Pimenta para pintar, para arder e para curar

Metodologia da UEM aplicada a pimentas facilitará a identificação das mil e uma utilidades desta que é especiaria, corante e medicamento

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Pimenta vem do latim pigmentum, cujo plural é pigmenta. Pigmentum, por sua vez, significa ‘pintar’, e tem origem no verbo “pingere”. Muito antigamente, a palavra pimenta designava substâncias com propriedades corantes, passando a identificar especiarias e temperos que, ao longo do tempo, decoraram e coloriram bebidas e comidas. Em português, pimenta-do-reino, da grande classe Piper nigrum, foi a primeira especiaria batizada com esta terminologia, levando os nativos e forasteiros da América pós-Colombo a pensar que a ardência dos pratos locais provinha do seu uso. Demorou para os frutos de plantas do gênero Capsicum spp. se revelarem. 

Atualmente, a pimenta é o condimento mais consumido no mundo. O gênero Capsicum spp. possui 400 variedades que englobam cerca de 30 espécies distintas, com um ponto exclusivo em comum: o alcalóide capsaicina, responsável pela ardência, que, na linguagem científica, traduz-se como pungência. 

Os diferentes graus de pungência conferem às pimentas grande importância na agricultura e na indústria, pois têm distintas aplicações, o que levou a professora doutora Liane Maldaner, do departamento de Química da Universidade Estadual de Maringá (UEM), a orientar o doutorado de Carina Alexandra Rodrigues sobre a especiaria, que focou nos capsaicinóides, especificamente nos dois compostos responsáveis por 90% da pungência das pimentas: a capsaicina e a dihidrocapsaicina. Para analisar as 18 variedades escolhidas como recorte do estudo, as pesquisadoras desenvolveram metodologia específica capaz de determinar quantitativamente a presença da capsaicina e da dihidrocapsaicina, mostrando que a diferença da ardência relaciona-se com a concentração dos compostos. Sim, parece óbvio, mas mesmo o óbvio precisa ser provado. 

Atuando no desenvolvimento de metodologias analíticas para a determinação de compostos orgânicos, Liane explica ser a pungência das pimentas determinada, desde 1912, apenas de forma qualitativa, por meio da Unidade Scoville (SHU), que é o volume de água necessário para diluir uma preparação padronizada da pimenta em teste, até que a ardência seja despercebida. Por exemplo: o grama de pimenta moída diluído em dois litros de água (2.000 g) para não ser percebido tem ardência de 2.000 SHU. “Quanto mais diluído, maior o número, maior a picância”, diz a professora. A Escala Scoville é válida para medir a pungência das pimentas enquanto condimento, mas para outras aplicações perdeu terreno para metodologias mais modernas. 

A química analítica Liane Maldaner (Foto/Isadora Monteiro)

“A importância dos capsaicinóides vai muito além do papel enquanto alimento. Eles têm uma série de propriedades promotoras da saúde humana. Há estudos mostrando que associam-se a propriedades biológicas como antioxidante, anti câncer, anti fúngica, anti diabetes, anti obesidade, anti-inflamatório, analgésico”, detalha Liane. Por isso a necessidade de determinar de forma analítica a quantidade dos compostos em cada tipo de pimenta, a fim de direcionar o uso desses extratos para aplicações cosméticas e farmacêuticas. O leitor que não só se lembra, como teve oportunidade de colar um Emplastro Sabiá na lombar depois daquela pancada no jogo de futebol do fim de semana talvez desconheça que o sucesso das propriedades analgésicas e anti-inflamatórias provêm de extrato de capsicum, substância encontrada também em medicamentos para herpes zóster e mesmo cápsulas de capsaicina.

De acordo com Liane, a busca por metodologias analíticas que utilizam menor quantidade de solvente e etapas mais rápidas capazes de assegurar a confiabilidade do resultado final só cresce. Foi o caso desta pesquisa, cujas técnicas de preparo da amostra, que tem aplicação para diversos tipos de amostras, foram usadas pela primeira vez com pimentas. “Nós a otimizamos para ser empregada na determinação dos capsaicinóides”, conta a química analítica. 

Dentre os resultados obtidos, alguns óbvios: pimentas do gênero Capsicum spp. têm capsaicina. Outros, interessantes: batem direitinho com a Escala Scoville. “O que a escala aponta maior pungência, nossos resultados quantitativos mostraram em números”, diz Liane. Para ela, a maior surpresa foi a quantidade em número de concentração, realmente bastante elevada. Mesmo as variedades que nunca foram estudadas possuem quantidades tão altas quanto as conhecidas, sugerindo cultivo mais fácil ou maior adaptabilidade ao frio ou ao calor. “Talvez essa variedade não desperte tanto interesse para o consumo in natura, mas certamente terá outras aplicações”, avalia a pesquisadora. 

Arde meeesmo!

Nos quatro anos de pesquisa foram avaliadas as seguintes variedades das espécies C. annun L., C. frutescens L., C. baccatum L e C. chinense Jacq.: Jalapeño, Dedo-de-moça, Cambuci, Malagueta, Biquinho, Habanero, Big Red Mama, Brazilian Moruga, Fatalli Gourmet Jigsaw, Naga Morich, Naga Viper, 7 Pot Burgundy, Bhut Jolokia Assam, Alfa Pepper, Big Red Mama Slim, 7 Pot Bubllugum Chapéu Vermelho, Naga Colt Purple e Naga Colt Red. Oito destas variedades não têm sequer um estudo na literatura e 5 ainda não foram catalogadas, não se sabe a que espécie pertencem, o que abre espaço para novas e fascinantes descobertas. 

A nota 10 em pungência foi a Bhut Jolokia Assam, disparado! A Biquinho, chamada de pimenta-doce, e sem capsaicinóides, ficou com nota 0, como era de se esperar. A Habanero, bastante apreciada pelos “pimenteiros”, passou na média, com pungência variando entre 4 e 6. Todas elas são conhecidas e facilmente encontradas em molhos disponíveis nos mercados, cujas embalagens sinalizam corretamente as pungências ou, no caso da Biquinho, a ausência. 

No laboratório, o manuseio das amostras exigiu as melhores máscaras e luvas, o que não impediu a irritação da pele das pesquisadoras. Os colegas que dividiam o laboratório tiveram que sair no momento da manipulação, inclusive. Quem nos conta detalhes picantes da experiência é a própria doutora.  

Carina Rodrigues, autora da pesquisa de doutorado sobre as pimentas

Em maio, os pesquisadores do APLE-A, grupo ao qual a pesquisa orientada por Liane também pertence, apresentaram os experimentos com organogel, revestimento de frutas e pimentas aos visitantes da Expoingá 2023, feira agropecuária realizada em Maringá. Todos os anos, a universidade desfruta de espaço na feira para divulgar alguns de seus trabalhos nas mais diferentes áreas do conhecimento. No caso do APLE-A, alunos de graduação e pós-graduação de Ciências de Alimentos, Engenharia Química e Química dividiram com o público o que andam fazendo nos laboratórios e que, logo logo, estarão nos alimentos ou nos remédios deste mesmo público. 

Alunos do APLE-A no estande da UEM na Expoingá: Eloize Silva Alves, Catharina Buranello, Joice Camila, Cesar Souza, Bruno Saqueti e Rafaella Bruni (Foto/Arquivo APLE-A)

Liane e César Henrique de Souza, aluno de iniciação científica, levaram molhos prontos comprados em mercados e os ofereceram às pessoas, que puderam conhecer a pimenta utilizada – se a Biquinho, a Malagueta ou a Bhut Jolokia Assam -, sentir as diferentes pungências das variedades e conhecer os compostos que as originam. 

“Foi um trabalho muito bacana”, diz a pesquisadora, revelando que o principal interesse do estudo são as inúmeras e diferentes aplicações do condimento. Isso porque, a exemplo de tudo nesta vida, a pimenta também tem vantagens e desvantagens. De acordo com a química analítica, a pungência capaz de promover a saúde intoxica quando em doses elevadas. Esta é a razão pela qual a maior parte das aplicações atualmente em uso é tópica e não medicamentosa. Ou seja, creme no lugar de comprimido.

“Além do estudo de quantificação dos capsaicinóides, em parceria com a Farmácia, avaliamos a atividade antifúngica contra cinco espécies de cândida e citotoxicidade dos extratos das pimentas. O artigo está no forno, na última revisão. A pimenta é consumida no mundo inteiro, desperta grande interesse, inclusive o nosso, que nos dedicamos a estudá-la”. A gente agradece! 

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Juliana Daibert
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Natália Cracco
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS:

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