maior, produzir mais vacinas para outras doenças”, destaca Breno.
Embora o NAPI tenha nascido com o nome Vacina Covid, a intenção geral da equipe sempre foi maior: fazer com que as capacidades criadas com o desenvolvimento dessa primeira vacina pudessem ser utilizadas para mais propostas. Dessas capacidades, destaca-se a funcionalização de nanopartículas com antígenos do vírus SARS-CoV-2.
A manipulação de nanopartículas surge de estudos meticulosos sobre as complexidades bioquímicas das bactérias e, segundo o professor Breno, a verdadeira novidade reside no uso inédito dessas moléculas bacterianas como componentes vacinais. “As bactérias são só a fonte de origem dessas nanopartículas, não tem bactérias na preparação vacinal. Elas geram essa nanopartícula e extraímos isso delas”, ele explica.
Partindo de uma perspectiva biológica, biodegradável e de custo acessível, incorporar essa nanopartícula em uma vacina trouxe como resultado uma solução simples e econômica, capaz de cumprir todas as funções essenciais exigidas por uma vacina eficaz.
A importância dessa tecnologia transcende algumas razões. “A primeira é que ela foi inventada aqui, como fruto do bom desempenho e da genialidade dos bioquímicos do NAPI”, defende Breno. Além disso, essa abordagem revela-se de extrema relevância já que pode ser adaptada com facilidade para lidar com as mutações do vírus causador da Covid-19 ou mesmo ser direcionada para o combate de outras enfermidades. “Esse é, sem dúvida, um grande triunfo dessa técnica. E ela é tão significativa porque a mesma tecnologia utilizada para criar uma vacina contra a Covid-19 pode ser rapidamente adaptada para o desenvolvimento de vacinas contra outras doenças, como a esporotricose”, aponta o professor.
Muito além da Covid-19
Desde o início da corrida pela vacinação contra a Covid-19, o NAPI Vacinas já reconhecia que não estaria na vanguarda para lançar uma vacina rapidamente, em resposta à pressão da sociedade para um desenvolvimento quase imediato, como a de Oxford, por exemplo. Para Breno, essa lacuna se deve à falta de desenvolvimento da capacidade necessária até então, conforme proposto pelo NAPI. “Desde o início, tínhamos plena consciência de que essa expectativa não poderia ser alcançada, uma vez que não estávamos preparados naquele momento. Nós ainda não tínhamos construído essa capacidade, como estamos propondo agora”.
A necessidade de enfrentar novas pandemias é uma das fortes justificativas por trás da concepção do NAPI Vacinas. “Existe uma certa recorrência histórica de ondas de infecção, que acontecem de uma maneira mais ou menos espaçada ao longo da história. Sempre soubemos que iria acontecer e que vão voltar a acontecer novas”, Breno destaca.
Conscientes desse ciclo, os virologistas alertam para a certeza de novos surtos, especialmente com o crescimento populacional e a intensificação dos fluxos internacionais de transporte, que aumentam significativamente o risco de propagação. No entanto, por mais importante que seja estarmos preparados para novas pandemias, são as doenças endêmicas que estão no foco do radar do NAPI Vacinas.
“O que nos interessa mesmo são as doenças que estão aqui na nossa região e não tem ninguém fazendo vacina para elas. As vacinas para Covid saíram muito rápido, porque muita gente já estava desenvolvendo antes do início da pandemia. Agora, quem mais está fazendo a vacina para a esporotricose, por exemplo, que afeta o Paraná inteiro?”, questiona Bruno.
A esporotricose é uma doença tropical causada pelo fungo Sporothrix brasiliensis, que mesmo sendo de origem brasileira e um problema no Paraná, Breno nota a ausência de atenção e de iniciativas para desenvolver uma vacina contra esse mal, o que destaca a importância da atuação do NAPI Vacinas.
Como pode uma vacina ser sustentável?
O professor Breno aponta que vacinas costumam ser desenvolvidas utilizando métodos ‘químicos’, como agentes inativantes para eliminar bactérias e vírus, visando a preservação do patógeno inativado. No entanto, muitos desses inativantes podem ser tóxicos para os seres humanos, causando inflamações e, consequentemente, gerando debates e alimentando movimentos antivacina. “Na ciência, evitamos usar o termo ‘químico’ de forma genérica, até porque tudo é, de certa forma, químico. No entanto, esses agentes inativantes podem sim apresentar certo grau de toxicidade”, esclarece Breno.
Ele acrescenta que existe uma crescente demanda social por simplificar a formulação das vacinas, para minimizar o desconforto sentido pelas pessoas e reduzir as objeções relacionadas à percepção de excessiva complexidade ‘química’ vacinal: “muitas dessas campanhas contra a vacinação usam argumentos de que a vacina é muito ‘química’ e extremamente tóxica, o que não está correto, mas serve de base para tais argumentos”.
Essa abordagem mais sustentável na produção de vacinas, apontada pelo professor, busca utilizar materiais biológicos, como as nanopartículas apresentadas anteriormente, que são derivadas da fermentação da cana-de-açúcar, que se alinha com os princípios da sustentabilidade e atende a demanda por produtos mais seguros e ecologicamente conscientes.
O futuro do NAPI Vacinas
Durante as várias fases da pandemia de Covid-19, entre 2020 e 2022, os serviços essenciais operaram conforme normas estabelecidas pelos governos estaduais e municipais. O NAPI Vacinas enfrentou desafios desde o início de sua formação, em 2021, sendo a pandemia apenas um desses obstáculos. “As dificuldades básicas de trabalhar na pandemia existiram, mas eu acho que todos sempre se sentiram muito privilegiados porque os cientistas têm um pouco disso, de serem muito apaixonados pelo que fazem”, aponta Breno.
Para o coordenador do NAPI, a operação da pesquisa pública é o maior enfrentamento diário: “aqui nós temos os mesmos desafios da maioria das universidades públicas brasileiras, muita morosidade e dificuldade em, de fato, começar as pesquisas, porque tem mil passos antes que tudo isso aconteça. Isso é uma realidade da burocracia que é inerente a todas as instituições públicas do nosso país”.
Apesar das dificuldades, o NAPI recebeu amplo destaque na mídia devido ao substancial investimento recebido. No entanto, Breno ressalta a responsabilidade de garantir que esses recursos sejam devolvidos à população na forma de avanços científicos tangíveis, como uma vacina. “Embora ainda não tenhamos alcançado a tão esperada vacina na UFPR, estamos comprometidos em devolver à sociedade todo esse investimento a médio prazo e contra mais doenças”, afirmou.
Uma vacina veterinária já está sendo testada pelo NAPI, uma vez que desenvolver novos produtos é a prioridade, justamente para demonstrar que as nanopartículas podem servir no combate a várias doenças. “Escolhemos uma vacina veterinária porque é possível testar na população alvo sofrendo da doença, com maior agilidade. Estamos partindo para duas vacinas contra doenças importantes para a saúde pública, que são a raiva e a esporotricose”, revela Breno.
Com o fortalecimento do NAPI e o desenvolvimento de pesquisas e vacinas, as oportunidades futuras são promissoras, graças ainda a parcerias da UFPR com instituições como a Fiocruz Paraná e o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP).
Apesar dos desafios, há uma melhoria gradual na infraestrutura de trabalho e pesquisa, embora Breno enfatize a necessidade urgente de desburocratizar o ambiente de trabalho público. “Esse é o grande desafio: tornar o ambiente de pesquisa mais ágil e eficiente, para podermos continuar avançando em direção a soluções inovadoras que beneficiem a sociedade”, concluiu o professor, salientando a importância de discussões públicas sobre o tema.
Além de se destacar como uma notável iniciativa científica, o NAPI Vacinas se destaca como um pilar fundamental no compromisso com a inovação, sustentabilidade e bem-estar da sociedade. Impulsionados pela pesquisa pública e pelo desenvolvimento de vacinas, a equipe do NAPI trabalha incansavelmente para forjar um futuro mais saudável e seguro para todos.
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Texto: Guilherme de Souza Oliveira
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Camila Lozeckyi e Mariana Muneratti
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
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