Muitos pesquisadores já escreveram sobre o rádio e sua linguagem, que mistura elementos sonoros diversos: a voz, a música, os efeitos sonoros e o silêncio. Mas poucos se atêm ao fato de que esta voz tem personalidade e é ela que provoca a interação entre as “mentes” de comunicadores, jornalistas e ouvintes. Sem ela, o podcast, a reportagem e todas as outras formas de organização de mensagens sonoras não existem de fato.
Outro dia, achei esse texto que produzi no meu doutorado, que traça um panorama sobre a força da voz no radiojornalismo. Já faz tempo que escrevi, defendi a tese em 2007, mas a discussão não fica velha, porque o som a cada dia ganha novos formatos nas tecnologias de comunicação que se multiplicam no ambiente digital.
Daí, resolvi publicar, aqui no C², essa grande viagem que fiz sobre o rádio, quando era professora da disciplina, no curso de jornalismo de uma universidade particular. A ideia é mostrar a capacidade evocativa1 da palavra no universo radiofônico. O texto foi inspirado em um fato. Num aeroporto, no meio da confusão da sala de desembarque, um homem perguntou o nome de uma das passageiras ao seu lado, que conversava com o parente que veio lhe buscar. Mal ouviu a resposta, disse que já sabia, porque “a voz e a forma convincente de falar que ele ouve no programa de radiojornalismo, todos os dias pela manhã, são inconfundíveis”.
Essa passageira era eu, que fui abordada por um senhor. Experiências como estas marcam a vida profissional de uma radiojornalista. Principalmente, por se repetir mais de três vezes, quantidade que dizem ser normal, aceitável e não mais coincidência.
Estas situações nos põem a pensar sobre o poder da fala, a capacidade das pessoas envolverem emocionalmente outras, mesmo em situações como um programa de rádio em que se pretende apresentar, discutir e analisar fatos pelo viés jornalístico. Enfim, é a voz e como ela é usada que promove o rádio como meio de comunicação.
História
Na história da tecnologia radiofônica, temos três fases. A da radiotelegrafia, quando os sinais sonoros, em código Morse, eram disseminados usando as ondas eletromagnéticas, sem a utilização de fios entre dois pontos; a radiotelefonia, na qual sons eram transmitidos em ondas eletromagnéticas entre dois pontos, em duas vias; e a radiodifusão, por meio da qual emite-se e recebe-se sons de diversas naturezas (a emissora), que partem em ondas eletromagnéticas, de um ponto para todos os outros onde houver ouvintes equipados com receptores.
Esta última tecnologia é que interessa discutir aqui. Porque é ela que vai viabilizar o surgimento do rádio como veículo de comunicação de massa. Oficialmente, foi só em 1906 que se deu a primeira transmissão radiofônica de voz no mundo, realizada pelo americano Lee De Forest. Diz-se oficial, porque a história do rádio no Brasil conta que, no final do século XIX, o gaúcho Padre Roberto Landell de Moura começou as pesquisas dele sobre as ondas de rádio, transmitindo, em 1892, pela primeira vez, a voz humana, em Campinas.
Mas em nenhum destes dois momentos se dá, ainda, o surgimento da radiodifusão sonora. Isso só vai acontecer em 1920, quando é criada a primeira rádio no molde como conhecemos hoje. A emissora surgiu de uma experiência de Frank Conrad que, a partir da sua casa, na Pensilvânia (EUA), começou a fazer transmissões experimentais. Muito habilidoso, desenvolveu o próprio microfone e, em pouco tempo, suas conversas ganharam repercussão. Ele começou a receber cartas de ouvintes que o sintonizavam, ainda com rádios galena, elogiando sua atuação e as músicas que ele colocava no ar com a ajuda do dono de uma loja de discos da sua cidade, que emprestava as obras em troca de ter a empresa citada no ar.
O sucesso foi tanto que, em pouco tempo, a Westinghouse Eletric and Manufacturing Company cria, nos mesmos moldes, a primeira rádio americana, a KDKA, que entra no ar em 2 de novembro de 1920.
Esta história reforça a importância da voz e da existência de alguém que fala para o surgimento do rádio como veículo, como meio de comunicação utilizado com diversos objetivos, inclusive, para a atividade jornalística, foco das discussões aqui.
Voz e vínculo
Mas é preciso contextualizar a voz na vida de qualquer indivíduo, antes de dar prosseguimento às considerações sobre ela na produção radiojornalística.
Por meio da voz da nossa mãe, temos o primeiro contato com o mundo. Voltemos ainda a um passado mais distante, lembrando que o desenvolvimento das civilizações sempre andou junto com a evolução da capacidade do homem de se comunicar. E a voz e a elocução sustentaram a comunicação, inicialmente, por meio de grunhidos que, sistematizados, se transformaram em linguagem. Esta última foi sendo aprimorada na mesma proporção que se complexificavam a sociedade, as cidades, os aglomerados urbanos.
Uma quebra neste processo evolutivo se dá com o surgimento da escrita, num momento em que os povos começavam a praticar relações comerciais. Até o fim da Idade Média, porém, esta comunicação estava restrita a um pequeno grupo de letrados. É na linguagem oral que ainda vai se estruturar toda a tradição. Ela é que vai ser fator de agregação social e das manifestações culturais.
Mesmo com a invenção de Gutemberg, que desenvolveu a tipografia, os livros e as primeiras edições de jornais e revistas giravam nas mãos de nobres letrados (que não eram muitos) e do Clero. A “Letra e a voz”, livro de Paul Zumthor, descreve muito bem esta história, apontando que a “literatura” medieval é toda estruturada para ser dita, falada. Eram os textos ditos que lastreavam toda a comunicação social, promoviam os vínculos da cultura.
É importante frisar que, quando se fala em comunicação, estamos nos referindo à uma iniciativa de interagir com o outro no sentido de mover alguém a ouvir, a prestar atenção às mensagens que colocamos no mundo.
Norval Baitello, que foi meu professor no doutorado, propõe que ouvir é trazer a atenção de alguém para o que nós dizemos e mostramos. Ele amplia a noção de ouvir para explicar como qualquer elemento disponível no universo da mídia pode nos fazer mergulhar em seu significado a partir do momento que consegue mexer com a nossa essência. Comunicação não se dá, então, só pela emissão de mensagens, mas no momento em que alguém aceita, apreende, se atenta para o conteúdo que disponibilizamos no mundo.
O rádio ilustra bem esta proposição de um envolvimento profundo entre a mensagem e o indivíduo/ouvinte, que Baitello batizou de vínculo. A história deste suporte mostra como o veículo foi capaz de mobilizar famílias inteiras durante os seus anos de ouro, no Brasil, e no episódio da transmissão da peça radiofônica Guerra dos Mundos, realizada por Orson Welles, nos Estados Unidos, em 1938, que deixou meio país acreditando que a Terra estava sendo invadida por extraterrestres.
Tecnologia
Naquele tempo, o rádio era o principal meio de comunicação de massa e estava no meio da sala, como temos agora a televisão, atingindo todas as pessoas de uma família, que se reuniam em volta do aparelho receptor. Hoje, o modelo é diferente. Além de existirem outros meios extremamente atrativos, pode-se ouvir rádio em qualquer lugar, resultado do surgimento, em 1947, dos transistores, tecnologia que substituiu as enormes e dispendiosas válvulas, reduzindo o tamanho dos receptores e tornando-os portáteis. Tudo isso sem falar na transmissão sonora proposta pelo universo digital.
Nesse novo ambiente, o desafio de criar mensagens e conseguir que elas sejam realmente ouvidas é maior, pois o rádio deve falar a cada um dos ouvintes. O vínculo é estabelecido com cada um, que pode estar no meio do trânsito, dentro do carro, pode estar digitando um texto no computador ou até executando tarefas domésticas e trabalhando numa empresa.
É aí que entra a capacidade de envolvimento provocada pela mensagem jornalística que se dá a partir da voz de alguém que a concretiza, a partir do que se chama de elocução, a palavra dita. “A voz é um meio sonoro que desperta a capacidade evocativa da palavra”, ela é um “gesto sonoro”, como propõem as considerações de Werner Klippert, no livro traduzido por George Bernard Sperber, “Introdução à peça radiofônica”.
No universo jornalístico radiofônico a palavra ganha expressão com a fonação e interpretação na voz do comunicador. Este último não apenas lê, interpreta o conteúdo das mensagens escritas, também, comenta, entrevista, analisa, enfim, fala informalmente ao microfone.
Esse processo gera em quem ouve a sensação de que está participando de um diálogo, apesar de não poder responder diretamente a quem lhe fala. Essa incompletude provoca o ouvinte a se tornar ativo, ele vai complementar o diálogo com sua imaginação. Através da palavra, quem ouve cria imagens em sua mente – imagens interiores. As imagens mentais vão comportar sensações, emoções, relações afetivas.
Neste movimento de interação é que se dão os vínculos propostos por Baitello e que vão explicar aquele encontro de jornalista e ouvinte no aeroporto, pessoas tão íntimas que nunca se viram.
Em outras palavras, está concretizado o vínculo.
Nova era do rádio
Num mundo onde a imagem é sedutora, mas ao mesmo tempo invade a escolha de se estabelecer ou não contato (vínculo), pois se dá a ver excessivamente em qualquer situação do cotidiano, o ouvir torna-se um modelo de interação alternativo e menos invasivo e mais contextualizado, já que propõe e não promove a interação emocional com aquele que se permite ouvir.
Comunicadores populares falam das coisas do cotidiano, utilizando o humor e entrevistas informais com “celebridades”, abrindo espaço, ainda, para a participação do ouvinte. A vida urbana, que exige que o indivíduo passe quase o dia todo fora de casa, leva-o a procurar informação e entretenimento nas produções sonoras. Ele procura contato com o mundo de uma forma que não precise utilizar as mãos, ocupadas com as tarefas profissionais ou com o volante; quer ouvir o outro. Ligando-se ao veículo, liga-se à vida.
O mundo está ávido por ouvir o outro, procura a conversa, o diálogo, a interação. E estes detalhes ganham maior dimensão quando a voz que surge do rádio ou qualquer outro dispositivo se enche de personalidade, por meio de jornalistas/comunicadores envolventes, mas que conseguem demonstrar sua capacidade profissional e humana, no momento de conduzir a interlocução com as pessoas que entrevista, de ler os textos pré-produzidos, de traduzir as notícias para quem ouve.
Isso pode explicar a imensa quantidade de podcasts que invadem diariamente o universo digital. A voz reforça sua importância e seu peso nas conversas despojadas que fazem cada vez mais parte dos programas jornalísticos, de entretenimento e até científicos, na web.
Voltamos à voz, ao diálogo, à elocução, aos vínculos. Nestes elementos é que está o diferencial da mensagem sonora. Pergunte às igrejas e aos políticos o que significa o poder do rádio e eles vão explicar porque são detentores de 80% das emissoras do País.
Essa alquimia de emoções que se dá na radiodifusão sonora pode ser vista como a arma dos doutrinadores eletrônicos, que têm o dom da palavra ideológica. Mas, também, podem ser o prêmio daqueles que dedicam a vida profissional ao diálogo no radiojornalismo, se entregam ao encontro diário com o ouvinte, aqueles que, mesmo distantes fisicamente, confiam ao comunicador suas dúvidas, seus anseios, suas alegrias e suas lutas.
Por isso, não há dúvidas de que estas pessoas que realmente ouvem são capazes de identificar, em qualquer circunstância, a voz de quem lhes fala e à qual dedicam profunda confiança, selaram o mais profundo dos vínculos: a cumplicidade. Essa voz, que é dita, será reconhecida em qualquer lugar e momento, mesmo no barulhento saguão de desembarque de um aeroporto.
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Texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Silvia Calciolari
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
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A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:
Glossário
- Evocar – Chamar à memória, reproduzir na imaginação; lembrar, recorrer. ↩︎