Pandemia: os reflexos na saúde mental dos estudantes

O isolamento social provocou mudanças na rotina dos estudantes, fragilizando a saúde mental de muitos deles

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Não há como negar que a pandemia da Covid-19 provocou diversas mudanças na vida de toda a população. O mundo precisou se reinventar em vários aspectos e se preparar para combater uma doença desconhecida, mas que, conforme avança, gera consequências para todos os lados. Uma das medidas mais importantes e efetivas para conter o alastramento do coronavírus foi o isolamento social, que demandou, inclusive, a mobilização de diferentes setores para a transferência das atividades presenciais para a modalidade remota. 

Durante esse período de restrição, as pessoas começaram a realizar as tarefas cotidianas dentro de casa. As rotinas foram quebradas e os compromissos diários e os afazeres domésticos se fundiram ao trabalho e aos estudos. Toda essa transformação na dinâmica externa de funcionamento da sociedade, causada pela pandemia, também impactou a população internamente, ou seja, o contexto pandêmico trouxe efeitos que atingiram tanto a saúde física quanto a saúde mental dos indivíduos.

Os sintomas e as sequelas geradas pela Covid-19 não foram os únicos problemas a serem enfrentados pelas pessoas, visto que, diante dessa crise sanitária, aspectos  como o medo da contaminação e da morte, bem como o distanciamento entre amigos e família, fragilizaram a saúde mental de cada uma delas. Isso se tornou mais uma grande preocupação e um alarme para a importância do cuidado com a saúde psíquica, uma vez que não basta estar bem fisicamente para ser saudável. 

A professora Silvana de Melo, do Departamento de Ciências Morfológicas, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), pesquisa a respeito da neurobiologia do estresse, e vem realizando estudos sobre o efeito do isolamento social no organismo dos seres vivos e como essa condição se torna um risco para a saúde mental. No vídeo abaixo, a pesquisadora explica essa relação:

Uma das áreas mais afetadas por esse cenário é a educação. Dados da Unesco apontam que, no primeiro ano de pandemia, quase 1,6 bilhão de estudantes deixaram suas salas de aula, em mais de 190 países, para se adaptarem à situação sanitária vigente, chegando ao que chamam de “a maior interrupção da aprendizagem na história”. Assim, muitas instituições educacionais se viram obrigadas a adotar, emergencialmente, o ensino remoto (veja detalhes desta modalidade, na outra matéria desta semana, do C²). 

Entretanto, apesar disso ser uma das saídas para a contenção da pandemia, mais adversidades vieram à tona, como o acesso limitado (ou inexistente) dos estudantes às tecnologias necessárias para o estudo, a sobrecarga de tarefas, a dificuldade de concentração nas aulas, a queda na qualidade de ensino pela baixa adaptação aos meios digitais etc. Um descontentamento atingiu professores e alunos, e muitos tiveram comprometimento da saúde mental.

Eu, Maria Eduarda, que assino essa matéria, me identifico muito com toda essa situação. Como estudante de universidade pública, vivenciei o impacto na minha vida acadêmica logo no início da pandemia, por causa do longo período sem aula, nem mesmo remotamente. Foram cerca de cinco meses, até agosto de 2020, quando retornaram de um jeito que eu nunca havia imaginado estudar. Antes disso, o mais perto que cheguei da educação remota foi durante o ensino médio, quando assistia a vídeos de professores pelo YouTube, para me preparar para o vestibular.

No começo, lidei (até certo ponto) com a nova realidade dos meus estudos, afinal, conseguia ver as aulas e fazer as atividades solicitadas. Contudo, também comecei a sentir a diferença no meu aprendizado e em como não me adaptava ao modelo remoto. Não era a mesma coisa que o ensino presencial, estava em aula, mas, ao mesmo tempo, parecia que não. Era difícil prestar atenção e entender, de fato, o conteúdo, que ia se acumulando em textos e mais textos para ler e atividades para entregar.

Meu rendimento caiu e fiquei extremamente sobrecarregada (essa é a palavra que define como eu estava na maior parte do período de ensino remoto). As minhas obrigações acadêmicas se juntaram ao meu estágio e afazeres domésticos, virando um caos. Parecia que não havia mais divisões entre os horários de realizar cada uma dessas coisas. Além do mais, o dia a dia na universidade também fazia muita falta. Conversar com meus amigos, ir à biblioteca, sair para comer um lanche após a aula, tudo isso amenizava uma rotina que já era pesada e a tornava mais descontraída e divertida.

A sobrecarga é um dos maiores desafios enfrentado pelos estudantes durante a pandemia (Getty Images)

Um dos fatores que mais colaborou para o meu esgotamento foi a saúde mental, que já estava bastante abalada por conta do contexto pandêmico e piorou diante das minhas frustrações universitárias. Por esse motivo, encorajada por familiares próximos e amigas, resolvi ir atrás de ajuda psicológica, porque não conseguia guardar mais a angústia que crescia dentro de mim. Na verdade, nunca havia cogitado procurar esse tipo de assistência, por sentir que eu era capaz de suportar sozinha o que me afligia. 

Logo no primeiro encontro, percebi o quão certeira foi essa escolha. Ter uma opinião profissional foi essencial para que eu entendesse o que realmente estava acontecendo comigo e pudesse me direcionar ao caminho apropriado de tratamento. Ainda estou nesse processo, porque sei que minha condição não se resolve instantaneamente, mas acredito que, se eu não tivesse procurado a ajuda da minha psicoterapeuta, eu teria chegado ao limite.

O meu relato é apenas um em meio a muitos que existem sobre a experiência e a condição dos estudantes na pandemia. De acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), 59% dos associados relataram um aumento de até 25% nas consultas, e 82,9% perceberam o agravamento dos sintomas em pacientes que continuam em tratamento. E, da mesma forma que as pessoas tiveram a necessidade de buscar os atendimentos nesse período, algumas instituições se propuseram a oferecer serviços de auxílio psicológico, tendo em vista o agravamento da saúde mental da população. 

A Estratégia de Promoção à Saúde, à Convivência e à Diversidade da Comunidade Universitária – Sacodi – é uma dessas iniciativas, que tem o objetivo de ampliar o bem-estar de servidores e alunos da UEM, no Paraná. A equipe põe em prática essa missão por meio de ações integradas que garantem uma vida saudável e o cuidado com a saúde mental. O projeto parte da Diretoria de Assuntos Comunitários (DCT), ligada à Pró-Reitoria de Recursos Humanos (PRH), da universidade, e é coordenado pela assistente social e diretora do DCT, Telma Maranho Gomes.  

Reunião de rotina da Sacodi (Reprodução)

A estratégia começou em 2019 e é resultado de dois projetos de extensão: “Promoção Coletiva do Viver Saudável na Comunidade Universitária” e “Atenção e Cuidado à Comunidade Universitária na perspectiva da Atenção Psicossocial”. Eles contam com a participação de docentes, servidores e estudantes  da UEM. Dentre os cursos que estão envolvidos com a Sacodi estão: Psicologia, Enfermagem, Medicina, Educação Física e Serviço Social. Também estão vinculados aos projetos, servidores do Ambulatório de Saúde da UEM, do Hospital Universitário de Maringá (HUM), do Serviço de Medicina e Segurança do Trabalho (SESMT) e da Unidade de Psicologia Aplicada (UPA).

De acordo com Renata Heller, professora do Departamento de Psicologia (DPI) e integrante da Sacodi, antes da pandemia, a equipe já percebia um agravamento do sofrimento psíquico dentro das instituições de ensino. Ela explica que, para entendermos o sofrimento físico e mental, precisamos compreender o modo como vivemos. Na presente organização social, almejamos intensa produtividade e alta performance no desenvolvimento de nossas atividade cotidianas. 

“Isso vem gerando uma série de  esforços pessoais, que, muitas vezes, ultrapassam o limiar da nossa capacidade. Ao mesmo tempo, a gente lida com uma série de dificuldades para desenvolvermos as nossas vidas, que estão muito relacionadas a desigualdades e à injustiça social. Tudo isso impacta o nosso modo de viver e de ser. Então, na universidade, a gente enfrenta isso enquanto indivíduos, atrelado a todo esvaziamento que a gente vem sofrendo na própria implementação das políticas públicas”, aponta Renata. 

A psicóloga Daniela Mota, docente do DPI, também faz parte da Sacodi. Ela diz que a proposta inicial de funcionamento da estratégia era mais ampla, ia além dos atendimentos psicossociais, mas, por conta da pandemia, ficou inviável seguir adiante com a ideia e, por isso, acabaram se concentrando na questão da saúde mental. O acolhimento psicossocial dos alunos aconteceu no formato virtual. “Nós desenvolvemos o atendimento on-line por causa da pandemia e com o objetivo de acolher os discentes de qualquer um dos campi da UEM que se inscreveram”, informa a docente.

Portanto, o formato online acabou permitindo a ampliação dos atendimentos, pois, anteriormente, os projetos só atendiam o campus sede, por ser presencial e necessitar que pessoa se deslocasse até o local. Com o atendimento via internet, isso foi expandido e, hoje, a estratégia atende todos os campi. “Mesmo voltando ao presencial, é importante dizer que o nosso atendimento vai continuar híbrido, ou seja, o indivíduo vai ser atendido presencialmente na nossa clínica, na UPA, mas quem não conseguir, vai continuar sendo atendido remotamente”, afirma Daniela Mota.  

Durante a pandemia muitos atendimentos psicológicos migraram para o formato remoto (Pexels)

Ao abrir o formulário para os interessados no serviço, as professoras ressaltam que não esperavam que a demanda fosse tão grande. Na primeira vez em que os atendimentos online foram disponibilizados, foram ofertadas 250 vagas, que acabaram sendo preenchidas muito rapidamente. Naquele mesmo ano, quando mais 100 vagas foram disponibilizadas, elas foram preenchidas em um intervalo de menos de quatro horas. Ainda foram oferecidas vagas específicas para estudantes de graduação da UEM que ingressaram na universidade pelo sistema de cotas sociais e raciais. Ao longo do ano de 2021, 395 estudantes receberam o acolhimento psicossocial oferecido pela Sacodi. De acordo com as professoras, infelizmente, ainda não é possível ampliar esse número de atendimentos, porque a rede ainda é pequena na Universidade. 

As psicólogas, juntamente com residentes técnicos e estudantes do 5º ano de Psicologia, realizam o acolhimento com uma modalidade breve de intervenção (tendo, em média, quatro encontros). Neles, procuram identificar quais são as demandas de sofrimento da pessoa assistida, avaliá-las e propor estratégias de enfrentamento. Para aqueles que apresentam uma situação em que os quatro encontros não são suficientes para o processo de enfrentamento das dificuldades, o grupo faz os encaminhamentos necessários, para dar continuidade ao tratamento com outros profissionais da Psicologia. 

Conforme os encontros foram acontecendo, a equipe constatou que as demandas dos estudantes estão relacionadas, principalmente, à manifestação de queixas de ansiedade que despertam dificuldades com a alimentação, com o sono, com o desempenho das atividades do cotidiano acadêmico e inseguranças ligadas ao projeto de vida associado à universidade. 

“Nós ainda identificamos outras dificuldades de relacionamento, seja por conta de contextos educacionais abusivos, vivências de situações abusivas, relações conflituosas com a família ou com as pessoas do convívio social.” declara a professora Daniela. 

Já em relação aos servidores, os atendimentos têm se voltado, principalmente, à equipe do HUM, e a demanda é um pouco mais complicada, envolvendo relações de trabalho a sobrecarga de tarefas por conta da Covid. 

A universidade é marcada pelas vidas em formação, não só dos alunos, mas de toda a comunidade universitária. É onde as pessoas estão construindo suas histórias de vida, com desejos, projetos e expectativas. “Sabemos como o momento de entrada na universidade é um marco de transição para a vida adulta. Então, é propício que, nesse momento em que a gente ingressa na universidade, ou seja, na vida adulta, a gente também se volte para a nossa trajetória de vida e procure dar um desfecho para as problemáticas que nos acompanham ao longo do nosso desenvolvimento pessoal e social”, acrescenta Daniela. 

Todavia, as cobranças no contexto universitário, os limites institucionais e a conjuntura que a população está vivenciando com a pandemia mexeram muito com a vida de todos que frequentam a universidade. O ensino remoto emergencial acentuou a sobrecarga de atividades e de distanciamento entre as relações alunos-alunos, alunos-professores, professores-professores etc. “Pelas condições do teletrabalho, a gente aprofundou essa sobrecarga e isso mexeu fortemente com os modos de sermos professores, de sentirmos esse peso e também de sofrermos”, manifesta Daniele Duarte, chefe do DPI e membro da Sacodi.

🎧A professora Daniela Mota fala sobre a preferência de alguns estudantes pelo ensino remoto

A Sacodi não está preocupada em só atender demandas de sofrimento já intensificadas, por isso, além dos atendimentos individuais, a estratégia promove atividades em grupo, eventos, informações e orientações sobre vida saudável, educação e saúde. De acordo com as professoras, essas práticas têm toda a importância no estabelecimento da saúde mental. 

O projeto compartilha do entendimento de que a saúde deve ser compreendida na perspectiva da integralidade, pois a saúde mental se manifesta de muitas maneiras, inclusive por meio do corpo. As atividades citadas não se limitam apenas às corporais, aprendidas com a Educação Física, mas também se voltam para o cuidado com a alimentação, o bom sono, o lazer, a recreação e a socialização. “Nós somos seres humanos inteiros, não tem como a saúde mental se manifestar se nós não estivermos atentos a essas outras necessidades humanas”, explica a professora Renata.

Em seus atendimentos, a Sacodi não encaminha só para outro psicólogo ou psiquiatra. A indicação para um grupo de dança, de teatro, de caminhada, ou para alguma comunidade, é uma prática comum dos encaminhamentos, pois, às vezes, é de socialização que a pessoa precisa. 

“É importante a pessoa descobrir outras coisas, porque, de vez em quando, está se sentindo sozinha e essa questão de atividades em grupo é muito importante para amenizar esse sentimento”, destaca Daniela Mota. 

Com a pandemia, esse tipo de procedimento ficou mais difícil de realizar, pois muitos locais que ofertam esse tipo de serviço recreativo, precisaram ser fechados, até na própria UEM, que também disponibiliza algumas dessas atividades.

Para os estudantes da universidade, as professoras também aconselham buscarem os centros acadêmicos, as empresas juniores e as atléticas de seus respectivos cursos. De acordo com a professora Renata, os espaços de colaboração e integração universitária favorecem o desenvolvimento da saúde mental por conta das trocas, reciprocidade, e identificação que esse espaço gera. “A gente percebe que não precisa ficar sofrendo sozinho já que nós estamos todos sofrendo juntos uma mesma dificuldade, e assim, nós encontramos recursos de enfrentamento muito mais fácil”.

Realizando os atendimentos nesse formato, a estratégia Sacodi também contribui  com a questão de quebrar o paradigma de que o tratamento da saúde mental ocorre somente por terapia, nos moldes convencionais conhecidos popularmente. As professoras afirmam que no trabalho delas é preciso buscar coisas diferentes, se atualizar e fazer coisas novas, pois isso é algo que tem dado bons frutos, inclusive, o próprio atendimento online. Desse modo, o projeto tem se esforçado para o desenvolvimento de um pensamento interdisciplinar e de uma atuação interprofissional, em busca de compreender os fenômenos que cercam a vida de uma maneira integral, ampliando a visão de ser humano, de mundo, e de si mesmo. 

A união da formação, informação e da saúde faz parte de um processo permanente e de qualificação para que a Sacodi possa construir, colaborar, e fomentar modos de trabalhar com mais saúde e segurança. “A estratégia vem construindo ações a fim de contribuir com a sociedade e com a nossa instituição. Nós ainda necessitamos avançar muito, e precisamos institucionalizar essas ações para que se tornem práticas e não iniciativas isoladas ou temporárias de idealizadores”, conclui Daniele Duarte. 

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Maria Eduarda de Souza Oliveira e Milena Massako Ito
Edição de áudio:  Milena Massako Ito
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: John Zegobia
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior


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