Mesmo com alguma letra faltando ou com rabiscos, quem nunca elogiou uma criança que acaba de escrever o próprio nome? Mas, com o tempo, inserida na escola, sobretudo nos primeiros anos do Ensino Fundamental I, a cobrança pela escrita perfeita aparece, e escrever pode ser, a partir de agora, um momento de tensão e conflito. Por isso, a importância de não oprimir a criança no seu processo de aprender a escrever para o seu desenvolvimento não ser traumático. Isso fica muito claro quando os Estudos Linguísticos entram em ação, ao mostrar que os erros, na verdade, são pistas de como a criança está acertando no seu processo de aprender a escrever.

A professora Cristiane Carneiro Capristano conversou com o Conexão Ciência, para mostrar o que os Estudos Linguísticos têm a dizer e como vêm contribuindo para desmistificar o conceito de erro. “Os erros não devem apenas ser corrigidos, repreendidos ou meramente julgados. Ou ainda não são necessariamente evidências de déficit ou de patologias de aprendizagem, como dislexia, disgrafia e disortografia.”, diz Cristiane, que vem desenvolvendo excelentes pesquisas sobre escrita, escrita infantil, ensino e aprendizagem de línguas, relação ortografia e fonologia, e letramento.
Cristiane é professora e pesquisadora da Universidade Estadual de Maringá (UEM), graduada em Letras e mestre em Estudos Linguísticos, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e pós-doutora pela Universidade de São Paulo (USP).

As suas pesquisas estão voltadas para entender o funcionamento da escrita da criança, de um ponto de vista linguístico e discursivo, ou seja, da nossa língua em funcionamento na sociedade. Em outras palavras, o interesse está em verificar como se dá a entrada e a circulação da criança no modo de enunciação escrito.
O que é escrever certo e escrever errado?
Escrever corretamente significa escrever de forma a corresponder ao que é esperado pela escola e é o que se costuma ver na escrita de escreventes mais experientes. Escrever “errado” seria ver na escrita o que não é esperado. E há muitos tipos de “erros”. Alguns desses fenômenos considerados comumente como “erros” são estudados no Grupo de Pesquisa Leitura e Escrita da Criança GPLEC, grupo de pesquisa (CNPq) liderado por Cristiane.
Porém, com um olhar linguístico para a escrita da criança, é possível entender que os chamados “erros” são, na verdade, índices de processos em curso, das múltiplas relações que a criança estabelece e tem com a linguagem: “Os erros são o ponto de partida para nós conhecermos a escrita da criança e entendermos como se dá o trânsito e a circulação da criança pelo modo de enunciação escrito”, diz a professora Cristiane.
Ela tem se interessado em analisar aquilo que, na escrita da criança, se mostra como acerto, mas, principalmente, por aquilo que é considerado “erro” como a segmentação e, mais recentemente, a “rasura”. Veja o exemplo:

Nesse trecho de um texto, a criança escreve “te amo muito” com alguns “erros”: ela hipossegmenta (escreve “te amo” junto: “tiamo”) e rasura (rabisca a letra N). Além disso, cheio de vírgulas, a escrita da criança já se mostra marcada pela preocupação em inserir sinais de pontuação.
Amparada em diferentes quadros teóricos, formada por contribuições vindas de diferentes áreas como descrição linguística, análise do discurso, letramentos e aquisição da linguagem, as pesquisas sobre esses “erros” mostram que não devemos cair no equívoco de achar que há um déficit na aprendizagem ou há uma marca de um problema gravíssimo que a criança tem. “Esses fenômenos, na verdade, são partes constitutivas do processo de imersão e circulação da criança no modo escrito de enunciação”, explicou Cristiane.
O interesse dela pela escrita da criança nasceu na convergência entre a sua atuação profissional e sua formação acadêmica. Enquanto fazia graduação, ela trabalhou como professora alfabetizadora, com crianças do primeiro ano do Ensino Fundamental I, tendo que lidar com a tarefa desafiadora que é a de ensinar as crianças a ler e a escrever, ou seja, ajudar a criança no processo de se inserir e circular pelo modo de enunciação escrito.
“O desafio de ser professora alfabetizadora foi o que me levou a me interessar pela escrita da criança. Na verdade, eu fiquei fascinada com o que a criança mostrava naquela escrita. O fato de ter tido que enfrentar o desafio de alfabetizar me fez ver a criança e sua escrita de um outro lugar e aí eu comecei a tentar entender como a escrita da criança funcionava”, conta Capristano.
Como toda a sua formação foi em Letras e Linguística, e Linguística Aplicada, Cristiane acabou olhando para a escrita da criança não de um ponto de vista pedagógico ou psicológico, mas linguístico, procurando entender como que a linguagem se mostra na escrita da criança.
Os tipos de “erros”, para fins metodológicos, são estudados separadamente. Esses fenômenos estão amalgamados, acontecem todos juntos, ao mesmo tempo. Vejamos separadamente mais exemplos do fenômeno da segmentação e da rasura, e outros fenômenos trabalhados por Cristiane, seus orientandos e membros do grupo de pesquisa GPLEC:
Segmentação

Na escrita da criança, pode ocorrer a hipossegmentação, quando ela junta palavras que se escrevem separadamente, como “acaboaetola” em vez de “acabou a escola”. Pode ocorrer também a hipersegmentação, quando a criança separa sílabas de palavras que deveriam ser escritas juntas, como “a dorei” em vez de “adorei”. E podem ocorrer as duas formas juntas (segmentação híbrida, mescla).
O fenômeno da segmentação sinaliza a preocupação da criança (e suas hipóteses) sobre o que é uma palavra e como estabelecer limites gráficos para ela, inserindo espaços em branco. Em seu livro “Segmentação na escrita infantil”, e em outros trabalhos, Cristiane investiga quais são os motivos que levam as crianças a segmentarem dessa forma diferente, mostrando o quanto é normal esse tipo de fenômeno na relação que a criança vai estabelecendo com a linguagem e com a escrita.
Rasura

Nesse exemplo, podemos ver que a criança apagou a letra T, porque não tinha dado um espaço entre “eu” e “te”, embora mantenha a junção entre “te” e “amo”. É possível constatar a presença dessas marcas como riscos, traços, rabiscos, grifos, borrões, apagamentos, sobreposições e inserções na escrita da criança. Cientificamente, essas marcas são chamadas de “rasuras” e sinalizam um movimento de retorno da criança ao texto, para aproximá-lo do que a criança vai considerando “correto”. É um tema que tem interessado a linguista nos últimos anos, principalmente pela invisibilidade desse fenômeno.
“A rasura na produção escrita da criança é basicamente ignorada, é vista como uma sujeira do texto, como algo que não deveria estar ali. Mas as rasuras são fontes valiosíssimas de pesquisa, porque permitem ver o funcionamento linguísticodiscursivo da escrita da criança de uma forma muito particular”, destaca a professora.
Relações entre grafemas (letras) e fonemas (sons)

A palavra “garrafas”, com um R só, está errada do ponto de vista da ortografia, mas, do ponto de vista fonético-fonológico, a criança caminha para o acerto, já que a letra R também tem o som de dois erres em outros contextos como o de início de palavra: “rádio”. Esse tipo de erro é muito comum e preocupa os professores, mas, em geral, quando vistos de uma perspectiva linguística, mostram a criança sendo afetada justamente pelas regras que a escola está lhe ensinando. É justamente por reconhecer que não existe relação direta entre as letras e os fonemas (sons da língua) que a criança, no processo de aprender, acaba fazendo registros diferentes daqueles esperados pela ortografia.
Translineação

No exemplo, bonita está separada em b-onita, em vez de bo-nita. Ao chegar ao fim da linha gráfica, o escrevente separa a palavra em duas partes, marcando a dependência entre elas com um hífen, e, neste caso, não respeita a divisão silábica. Porém, esse “erro” mostra a criança tentando descobrir, justamente, como usar o hífen. Em seu texto, ela precisa separar a palavra, mudar de linha e parece saber que tem que inserir o hífen para “ligar as partes da palavra”. Falta, apenas, descobrir que, convencionalmente, não colocamos o hífen em qualquer lugar e, sobretudo, no caso desta criança, não colocamos o hífen rompendo a estrutura de uma sílaba (b-onita).
Hipercorreção

Neste exemplo, aparece o registro “emportate”, em vez de “importante”. Como muitas palavras se escrevem com “e”, mas são pronunciadas com “i”, como “infeiti” (enfeite), na dúvida e na insegurança se é “importante” ou “emportante”, a criança opta pelo “e”, corrigindo demais o que já estaria correto. Daí, o fenômeno da hipercorreção, também encontrado em escreventes mais experientes.
Discurso direto

As falas, ou seja, o discurso direto da bruxa e do elefante aparecem misturadas no texto produzido pela criança, embora devessem ser separadas pelo sinal de travessão e outros sinais gráficos. A existência de textos como esses fazem surgir questões de investigação do tipo quando essa sinalização começa a aparecer e como ela vai aparecendo? Em que contextos? Que tipo de gêneros discursivos ela emerge primeiro?
Flutuações

A escrita da criança tem a característica de ser instável; a instabilidade vem marcada pela presença de erros de segmentação, de acentuação, de pontuação etc. Nesse exemplo, podemos observar a instabilidade no modo como, muitas vezes, as crianças erram e acertam, num mesmo texto, como no exemplo em que o verbo comprar aparece escrito de duas formas, “com prar” e “comprar”, mostrando a criança flutuando nos modos de registrar seus enunciados escritos.
Acentuação

Esse é um trecho de um texto produzido, no ambiente escolar, por uma criança, que tinha que fazer uma lista de compras. Nessa lista, ela acaba acentuando de forma não convencional a palavra alface, registrada como “alfacê”.
Esse registro está, claramente, errado do ponto de vista da ortografia, uma vez que, além de as regras de acentuação gráfica não exigirem o uso do acento circunflexo nessa palavra, ele foi colocado pela criança sobre uma sílaba fraca, e nós acentuamos graficamente sílabas fortes. Muitos são os fatores linguísticos que podem ter concorrido para esse registro. Uma das hipóteses é a de que a criança tenha percebido que, na fala, geralmente dizemos “alfaci” para alface, e a inserção do acento e o registro do “e” tenha sido uma forma de marcar a diferença que a criança viu entre a fala e a escrita.
Requisito para futuras contribuições
Todas essas pesquisas têm construído um corpo organizado e crítico de conhecimentos a respeito da escrita da criança e o modo como se dá sua imersão e circulação por práticas letradas, principalmente as práticas letradas escolares.
Cristiane explica que “do ponto de vista linguístico, nós temos conseguido explicar quais são as motivações linguísticas para a emergência desses erros e mostrar que a criança “está na língua”. Ela está errando a partir do olhar da ortografia, mas seu erro vem justamente das tentativas da criança de se apropriar do sistema da escrita. São “erros” que, na verdade, consistem em hipóteses que atravessam a criança na sua constituição como escrevente”.
A professora Cristiane entende a importância desse primeiro corpo organizado e crítico de conhecimento para que, a partir dele, se possa trazer contribuições ao professor, pois, sem entender como funciona a escrita da criança e como ela vai transitando pelo modo de enunciação escrito, fica difícil rever e construir políticas públicas sobre o desenvolvimento da criança na escola e criar práticas pedagógicas.
Pesquisas como as de Cristiane Capristano trazem uma contribuição muito importante para a ciência e para a área da educação, ao pensar em processos de ensino mais eficazes e humanos, que considerem a singularidade das crianças e os desafios que elas enfrentam para se tornarem escreventes.
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Texto: Patricia Ormastroni Iagallo
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Hellen Vieira
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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