A história das conquistas das mulheres, ao longo do tempo, demonstra que as vitórias vieram às custas de muita luta e resiliência, permeadas por grandes doses de consciência de que o sol nasce para todas e todos. E como tudo na vida de uma mulher não vem fácil, tem que ser ‘arrancada’ na base da disputa de ideias e confrontos de modelos culturais.
O Conexão Ciência revisita algumas protagonistas e etapas emblemáticas para contar uma fração do que foi a conquista do voto feminino e a disputa por espaço nas esferas do poder. E já avisamos, é uma história repleta de glórias, das quais muitas ainda estão por vir.
Em 24 de fevereiro de 1932, o então presidente Getúlio Vargas assinou o Decreto 21.076, que regulava as eleições em todo o país. A novidade na norma era que, pela primeira vez na história política brasileira, entre os cidadãos maiores de 21 anos e alfabetizados autorizados a votar e serem votados, estavam as mulheres. Para elas, o voto era facultativo, mas foi o princípio de uma jornada pela igualdade.
Para entender como foi possível o Brasil ‘permitir’ o voto feminino por decreto há 93 anos, é preciso rememorar partes do caminho das mulheres por cidadania plena e a luta por igualdade de direitos pelo mundo.
A história mostra que os primeiros movimentos neste sentido coincidem com a Revolução Francesa (1789 e 1799), quando a igualdade passa a ser a palavra de ordem. E notem: são várias as mulheres que, ao longo da formação do estado moderno, ocuparam posição de poder e destaque, mas sempre herdeiras, e seguidoras, do capital político de suas famílias num sistema monárquico. Porém, desde aquela época, o que se desejava era que a mulher fosse um indivíduo político e autônomo em suas decisões, capaz de interferir na vida social.

Com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lançada em agosto de 1789, a definição de que todos os homens nasciam livres e com direitos iguais estabelecia um conjunto de liberdades fundamentais nas quais nenhum governante, sob qualquer motivo, podia privar o cidadão de ser livre, ter propriedade, ter segurança e de resistir à opressão.
Já no anúncio da Declaração, mulheres atentas aos acontecimentos políticos começaram a se posicionar, a partir das ideias do documento, pela aplicação do sexo feminino neste contexto. E foi pelas mãos de Olympe de Gouges, em 1791, que foi publicada a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, uma defesa do sufrágio feminino e das ideias que considerava justas em termos de igualdade de direitos.
Olympe de Gouges, pseudônimo de Marie Gouze, foi uma dramaturga, ativista política, feminista e abolicionista francesa com relevante atuação na Revolução Francesa. Para ela, as mulheres deveriam usufruir das mesmas oportunidades de trabalho, já que pagavam impostos como os homens. Ponderou também que, se as mulheres não fossem ouvidas na hora em que as leis eram feitas, tais leis não teriam validade. Olympe sustentava ainda que todas as mulheres deveriam receber educação de qualidade de modo a serem boas cidadãs. A autora era sensível ao sofrimento dos escravos levados da África para os domínios coloniais franceses e defendia a abolição imediata da escravidão.
Por suas ideias e opiniões pioneiras, Olympe foi uma das muitas mulheres guilhotinadas durante a Revolução Francesa, entre outras que viveram ao longo da história humana na terra.
Confronto de ideias
Muitas mulheres passaram a ser perseguidas por seus posicionamentos revolucionários. Porém, ali estavam expostas as bases do movimento feminista que mobilizou cidadãs durante os séculos seguintes na busca pela cidadania. São tantas as protagonistas nessa luta que seria impossível nomear aqui. Porém, a escritora inglesa Mary Wollstonecraft (1759-1797) merece destaque por sua, digamos, ‘audácia’ ao confrontar o pensamento vigente.
Impensável na época, imagina existir uma mulher, escritora e filósofa respondendo às críticas que Jean Jacques Rousseau fizera às mulheres na obra ‘Émile’, ou à educação, em 1762. Muito lido e respeitado na Europa, o‧filósofo suíço desenvolveu ideias sobre a educação: a mulher, por ser inferior ao homem em capacidade intelectual, deveria receber instrução superficial, com maior ênfase na educação moral e não no preparo para pensar.
No pequeno livro ‘A reivindicação dos direitos da mulher’, Mary veio a público, em 1792, para rechaçar a ideia de Rousseau, Immanuel Kant e outros pensadores iluministas, para quem as mulheres eram seres intelectualmente inferiores, especialmente para a política.

Mary argumentou que a educação recebida pelas mulheres era a principal causa da incapacidade feminina de entender questões políticas. Para ela, isso poderia ser facilmente corrigido caso as meninas recebessem, desde cedo, a mesma educação dos meninos.
Assim, foi graças à movimentação de outras mulheres que as brasileiras começaram a se organizar e se inspirarem para promover mudanças no país. Se você tem interesse em conhecer os detalhes e curiosidades desta história, recomendamos o livro ‘O Voto Feminino no Brasil’, de autoria de Teresa Cristina de Novaes Marques, editado pela Câmara dos Deputados, em 2019.
Sufragistas brasileiras
Bruxas e sufragistas eram consideradas perigosas em todos os sentidos ao longo do tempo, sendo perseguidas e estigmatizadas. Enquanto as mulheres em diversas partes do mundo se organizavam para conquistar direitos, o Brasil era deserto. Tanto que, somente em 1827, puderam frequentar as escolas e, em 1870, conquistam o direito de estar nas universidades.
Mas, até no deserto, as flores encantam.
Impressionada com o livro de Mary Wollstonecraft, a professora Dionísia Gonçalves Pinto, de Papari (RN), publicou, em 1832, uma tradução livre, sob o pseudônimo de Nísia Floresta Brasileira Augusta. Foi um passo para o livro ‘Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens’.

Educadora, escritora e poetisa, Nísia Floresta foi a primeira mulher brasileira a denunciar em uma publicação o mito da superioridade do homem e de defender as mulheres como pessoas inteligentes e merecedoras de respeito igualitário.
Somente no começo dos anos 1900, o movimento sufragista ganha relevância. Embora a Proclamação da República no Brasil tenha ocorrido em 1889, foi apenas 20 anos depois, em 1910, que nasceu o Partido Republicano Feminino, fundado por Leolinda de Figueiredo Daltro, como ferramenta de defesa do direito ao voto e emancipação das mulheres na sociedade.
Uma das precursoras no Brasil na luta feminista é a Bertha Lutz, ativista, bióloga, diplomada e política. Em 1919, a filha de Alberto Lutz, cientista renomado, fundou a ‘Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher’, formada basicamente por um grupo de mulheres de classe média e alta escolaridade. Criou diversas entidades e representou o Brasil nos organismos internacionais, consolidando o país o grupo que em 1932 seria o responsável pelo decreto de 1932 que instituiu o voto feminino.
Confira no vídeo quem são as primeiras representantes eleitas no Brasil após a aprovação do voto feminino, em 1932.
República dos homens
A primeira eleição após a conquista do voto feminino foi em maio de 1934, que escolheu os integrantes da Assembleia Nacional Constituinte. Foram apenas 19 candidatas no país e apenas uma eleita para o cargo: Carlota Pereira Queirós, médica paulista, a primeira deputada federal da história política do Brasil.
Bertha Lutz foi a segunda deputada federal a assumir o cargo, em outubro de 1934, primeira suplente pelo Partido Autonomista do Distrito Federal, representando a Liga Eleitoral Independente, ocupando a vaga com a morte do deputado Cândido Pessoa.
As duas, Carlota e Bertha, trabalham juntas pela inclusão das pautas que interessam às mulheres, na Constituinte de 1934, como o voto feminino, antes normatizado por decreto.
As pautas feministas caminhavam lentamente no Congresso Nacional, como o Estatuto da Mulher e a criação do Departamento Nacional da Mulher, sempre enfrentando a resistência da maioria dos homens, mas com aliados históricos como José de Alencar, Machado de Assis, entre outros intelectuais e cidadãos que rechaçaram o pensamento excludente em relação às mulheres.

Mas como no Brasil o autoritarismo mora em cada esquina, em 1937, o mesmo Getúlio Vargas dá um golpe de estado, cassa mandatos, fecha o Congresso e começa o período chamado Estado Novo, onde não havia garantias individuais. Até 1945, o Brasil viveu a Era Vargas que acabou junto com a Segunda Guerra Mundial.
Para saber como esta história continua ainda hoje, leia a matéria ‘Mulheres: a luta por espaço na política continua viva!’, que o Conexão Ciência – C² preparou com mulheres que pesquisam, escrevem e vivem a realidade enfrentada por aquelas que insistem em defender que a política é lugar de mulher e onde ela quiser.
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Texto: Silvia Calciolari
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Edição de vídeo: Yumi Aoki
Arte: Camila Lozeckyi e Any Veronezi
Supervisão de arte: Hellen Vieira
Edição Digital: Guilherme Henrique
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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