Eu tinha 12 anos quando menstruei pela primeira vez. Uma idade em que a maioria das outras meninas também está passando pela mesma situação. Lembro de ter avisado a minha mãe quando aconteceu e, com a orientação dela, finalmente descobri, em primeira mão, para que servia aquele item que estava sempre no banheiro de casa, o absorvente.
Minha mãe me ensinou o modo correto de usar, descartar e me alertou que eu precisaria tomar ainda mais cuidado com a higiene íntima, quando estivesse nesse período. Sobre as cólicas, incômodos e dores… ela também falou… cuidou de tudo, me deu remédio e bolsa de água quente para amenizar os sintomas, que são normais durante o período menstrual.
No ano seguinte, foi a vez de aprender o que estava acontecendo com meu corpo em termos científicos. Na escola, a minha professora de ciências convidou uma médica para dar uma aula só para as meninas. Assim, todas nos sentimos mais à vontade para fazer perguntas, sem o constrangimento de os meninos ouvirem. Nessa conversa, aprendi sobre os hormônios, TPM (tensão pré-menstrual), o funcionamento do aparelho reprodutivo feminino e muito mais. Nesse momento percebi que todas as minhas amigas também estavam passando pela mesma coisa que eu e que elas tinham as mesmas dúvidas. Essa experiência fez com que todas nós passássemos a tratar o assunto com mais naturalidade, sem medo de pedir absorvente uma para outra, quando estávamos sem, porém, ainda fazendo o máximo para esconder isso dos meninos.
Crescendo em meio a tantos privilégios, confesso que nunca tinha parado para pensar, até recentemente, nas pessoas que não tiveram as mesmas orientações e recursos que eu tive. Na verdade, essas questões vieram à tona quando ouvi o termo pobreza menstrual. Ele me chamou atenção. Corri para o Google e descobri que define a falta de acesso à informação e a itens básicos de higiene no período da menstruação.
Nessa procura, encontrei os trabalhos do projeto de extensão Prevenção e Autocuidado na Saúde Reprodutiva, do Museu Dinâmico Interdisciplinar, da Universidade Estadual de Maringá (Mudi/UEM), onde estudo. Desde a criação, em 2005, o projeto, coordenado pela professora da UEM e enfermeira por formação, Sônia Trannin de Mello, vem trabalhando temas que envolvem o corpo humano, no que diz respeito aos aparelhos reprodutores das mulheres e dos homens, a prevenção da gravidez na adolescência e de infecções sexualmente transmissíveis e, mais recentemente, a pobreza menstrual.
A atuação da equipe se dá por meio de atendimentos no Mudi, com visitas agendadas e espontâneas, e de ações extramuros, como palestras e cursos nas escolas estaduais de ensino fundamental e médio. Com a pandemia, as ações se estenderam para o formato on-line, com a transmissão de lives informativas e publicações nas redes sociais.
O trabalho do projeto em relação ao tema pobreza menstrual começa com ações que procuram fazer com que as pessoas entendam porque os seres com útero menstruam e, claro, entender todo o tabu que existe em torno desse assunto, que impede, até hoje, a discussão aberta sobre ele.
Por que pessoas com útero menstruam?
No momento em que uma pessoa com útero entra na puberdade, que marca o início de seu ciclo de reprodução, todos os meses, ela libera um ovócito, que é sua célula reprodutiva. Quando o ovócito é liberado, outras partes do corpo já estavam se preparando para uma possível gestação e uma delas é o útero.
“O útero, mensalmente, se reveste de uma túnica mucosa denominada endométrio, que é espesso e cheio de vasos sanguíneos. Sob a ação de estrógeno e progesterona [hormônios ovarianos], sofre modificações relacionadas ao ciclo menstrual. Após a ovulação, o endométrio está pronto para receber um ovócito fecundado, que se transformará em um embrião e vai crescer e se desenvolver dentro do útero. Mas, se a fecundação não acontecer, o endométrio perde sua função e é expelido pelo canal vaginal, na forma de menstruação. Isso acontece ao longo de todo o ciclo reprodutivo de uma pessoa que tem útero. O endométrio só não será eliminado durante a gestação, porque vai servir para proteção e formação da placenta, que alimenta o bebê”, detalha a professora Sônia.
A menstruação pode até ser um incômodo. Afinal, é preciso usar absorvente e dar ainda mais atenção à higiene íntima. Ainda existe o risco de o sangue vazar e manchar a roupa. Muitas pessoas com útero sofrem com cólica, dores na região lombar e membros inferiores. As mamas, às vezes, ficam doloridas no período pré-menstrual e menstrual e a pessoa que está passando por esse período pode até se sentir indisposta a realizar seus compromissos diários. Mas, apesar da existência desses sintomas, é preciso compreender que a menstruação é algo fisiológico e natural, que marca o início do ciclo reprodutivo e toda mulher saudável vai passar por esse momento ao entrar na puberdade.
Em suas leituras sobre esse tema, todas as mudanças que ocorrem no corpo em decorrência dele, e sobre o ciclo menstrual, a professora Sônia conta que não tem encontrado abordagens que os apresentem como uma época bonita, marcante, importante e natural. “O que mais se encontra é uma educação, infelizmente, pautada em negações e proibições, como ‘mulher não pode isso’, ‘menina não pode aquilo’ e ‘menstruar é um castigo”’, explica a docente.
O período menstrual ainda é tratado com muito tabu e vergonha. Discutir essa fase da vida de forma evidente e objetiva continua sendo uma tarefa complicada, mesmo com o crescimento dos debates acerca do feminismo. Apesar da naturalização da menstruação estar ganhando força, “algumas pessoas ainda ficam assustadas quando leem ou ouvem frases do tipo ‘me deixe sangrar em paz’, ou ‘eu sou mulher e sangro!’. Essas palavras parecem muito fortes para nossa sociedade e seguem chocando muito. A gente pode dizer que esse é mais um aspecto de vulnerabilidade do feminino provocado pela sociedade do patriarcado. Além disso, houve um momento em que a religião tomou conta da sociedade ocidental de tal modo que constrangeu e reprimiu toda essa força feminina da reprodução”, lembra a enfermeira.
Para ir desconstruindo todo o tabu que envolve a menstruação, é necessário naturalizar o fato que uma pessoa com útero possui um ciclo em que ela sangra, mas apesar do sangue estar muito relacionado com dor, corte e machucado, o sangue menstrual é resultado de um processo fisiológico, que é normal. Quanto mais um tema é abordado, mais ele se torna um assunto natural de ser falado.
“Eu, Sônia, enquanto, mulher, enfermeira, docente, extensionista e pesquisadora, tenho como grande objetivo falar muito sobre esse tema, em todos os momentos e para todas as idades. E quando eu falo em todas as idades, vem aquela dúvida: com que idade é adequado falar sobre isso? É possível falar sobre isso com uma criança? Sim! Desde que a dúvida e a pergunta venham da criança, por que não responder? Utilizando-se, obviamente, uma linguagem apropriada, científica e, sobretudo, isenta de preconceitos para que ela possa compreender com facilidade”, complementa a enfermeira.
Os professores têm um papel importante nesse ato de falar, Sônia acredita que a mudança acontece por meio da educação, quando trabalhada de forma clara e pautada na ciência. Por isso, são necessárias pessoas capacitadas para abordar o tema, que tragam conhecimentos básicos, sem perpetuar o tabu. Por exemplo, uma aluna precisar ter a tranquilidade de chegar e falar para um professor do sexo masculino “eu estou menstruada e estou sem absorvente, será que eu conseguiria arrumar um aqui na faculdade, ou na escola?”. Isso ainda não é uma coisa comum, muitas ainda sentem vergonha de falar sobre isso, de dizer que estão menstruadas.
Educar as crianças desde o ensino básico também ajuda os pais, porque a maioria ainda não tem habilidade para conversar com os filhos sobre esses assuntos. Acabam jogando a responsabilidade um para o outro… “isso é com a sua mãe” ou “isso é com seu pai”. Na realidade, não existe um tema que seja exclusivo para mulheres ou homens conversarem.
“O ato de menstruar não é sujo ou feio, temos útero e menstruamos. É essencial, então, preparar professores para tratar desse tópico, seja no ensino fundamental, no médio ou dentro da universidade. As ideias e conceitos evoluem, as crianças se tornam adolescentes, adultas e, depois, idosas, logo, é necessário conversar sobre esse tema em todas as faixas etárias, assim, cada vez mais, as gerações seguintes não terão problemas em discutir esse tema com os filhos, filhas, netas e netos abertamente”, prevê Sônia Trannin, que destaca que, no ambiente escolar, o esclarecimento sobre o período menstrual deve ser um trabalho inter e multidisciplinar, e não só da biologia.
A pobreza menstrual
Enfim, enfrentar todo o período da puberdade, junto com a primeira menstruação não é fácil, mesmo com as orientações vindas da família, ou dos professores em sala de aula. Agora pense como isso pode ser ainda mais difícil para as pessoas que menstruam e estão em situação de vulnerabilidade. Como lidar com as mudanças que o corpo sofre, as dificuldades, a falta de informação e de itens básicos de higiene, ou mesmo, o fato de não ter um absorvente?
No Brasil, cerca de uma em cada quatro meninas, entre 10 e 19 anos, já deixaram de ir à escola porque não tinham absorventes. A pobreza menstrual é um problema reconhecido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e trata-se da combinação de múltiplas privações, como a falta de: água, itens básicos de higiene, absorvente, lugar adequado para se lavar e a carência de conhecimento sobre os cuidados necessários durante o período menstrual.
A pobreza menstrual também influencia no desempenho das meninas nas escolas, por não possuírem os meios para conter o fluxo menstrual sem o risco de manchar a roupa. Segundo o estudo “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, pessoas que menstruam chegam a perder, em média, 45 dias do ano letivo, um dado preocupante, visto que a formação escolar afeta diretamente o desenvolvimento dessas pessoas na vida adulta.
Em suas pesquisas, a enfermeira Sônia conta que, de modo geral, não são muitos os estudos encontrados sobre a temática. “A gente percebe que existe um consenso, em que todos afirmam que as pessoas que sofrem com a pobreza menstrual estão em situações de vulnerabilidade. E mais: a falta de acesso a um absorvente leva muitas a usarem o que elas podem para conter o fluxo menstrual: panos, miolo de pão, plástico, folhas, jornal, tudo que você possa imaginar que pode conter o fluxo de sangue elas usam”, explica Sônia Trannin.
O que pouco se discute é que a utilização de materiais inapropriados para conter o fluxo menstrual pode trazer muitos riscos. Por exemplo, o contato do sangue com o oxigênio e o miolo de pão servindo como superfície para o crescimento de bactérias e fungos, aliado à higiene precária, predispõem a infecções, sobretudo a urinária. A abertura da uretra fica muito próxima da abertura da vagina, então, o contato da vulva com o miolo de pão contaminado, permite que esses microorganismo penetrem na uretra, que é curta, podendo chegar, inclusive, à bexiga e, posteriormente, alcançar os rins. Sem contar as infecções do próprio aparelho reprodutor, quando, por meio da vagina, alcançam o útero e as tubas uterinas, promovendo a disseminação deles pelo corpo.
Mudando a realidade
As mobilizações feitas pelo projeto de extensão Prevenção e Autocuidado na Saúde Reprodutiva ainda estão no início e começaram a ser executadas diante de todas as demandas que vêm surgindo. Dentro do Mudi, pela ausência do atendimento presencial, a bolsista do projeto, Lara Vitória Luppi Novais, do curso de enfermagem, está fazendo uma pesquisa bibliográfica com o intuito de levantar a produção científica disponível para a construção de novas redes de pensamentos e conceitos, que permitam conhecer mais sobre pobreza menstrual e, também, para planejar e fundamentar publicações de socialização do conhecimento científico nas redes sociais, para chamar a atenção da sociedade sobre o tema. “Você sabe o que é pobreza menstrual?”, “Você sabe qual a taxa de impostos que incide nos absorventes?”, “Você já ouviu falar sobre igualdade menstrual?” são alguns dos tópicos que vêm sendo abordados nos posts publicados na página do Facebook do Mudi.
Há, também, uma pesquisa de campo, mais abrangente, para saber como a pobreza menstrual acontece dentro da UEM. A ideia é mapear todos que menstruam dentro da Universidade para saber como essas pessoas sentem, entendem e lidam com essa situação, além dos tabus e dificuldades que existem acerca disso. “Nós temos alunas e alunos indígenas, cotistas, que entraram por inclusão social, então, a gente quer entender quais as necessidades dessas pessoas, no que se refere à obtenção, escolha e acesso a produtos de higiênica básica, se os banheiros da Universidade dão condições para que todas as pessoas que menstruam façam a higiene que precisam. Estamos iniciando esse mapeamento na UEM, mas a ideia é ampliar para a sociedade como um todo”, explica Sônia.
As universidades têm se mobilizado para amenizar o problema da pobreza menstrual na região de Maringá, no Paraná. Estudantes da Liga Acadêmica de Saúde Materno-Infantil, da Unicesumar, criaram o projeto “Pobreza menstrual”, que visa arrecadar absorventes que serão doados em postos de saúde de Maringá e Sarandi. Na UEM, o projeto Prevenção e Autocuidado na Saúde Reprodutiva também atuou em ações práticas. Uma delas foi uma parceria junto da Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres, Central Única das Favelas (Cufa) do Paraná, a Câmara Municipal e o Coletivo Igualdade Menstrual para realizar uma campanha de arrecadação de itens de higiene pessoal (absorventes descartáveis, calcinhas, xampu, condicionadores, escovas e pastas de dente) para mulheres em situação de vulnerabilidade, de Maringá e de Londrina, que estão cadastradas na Cufa.
E a equipe do Mudi ainda lança muitas outras perguntas no ar. Você já parou para pensar para onde vai esse absorvente após o uso? Os absorventes que são descartados no ambiente têm plástico por fora e esse plástico dura uma eternidade para ser degradado. Sabe onde vão parar? A resposta é: nos aterros sanitários, transformando-se em um problema ambiental.
Por isso, a professora Sônia Trannin já incluiu o tema menstruação no projeto sobre sustentabilidade, logística reversa e coleta seletiva que ela coordena no Mudi. Afinal, durante sua vida, uma pessoa com útero irá passar por uma média de 450 ciclos menstruais, utilizando por volta de 10 mil absorventes. O plástico dos absorventes demora de 100 a 500 anos para se degradar, gerando um grande impacto para o meio ambiente. É preciso, então, encontrar alternativas sustentáveis para conter o fluxo menstrual como forma de amenizar as implicações negativas para a natureza produzidas pelos absorventes convencionais. 4
Conheça alguma delas assistindo ao vídeo:
Importante, no entanto, pensar que os preços da maioria dos itens alternativos para a captação do sangue menstrual são ainda mais caros do que um pacote de absorventes descartáveis, comprometendo a viabilidade deles como forma de combater a pobreza menstrual. Além do mais, para que um produto como um coletor ou uma calcinha menstrual tenha boa eficiência e duração, é necessário todo um cuidado específico. Voltamos à questão de que o acesso à água e a itens de higiene básica se tornam imprescindíveis para diminuir a desigualdade que assola algumas camadas sociais. “Nós estamos entendendo que precisamos trabalhar dentro da extensão, do ensino e da pesquisa, em universidades e outras organizações buscando a igualdade menstrual. Por enquanto, o que temos é a pobreza menstrual, que compromete a saúde física e mental de pessoas que menstruam pelo Brasil e pelo mundo”, conclui Sônia.
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Maria Eduarda de Souza Oliveira e Milena Massako Ito
Degravação da entrevista: Maria Eduarda de Souza Oliveira, Milena Massako Ito e Thamiris Rayane Shimano Saito
Edição de texto e supervisão: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Maria Eduarda de Souza Oliveira e Milena Massako Ito
Edição dos vídeos: Thamiris Rayane Shimano Saito
Ilustrações: Murilo Mokwa
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS: