Filha de agricultores, o pai com 88 anos de idade e a mãe, 82, a professora e pesquisadora Patrícia Bonfim nasceu em uma pequena cidade do Paraná, com cerca de cinco mil habitantes, chamada Mariluz (170 km de Maringá, aproximadamente). Caçula de oito, ela foi a primeira a completar o ensino superior. Os irmãos mais velhos trabalham com a propriedade que o pai comprou no Paraguai, na época em que as terras lá eram mais baratas.
Naquela pequena cidade do interior, nas décadas de 1980 e 1990, os farmacêuticos tinham um contato muito mais próximo com os clientes, diferentemente do que acontece hoje, em farmácias, laboratórios e outros locais de atuação desses profissionais. Esse foi o motivo que levou Patrícia a escolher a área: o gosto pela comunicação e a proximidade com as pessoas. Depois de muitos anos morando no sítio, junto com os pais e irmãos, ela decidiu ir para Maringá fazer cursinho pré-vestibular.
Sozinha, vinda de uma educação em escola pública, a adolescente teve um primeiro ano muito difícil na nova cidade, chorava todos os dias. 365 dias depois, os pais se mudaram para Maringá, ela conseguiu acompanhar melhor as matérias e as coisas começaram a se endireitar. Patrícia sempre almejou fazer o ensino superior na Universidade Estadual de Maringá (UEM) e, para isso, foram precisos três anos no curso preparatório. Mas valeu a pena, começou a cursar Farmácia, em 2004.
A ideia inicial era trabalhar em uma farmácia de dispensação (comercial), mas no terceiro ano da graduação, Patrícia conheceu a pesquisa e os caminhos começaram a tomar outro rumo. A área foi ganhando cada vez mais espaço e a atuação no setor de análises clínicas a levaram mais fundo dentro do curso e desenharam a futura carreira.
“Fiz muito estágio em laboratório. Conheci uma professora que realizava estágios voluntários, então fiz durante minhas férias e, depois, passei a ser remunerada. No terceiro, no quarto e no quinto ano, fiquei dedicada a essa área”, relata a pesquisadora.
Ao se formar, Patrícia começou a fazer o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, na área de microbiologia, também na UEM. Sem uma bolsa de estudos, foi preciso arrumar um trabalho, para que conseguisse continuar morando em Maringá durante a pós. Ela passou a trabalhar com análises clínicas no Hospital Paraná. “Foi um momento, que, apesar de muito esforço, consegui obter muito conhecimento para minha vida, inclusive acadêmica, trabalhando em hospitais”, explica.
No momento em que terminava essa pós-graduação, abriu, na UEM, o doutorado em Ciências da Saúde. Ela foi admitida, pela mesma orientadora que a acompanhou no mestrado, para trabalhar com a mesma área de pesquisa, a microbiologia, com foco em micologia médica. Mas, novamente, não conseguiu uma bolsa de estudos e precisou continuar trabalhando enquanto se dedicava aos estudos. Depois de dois anos no Hospital Paraná, ela passou a dar aula em uma universidade privada do município, o que lhe trouxe novos conhecimentos e mais força para que, hoje, esteja dando aula na UEM.
Em 2015, após a defesa do doutorado, Patrícia passou a fazer parte do quadro de servidores da Universidade Estadual de Maringá, onde trabalha, atualmente, como professora no Departamento de Análises Clínicas e Biomedicina, ministrando as disciplinas em Análises Clínicas (Micologia Médica, Bioquímica Clínica, Prática Clínica Laboratorial). É, também, pesquisadora no grupo de Micologia Médica e orientadora do mestrado no Programa de Pós-Graduação em Biociência e Fisiopatologia.
A sua vontade de trabalhar mais perto e conectada às pessoas se encaixava perfeitamente com o cargo de professora. Mas a pandemia dificultou muito essa função: “Quando eu não pude estar em contato com as pessoas, com meus alunos, tive um desgaste mental muito grande. E não só o desgaste de ficar muito tempo em frente à tela, mas de não ver o aluno balançar a cabeça, se comunicar. No meu caso, vários deles abriam as câmeras, mas, mesmo assim, eu não conseguia perceber se ele estava entendendo. A gente sente quando o aluno deu uma viajada, quando não entendeu, então você pode falar nominalmente, chamar atenção, perguntar se entendeu, se precisa repetir. Mas se eu não vejo, é muito difícil, para mim”, conta a professora.
Para conseguir passar aos alunos tudo o que precisavam, Patrícia e muitos outros professores de disciplinas práticas tiveram que trabalhar fora do horário, durante fins de semana, em todos os momentos possíveis. Foi preciso remodelar a carga horária, para que se dedicassem mais tempo à leitura e interpretação dos exames, discutindo casos clínicos e trazendo casos reais para a “sala de aula”. Os graduandos só puderam colocar a “mão na massa” quando as aulas retornaram ao modo presencial, em 2021.
Já para os orientandos da pós-graduação, o contexto é completamente diferente, porque eles são muito mais independentes. Mas, em 2020, houve não só a impossibilidade dos encontros, como também a limitação de pessoas circulando dentro dos laboratórios. Patrícia acredita que a pandemia tenha impactado ainda mais os alunos do mestrado. “Ele precisa estar aqui, tem que trabalhar com amostra clínica, com uma nova droga, por exemplo. Foi muito difícil, então, trabalhar com a parte psicológica dos alunos, a ponto de eles não desistirem. Até porque, a gente, como pesquisador e orientador, tem um contato muito íntimo com eles. Não são 30 alunos falando com a Patrícia, como é na graduação, são apenas um ou dois”, explica a orientadora.
Comunicação e pandemia
Essa necessidade de manter a comunidade acadêmica ativa, realizando atividades dentro do contexto de aprendizado da universidade e do papel de transmissão de conhecimento para a comunidade, levaram Patrícia, junto com mais três professoras, Débora Sant’Ana, Jacqueline Zanoni e Juliana Marins Perles, a montar e coordenar um grupo de estudo sobre evidências científicas da Covid-19: UEM Contra o Coronavírus [Covid-19].
O objetivo principal foi o estudo e a divulgação de informações sobre a pandemia e a Covid-19. Informações que respondiam, em alguns casos, às dúvidas de hospitais e profissionais da farmácia, da agropecuária, da administração, da medicina, matemática, enfermagem e tantas outras, que se relacionam de alguma forma com o assunto. Portanto, respostas mais técnicas, utilizando artigos científicos que eram depositados no site. Em outros casos, respondiam dúvidas da população, com vídeos no YouTube, podcasts, posts em redes sociais e textos com linguagem mais acessível.
Isso não significa que os mais de 35 pesquisadores que integraram o grupo tinham ou encontravam uma resposta exata para todas as dúvidas encaminhadas. Mas eles utilizavam a expertise que têm em suas determinadas áreas para responder cada pergunta com evidências, a partir de outros conhecimentos já existentes. Como a própria Patrícia descreve, era preciso “extrapolar o conhecimento prévio para responder aquilo que ainda não tinha resposta”.
No começo, apenas com as quatro coordenadoras, o trabalho já era puxado. Chegavam cerca de três ou quatro dúvidas para serem respondidas, semanalmente. A partir do fim do mês de abril de 2020, elas viram que seria impossível fazerem todo o trabalho sozinhas e o grupo, então, se expandiu e chegou a contar com 35 profissionais. Afinal, começaram a aparecer cerca de 100 dúvidas por semana.
Outro grupo coordenado pela professora Patrícia Bonfim, ao lado de duas outras professoras, Érika e Ísis, o Micotec – Grupo de Pesquisa em Tecnologias Aplicadas às Infecções Fúngicas, ligado ao Departamento de Análises Clínicas e Biomedicina (DAB), cresceu bastante nesse mesmo período. Formado por professores, doutorandos, mestrandos, alunos da iniciação científica e alunos da graduação, o Micotec se voltou para estudo e divulgação científica sobre o vírus e a pandemia, produzindo material técnico para o grupo de evidências e material de divulgação para as redes sociais.
Para Patrícia, esse período foi bem cansativo. “Eram muitos eventos, muitas palestras, muitas coisas acontecendo, na tentativa de informar e, além disso, ensinar os alunos a informarem e manter a comunidade acadêmica ativa”, explica.
Dentre todas as dificuldades, o mais trabalhoso e cansativo para todo o grupo tenha sido, provavelmente, a descrença na ciência e as fake news, que aumentaram muito durante a pandemia. Para Patrícia, o barulho das fake news é muito mais intenso que o barulho da verdade, porque quem espalha não se cansa. Ao contrário dos acadêmicos, que, muito ligados às definições e à própria Academia, desanimam ao tentar explicar o mesmo assunto de diferentes formas. Ela reconhece que, nesse caso, a “chave” contra a mentira é a perseverança.
Para a pesquisadora, toda essa onda de falsas informações e descrenças surgiu por causa dos próprios pesquisadores, que não souberam e ainda tentam aprender a comunicar e transmitir o conhecimento do mundo acadêmico para a população. “A vida acadêmica é muito restrita ao mundo que não é o aí de fora. Por isso que eu falo que a culpa é nossa, que estamos dentro da Academia e nunca fizemos essa divulgação da forma correta, nunca mostramos a cara da ciência de forma simples, de forma que contribuísse, que mostrasse o dia a dia e que mostrasse que, basicamente, tudo o que se faz é ciência”, diz Patrícia.
Atualmente, com um volume maior de informações sobre a pandemia, divulgadas por várias outras instituições, e com a volta às aulas presenciais na UEM, o grupo de evidências voltou a ser composto, basicamente, pelas quatro coordenadoras. Já Patrícia, que não era muito adepta às redes sociais, anteriormente a todas essas ações de comunicação na internet, durante o período de distanciamento social, atualmente, continua fazendo um trabalho de divulgação científica em seu canal pessoal no Instagram, além de estar movimentando ainda mais o perfil da Micotec.
O certo é que as dificuldades no mundo da ciência não foram vencidas por completo, principalmente para as mulheres. Patrícia, especificamente, não sente tanto. Imagina que seja por causa do trabalho em uma instituição pública e por não ter filhos. Mas mesmo assim, enxerga a desigualdade de gênero dentro do mundo científico. “Uma mulher nunca tem apenas uma jornada de trabalho, ela sempre vai ter mais de um período, mesmo sem filhos. O que já é muito impactante”, explica a cientista.
Segundo Patrícia, ser pesquisadora no Brasil, independentemente do gênero, já é um desafio. Isso porque, os cientistas acabam se envolvendo e se dedicando horas fora do horário estabelecido, além de praticamente precisarem cuidar dos alunos como uma segunda mãe ou pai. São jovens que mudam de casa, passam a morar sozinhos, necessitam de trabalho ou de uma bolsa e encaram o desafio de se tornarem profissionais. Além das dificuldades psicológicas que surgiram durante a pandemia, em que muitos perderam pessoas próximas para a doença.
No Brasil, muitas vezes, os pesquisadores precisam se doar, inclusive, financeiramente, para, por exemplo, terem materiais adequados nos laboratórios, que são escassos por causa da burocracia ou pela falta de investimento na área. Por isso, Patrícia acredita que a pesquisa no país depende de pessoas que realmente querem que as coisas se desenvolvam, independentemente das dificuldades. Pessoas como ela e todos os outros pesquisadores.
Portanto, ela acredita que, por ser mulher, já é necessário ser forte para contornar todos os obstáculos que a sociedade impõe. A ciência, por sua vez, a fortalece, ainda mais, para que possa trilhar o próprio caminho e, também, apoiar outras pesquisadoras, assim como muitas a apoiaram durante sua caminhada.
Confira a quarta temporada do podcast “Donas da ciência”, e ouça a história da Patrícia contada por ela mesma
Donas da Ciência – T4 E4 – Patrícia Bonfim – Conexão Ciência C²
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Rafael Donadio
Arte: Murilo Mokwa
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior