Acaba um século, entra o próximo, o desejo de viver em uma nação independente ainda embala povos de todos os cantos do planeta nos dias atuais. A história nos mostra que, por trás dessa meta, há muitas disputas e batalhas sangrentas, internas e externas, no caminho rumo à liberdade.
Por sua importância em termos de realização coletiva, a independência de um país fica marcada como a data em que a soberania e autonomia política, econômica e social são legitimadas perante as outras nações do mundo. Cada país tem a sua história e, no Brasil, não seria diferente.
Desde 1946 do século passado, 7 de setembro é o feriado nacional que marca o Dia da Independência do Brasil, uma conquista que veio em 1822. Nos livros de História, consta que Dom Pedro I, ao retornar ao Rio de Janeiro da cidade de Santos, litoral de São Paulo, proclamou o grito da independência, às margens do rio Ipiranga. Neste dia, o Brasil rompe com o status de colônia e se consolida como uma nação independente de Portugal.
Batizado Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, após a proclamação, o jovem de 24 anos se torna o primeiro imperador do Brasil e passa a ser chamado de Pedro de Alcântara ou Dom Pedro I. Nascido em Lisboa, em 1798, era filho de D. João VI e Carlota Joaquina, rei e rainha de Portugal, a partir de 1816, e permaneceu imperador até 1831.
Por sua importância, a proclamação foi imortalizada pelo pintor paraibano Pedro Américo no quadro ‘O grito do Ipiranga’ ou ‘Independência ou morte’, e povoa a memória brasileira até hoje. Entretanto, ao mesmo tempo, a obra intriga historiadores por não haver registro detalhado desse momento. Muito pelo contrário, pesquisas apontam que a pintura não é fiel à realidade.
Para além dos relatos pesquisados que contrariam o clima apoteótico, uma das pistas é que o quadro foi uma encomenda do governo da província de São Paulo para ocupar o salão de honra do Monumento do Ipiranga, hoje o Museu Paulista/USP. Pintado em Florença, na Itália, onde Pedro Américo residia, a obra corresponde a um painel de 7,60 m x 4,51 m e foi chumbada na parede do museu, onde está até hoje. O detalhe dramático é que a pintura foi concluída apenas em 1888, quando não havia mais ninguém vivo para contar como tudo realmente aconteceu.
Não bastassem estas inconsistências, até a frase original do momento, porém, também é debatida. Segundo a versão registrada pelo Padre Belchior de Oliveira, conselheiro de Dom Pedro, a declaração teria sido: “Nada mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal”. Ainda há relatos, como os alferes Canto e Melo, irmão da Marquesa de Santos, a quem Dom Pedro foi visitar naqueles dias, e o Coronel Manuel Marcondes, que relataram o “Independência ou morte” que acabou ficando para a história.
Tensões externas e internas
“É preciso ver a independência do Brasil, quando comparada a outras, por camadas”, alerta o professor do Departamento de História, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), José Henrique Rollo Gonçalves. Primeiro, a presença da família real portuguesa e sua corte transformaram a organização social, tornando um de seus membros, Pedro João Alcântara, um dos principais articuladores da ideia de um estado nacional.
Havia uma grande pressão de determinados interesses britânicos que pretendiam romper essa amarra colonial portuguesa sobre o Brasil. Paralelamente, registravam-se lutas internas contra o poder português, desde a Inconfidência Mineira, até os acontecimentos de Pernambuco, na Bahia e que sugerem que havia um interesse para além da então sede do governo no Rio de Janeiro para a criação de um território independente.
“Há muitas especulações a respeito das intenções de Pedro João Alcântara, que já antevia uma futura reunificação de Portugal com o Brasil, quando Dom Pedro I assumisse o trono de Portugal, o que seria uma consequência após morte do pai dele”, afirma o professor.
Para José Henrique, “ainda há aquela explicação padrão de que os nossos comerciantes e grandes proprietários queriam controlar o excedente agrícola e financeiro que eles enviavam para Portugal, ou seja, manter o controle da economia fora dos interesses coloniais portugueses”.
O que não se pode negar, segundo o professor, é que a diversidade brasileira era extrema e o que praticamente unificava o Brasil era o fato de ser uma colônia de Portugal, mas não tanto de ser um espaço com uma identificação própria. “Até porque, esse território imenso demorou a reconhecer a sua independência, provavelmente porque as notícias chegavam muito tarde nos lugares mais afastados, é bem possível que, por muito tempo, talvez décadas, as pessoas de algumas áreas do interior não tivessem a menor ideia de que o Brasil tinha se tornado independente”, explica.
Constituinte de 1823
Mesmo diante dos interesses da própria família real portuguesa e das elites econômicas em deixar um dos seus no comando da ‘ex-colônia’ ao proclamar a independência, o professor atribui a outro fato o momento decisivo para o surgimento do Brasil-nação.
“Me parece que a convocação da Assembleia Constituinte em 1823 e a presença de representantes de várias províncias, várias capitanias que logo se tornaram províncias no Rio de Janeiro, contribuíram fortemente para construir a legalidade de um novo país. Esse é um gesto mais interessante do que o próprio 7 de Setembro”, pontua.
Isto porque, finalmente, há no texto o espírito da criação de uma representação regional vinda de diferentes partes do país. A proposição consegue estabelecer um senso de nacionalidade e de país, o que a independência, em si, não conseguia.
“Acredito que o evento da Constituição de 1823 propicia uma conexão profunda com a criação de instrumentos políticos para a produção de um Estado nacional, de um Estado territorialmente bem definido, inclusive, com as noções de fronteiras que passaram todo o século XIX, e uma parte do século XX, definidos”, complementa o professor.
Apesar de criar uma base de legalidade, o imperador repudiou o texto e propôs a sua própria, em 1824, que acabou ficando como a primeira Constituição Brasileira. Quando se pensa na ideia de um corpo político dotado de uma nacionalidade, esse período da convocação da Segunda Assembleia Constituinte até a frustrada Constituição de 1823 e a Constituição efetiva de 1824, gera esse primeiro Brasil.
“É um país que tem uma personalidade administrativa, política, que já pode dialogar e estabelecer relações diplomáticas com o resto do mundo e, assim por diante, que é o fator que garante a soberania para você ter o status de nação independente”, conclui.
Independência ou morte
Nunca é demais lembrar que o Brasil se torna independente de Portugal com aproximadamente cinco milhões de habitantes, população formada essencialmente por representantes de povos indígenas, africanos escravizados, mulheres e homens brancos e cerca de 1,5 milhão de grupos menores decorrentes da miscigenação.
No processo histórico de separação entre o Reino do Brasil e o Reino de Portugal e Algarves, que ocorreu no período de 1821 a 1825, houve uma violenta oposição entre as duas partes. É importante ainda entender que, em política, o conceito de independência de um país ou território é a conquista e manutenção da sua soberania política e econômica, que pode ser absoluta ou relativa. Desta forma, estados passam a ter integral legitimidade de seus atos no plano interno, regido ou não pelo Estado de Direito, bem como guardiães de seus bens culturais.
Disputas para assegurar a independência de territórios têm sido muito comuns no século XX, como analisa o professor José Henrique. “Os movimentos pela independência, inclusive quando existem mais do que um movimento como em numerosos países africanos, asiáticos, as lutas pela independência também foram lutas entre grupos que tinham projetos diferentes em alguns casos, como aconteceu em Moçambique e Angola. Após a independência, os conflitos se acentuaram mais ainda entre esses grupos que pretendiam assumir o controle do país pós-colonial”.
Neste contexto, entra no jogo político a diplomacia na busca de articulações internacionais no próprio processo para evitar os conflitos armados e baixas civis. Assim, muitos grupos que lutaram pela independência na Ásia, na África, mantiveram relações com a China, com a antiga União Soviética, os Estados Unidos, as potências europeias, todos concentrados no processo em busca de uma futura legitimidade, um futuro reconhecimento.
Afinal, uma nação é formada por um grupo de indivíduos que apresenta características históricas, culturais, idioma, costumes, valores sociais, entre outros elementos em comum, formando, assim, uma identidade cultural. Porém, nem sempre isto é suficiente se não conquistar o reconhecimento de um estado independente. É preciso ter o apoio da comunidade internacional, principalmente dos Estados Unidos, fiel da balança quando o assunto é relações internacionais.
De acordo com o professor José Henrique, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, levou a uma nova dinâmica para o surgimento e consolidação de novas nações independentes. “De 1950 para cá, eles [os movimentos] se caracterizam por essa busca de apoio para sua consolidação junto às Nações Unidas”, aponta o pesquisador.
Testemunhas da história
Quando a gente pensa a história da independência do Brasil, parece ser um daqueles fatos antigos e, quase, ultrapassados. Mas, pasmem, neste momento, em algum lugar do planeta, pessoas ainda lutam para ter direito de viver ou morrer como nação.
Tanto é verdade que o último a conquistar esse objetivo foi o Sudão do Sul, agora em 2011. O Estado mais jovem do sistema internacional conseguiu se separar do Sudão e se libertar das influências do Egito e do Reino Unido. O sonho foi conquistado graças ao resultado de um referendo e às lutas lideradas, principalmente, pelo Movimento de Libertação do Povo do Sul (SPLM, sigla em inglês).
Porém, existem vários povos que ainda não têm um território autônomo, vivendo, portanto, em áreas onde o poder é exercido por outros grupos e que os deixa vulneráveis a ataques externos. Por exemplo, os curdos reivindicam a criação de um Estado próprio (entre o norte do Iraque, oeste da Turquia e noroeste do Irã), denominado Curdistão. Formada por aproximadamente 6 milhões de pessoas no Tibete, a nação de tradição budista solicita a criação de um Estado próprio em uma região dominada pelos chineses. A maioria dos habitantes (muçulmanos) da Caxemira solicita que o território seja anexado ao Paquistão, enquanto os hinduístas são totalmente contrários a tal fato.
E não há como ignorar o que acontece na Palestina. Impossível falar das vantagens e benefícios que o movimento de independência traz para a população sem pensar que, neste exato momento, assistimos praticamente ao vivo e em cores o que acontece na Ásia, mais precisamente no Oriente Médio entre o mar Morto e o rio Jordão, na porção Leste, e o mar Mediterrâneo, na porção Oeste.
Desde outubro de 2023, quando o grupo político e militar Hamas, que governa a Faixa de Gaza, atacou Israel, mata 1,4 mil israelenses e fez centenas de reféns, acompanhamos on-line os desdobramentos de um conflito que tem em sua essência, na origem, a disputa por território entre as duas partes.
Origens do conflito
A história de tensão na região remonta ao Império Otomano, entre o final do século XIII e o início do século XX, ocupada principalmente por árabes e outras comunidades muçulmanas. Porém, com o fim da Primeira Guerra Mundial, a comunidade judaica europeia retorna e passa a colonizar o território da Palestina, com os quais mantinham vínculos simbólicos e religiosos. Assim, começam a surgir movimentos para conquistar a autodeterminação e lutar para a criação de um Estado independente na Terra de Israel, chamada Palestina.
Em 1917, o Reino Unido passou a atuar no território para garantir a criação de um ‘lar nacional judaico’, com total apoio das potências internacionais. Desde então, o governo britânico expressou o seu apoio à proposta para estabelecer um estado judeu permanente na Palestina que reconhecia o direito dos judeus de ‘reconstruir’ a sua antiga pátria. Ou seja, um território partilhado entre os Estados de Israel e Palestina, com Jerusalém Oriental como terreno neutro. Ambos os lados reivindicavam direitos históricos e legais sobre essa terra, que é sagrada para judeus, muçulmanos e cristãos.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, cresce o movimento para a criação do Estado Judeu, muito em função do holocausto contra milhões de judeus. Após três décadas de violentos conflitos, em 29 de novembro de 1947, a Assembléia Geral da ONU decidiu dividir o território da Palestina em dois Estados independentes: um judeu e outro palestino.
Israel concordou, mas tanto os palestinos, como os Estados árabes vizinhos, recusaram-se a acatar a proposta por considerar que havia perda de território na partilha. Neste contexto, o que era uma questão local se transforma num conflito regional, com Israel em disputa com as forças de Egito, Síria, Jordânia, Iraque e Líbano e levando à primeira de uma série de guerras árabe-israelenses.
Mesmo assim, em 14 de maio de 1948, o primeiro-ministro israelense, David Ben-Gurion, proclama oficialmente o Estado de Israel, o que foi reconhecido pela ONU e países membros um ano depois. Desde então, há 75 anos, Israel faz incursões militares sobre os territórios palestinos, alegando questões de segurança, e promove avanços sistemáticos sobre a parte que foi acordada para a Palestina.
Para muitos especialistas em direito internacional, esse avanço israelense, com amplo apoio dos Estados Unidos e outros países europeus, é permeado por um viés colonialista que, a cada dia, fica mais evidente.
Colonialismo ‘moderno’
Com o objetivo de aprofundar no tema, o Conexão Ciência conversou com o professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Fábio Bacila Sahd, pesquisador da causa Palestina e autor de diversos artigos e livros, sendo o mais recente “O apartheid na Palestina/Israel: reflexões à luz do caso sul-africano, das ciências humanas e do direito internacional”, disponível em e-book.
Para começar, questionamos o professor: O que é o colonialismo à luz do direito internacional?
De acordo com Fábio,“é a fragmentação e a exploração do território, é a fragmentação e a negação da autodeterminação da população dita nativa. Esse termo [nativo] não se usa, e se convencionou que é preconceituoso. Mas ele faz com que se entenda de quem a gente está falando. Afinal, são décadas e séculos, os anos eternos”.
Quando se faz um paralelo entre Brasil e a Palestina, é preciso guardar as devidas distâncias temporal e espacial. Mas temos o mesmo modus operandi das populações fragmentadas, expulsas ou exterminadas, e o território apropriado.
Segundo Fábio, a Palestina difere do caso brasileiro, em parte, porque é um colonialismo dito de povoamento, onde você tem os colonos com a perspectiva de ocupação e substituição da população nativa. E esse é um ponto central da questão palestina. Já no caso do Brasil, a nação independente seria formada pela diversidade de raças e culturas já existentes, formando assim a nova identidade nacional.
“No conflito entre Palestina e Israel, não se trata de negar somente a autodeterminação palestina desde sempre. Ele [Israel] visa eliminar a população palestina e o vem fazendo em ondas de limpeza étnica, que é o que na bibliografia aparece com a expressão ‘Nakba contínua’, desde 1948”, reforça.
Quando Israel restringe a população palestina à Faixa de Gaza e à Cisjordânia, sem considerar os mais de milhões de refugiados palestinos e descendentes que vivem fora de seu território espalhados pelo mundo, há uma negação de direitos internacionalmente reconhecidos como indenização e restituição das propriedades.
“O que se percebe é uma violência política quando restringe a autodeterminação palestina à Gaza e Cisjordânia, retirando dos refugiados o direito de retorno e restituição das suas propriedades onde, hoje, é Israel”, completa, lembrando que este ponto era central na proposta inicial apresentada pelo Reino Unido em 1917.
Em relação à independência do Brasil, Fábio entende que o caso palestino ainda mais grave, porque ele é uma contradição latente do direito internacional. O professor cita Richard Falk, que foi relator da ONU para os direitos humanos palestinos, os direitos humanos violados nos territórios palestinos: “Ou se garante o direito internacional para o povo palestino ou a própria estrutura está colocada em cheque”.
Fábio conta que esteve em Israel para suas pesquisas e ouviu as pessoas defenderem abertamente a limpeza étnica contra os palestinos. “Eles falavam que tinha que expulsar mesmo os palestinos, eles falam isso tranquilamente. E realmente é uma hipocrisia, porque você sai da Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, e o que você vê? Você vê o apartheid, você vê soldado armado, você vê manifestação supremacista, racista, gritando morte aos árabes. Você anda na Cisjordânia e vê a limpeza étnica em curso. E o mais mais gritante: quando liga a TV se vê o genocídio. É isso que é a centralidade da religião lá, para a definição étnica dos sujeitos, para demarcação racial”.
É difícil para a História fazer um exercício de futurologia para antever o que poderá acontecer nos próximos anos com os mais de 14 milhões de Palestinos que ainda buscam legitimar o seu território e conquistar a tão sonhada independência. A possibilidade de uma escalada da guerra na região, já faz com que especialistas independentes da ONU cobrem o reconhecimento do Estado da Palestina, garantia de direitos e um cessar-fogo imediato.
O que já se pode constatar é o fato de que mesmo sendo independente, um país não pode usar e abusar dessa condição para ameaçar e atacar outros territórios, soberanos ou não. O perigo está em colocar em cheque todo o regramento internacional que regula o direito a se defender, para uns, e a conquistar a autodeterminação, para outros.
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Texto: Silvia Calciolari
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Milena Massako Ito
Arte: Any Veronezi
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:
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