A primeira menstruação é um evento marcante na vida de muitas pessoas. Especialmente, quando se nasce mulher, é comum ouvir ao longo de muitos anos toda a expectativa que gira em torno do famoso momento no qual se “vira mocinha”. Para mim, Isadora, sempre foi difícil entender como algo tão natural para todas as pessoas com útero, era também um motivo de vergonha perante à sociedade. Parecia que sempre havia um receio na forma como minha mãe tratava essa pauta sempre que falava a respeito, mas esse sentimento nunca se limitou apenas a ela. A forma como as pessoas baixavam a voz ao falar sobre o assunto carregado de censura ou, então, como sempre procuravam sinônimos para evitar a palavra proibida: “estar de chico”, “ficar naqueles dias”, “estar de chuva”. Era como se a menstruação fosse um palavrão assustador que causava arrepios só de ser mencionado.
Até mesmo na escola, sempre senti falta de uma maior orientação sobre como cuidar de meu corpo ao longo do período menstrual. No ensino fundamental, nunca tive aulas que falassem sobre os aspectos práticos da menstruação, era como se até mesmo as professoras temessem as eventuais risadinhas e dúvidas que poderiam surgir ao tocar nesse tabu. Meu primeiro contato com alguma informação acadêmica do tipo foi no segundo ano de ensino médio – época na qual já menstruava há anos – em uma aula dada por um professor, homem, não menstruante, que para ser honesta, não parecia saber muito profundamente sobre aquilo que explicava.
A falta de contato que existe em relação a informações sobre a menstruação faz com que esse tabu – surgido muito antes das gerações de meus professores, de minha mãe ou de minha avó – continue a existir atualmente. O medo de discutir problemas essenciais na vida de quem menstrua faz com que muitos deles sejam esquecidos, trazendo malefícios para a saúde e o bem-estar dessas pessoas. Isso é, justamente, o que acontece com a pauta da pobreza menstrual.
O que é pobreza menstrual?
As pessoas em situação de pobreza menstrual têm acesso limitado aos recursos gerais relacionados à menstruação. Isso engloba bem mais do que apenas os itens de higiene normalmente relacionados a este período. A limitação se estende para o acesso à infraestrutura e conhecimento de qualidade para que as pessoas possam se cuidar de maneira adequada durante a menstruação. Mas não para por aí! Entram na conta também a falta de acesso a banheiros, saneamento básico e , até mesmo, a informações sobre a pauta. Dados de 2021, coletados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), apontam que cerca de 15 milhões de pessoas vivem sem acesso adequado a produtos de higiene menstrual no Brasil, um equivalente a 25% das pessoas menstruantes do país.
Algumas das “alternativas” mais populares para essa falta de acesso direto aos absorventes acabam trazendo problemas ainda mais graves para a saúde íntima das pessoas. Métodos como utilizar jornal, panos velhos, sacos plásticos ou qualquer outro material que possa estar contaminado, quando em contato com a pele, mucosa e o sangue menstrual tornam esse meio um facilitador para que se criem culturas de microrganismos nas partes íntimas dos menstruantes. O resultado disso é uma série de possíveis doenças que podem ser contraídas.
Esse problema foi historicamente negligenciado ao longo de muito tempo. Desde a Roma Antiga, existem registros que mostram a menstruação como um processo rodeado de mitos e preconceitos. Além disso, a maioria das pessoas afetadas pela pobreza menstrual se encontra em algum tipo de categoria de vulnerabilidade social, como as mulheres em famílias de baixa renda, em situação de rua ou carcerária. Em especial indivíduos que sofrem com a discriminação de gênero – como trangêneros e não-binários, que, muitas vezes, são excluídos das pautas sobre menstruação.
Questão econômica
Buscando entender quem são as pessoas mais afetadas pela pobreza menstrual, o doutor em Ciências Econômicas, pela Universidade de São Paulo (USP) e, atualmente, docente do Departamento de Economia, na Universidade Estadual de Londrina (UEL), José Adrian Pintos-Payeras, desenvolveu um projeto de pesquisa com duas alunas, Mayara Almeida e Luana Rosa.
Na época, um projeto de lei que previa a distribuição gratuita de absorventes foi vetado pelo, então, presidente do Brasil, fazendo com que o professor e as discentes se questionassem sobre a justificativa do veto. “O ponto de partida foi identificar, por meio dos dados, se tinham famílias que necessitavam de doação, para, aí, verificar se fazia sentido a oposição do presidente”, conta o professor.
Para essa empreitada, o trio contou com ajuda de softwares estatísticos, além da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). Realizado entre os anos de 2017 e 2018, o levantamento de informações foi responsável por mensurar o consumo das famílias, listando o valor, origem e outros detalhes de todos os itens consumidos em uma casa. A lista inclui alimentos, materiais de construção, remédios, entre outros. “A POF é uma amostra feita pelo IBGE com 58 mil famílias. Elas representam a população brasileira inteira por meio de técnicas de amostragem e estatística. Assim, nos apropriando destes dados conseguimos definir qual é o perfil desses grupos que menstruam”, explica Pintos-Payeras. A partir dessa coleta de dados, a equipe começou a avaliar a forma de aquisição dos absorventes e quais pessoas seriam beneficiadas pelas possíveis doações.
A resposta à pergunta que iniciou a jornada do professor e suas duas alunas você já deve saber. Existem, sim, pessoas que precisam da doação de absorventes no Brasil. Restava, então, traçar as características desses indivíduos. Como resultado, das mulheres que declararam ter despesas com absorventes, 1,4 milhões receberam os itens por meio de doação. Entre esse número, 82% dessas pessoas tinham renda familiar per capita menor do que 1,5 salário mínimo. Na questão racial, 52,5% dos chefes das famílias se autodeclararam pardos, 26,8% se declararam brancos e 19% pretos.
O docente ainda lembra que os resultados podem não refletir o verdadeiro número de mulheres que estão em situação de pobreza menstrual. “Os números podem estar subestimados, porque os dados correspondem apenas às mulheres que conseguiram a doação. Tem muitas pessoas que poderiam estar nessa situação de necessidade e não conseguiram nenhum tipo de amparo”, ressalta o professor.
Vale lembrar que as doações que foram declaradas na pesquisa são todas voluntárias, já que não haviam políticas públicas à época. Por meio de vizinhos, farmácias, mercados e pessoas próximas, o valor total de doações de absorventes no Brasil não chegou a R$ 3 milhões. “Se você pensar, isso é dinheiro para você, dinheiro para mim, é dinheiro para nós, individualmente, mas, para o país, não é nada”, completa Adrian.
E pode até parecer que o gasto com absorventes não é tão expressivo assim. Mas, quando fazemos as contas a longo prazo, os números provam o contrário. Se levarmos em consideração o tempo médio de vida reprodutiva das pessoas com útero, serão quase quatro décadas usando itens de higiene relacionados à menstruação.
Você já parou para pensar o quanto gastou em absorventes ao longo da vida? Existe uma calculadora on-line que pode responder a essa pergunta! Ela fica disponível no site do Museu Dinâmico Interdisciplinar (Mudi), da Universidade Estadual de Maringá (UEM), e pode ser acessada por meio deste link.
Carteiras vazias, uma falta nacional
Voltando às pesquisas, o trabalho do grupo de Londrina não parou nos cálculos acima, não… Por sentirem a necessidade de fazer um recorte mais profundo, Adrian, Luana e Mayara voltaram a atenção aos impactos da pobreza menstrual na vida de meninas de 8 a 18 anos. “80% de todas as famílias que receberam doação, tinham filhas que estavam em idade escolar”, afirma o docente. Segundo Adrian, essa é uma das faces mais perversas da pobreza menstrual, já que impede meninas de frequentarem a escola durante o período menstrual, diminuindo, muitas vezes, as chances de crescimento no mercado de trabalho.
Apenas nos anos em que a última POF foi realizada, 740 mil meninas precisaram da doação de absorventes para passarem de maneira mais adequada pelo período menstrual. Desse total, 92,5% estão em famílias que tinham renda familiar inferior a meio salário mínimo.
E se engana quem pensa que a questão da pobreza menstrual é um problema individual. Pela falta de recursos, as crianças e adolescentes que deixam de ir à escola, por três, quatro, cinco dias, todos os meses, representam uma perda ao crescimento econômico do país. “Só tem uma variável que faz o país crescer de verdade. Pode pegar de qualquer origem, todos os sistemas de crescimento econômico vão falar uma coisa. A variável que faz o país crescer de fato é a educação. É ela que gera pesquisa, desenvolvimento, progresso tecnológico, tantas outras coisas que impactam no capital do país”, afirma o professor de economia.
Quais medidas podem ser tomadas?
Como vimos, para quem está em situação de pobreza menstrual, os projetos vinculados a órgãos públicos fazem toda a diferença na hora de ter um acesso não apenas às condições básicas de saúde, mas, também, à dignidade. São esses que fazem a ponte entre recursos importantes e indivíduos da sociedade que necessitam de um apoio.
O projeto Prevenção e Autocuidado na Saúde Reprodutiva, realizado pelo Mudi, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), tem como objetivo ajudar pessoas que menstruam a alcançar a igualdade menstrual. Atuando desde 2005 e coordenado pela professora Sônia Trannin de Mello, doutora em Ciências Biológicas pela UEM.
A professora define que o projeto iniciou a partir da vontade de disseminar e popularizar conteúdo científico sobre autocuidado e prevenção e, em seus quase vinte anos de existência, a iniciativa já se utilizou de diversas abordagens para cumprir esse objetivo. Além dos atendimentos monitorados na sede do Mudi, são realizadas palestras, cursos e oficinas de redação na escola sobre a temática. A tecnologia se tornou outra grande aliada nessa luta, especialmente, no que diz respeito à disseminação das informações, as lives realizadas por Sônia ficam disponíveis no canal do Mudi no YouTube. Ela destaca, ainda, a existência de uma exposição virtual totalmente dedicada a falar sobre a menstruação e diversas pautas relacionadas a ela.
Além dessas ações, a equipe trabalha com outros projetos de pesquisa e extensão que têm como objetivo produzir mais informações a respeito da pobreza menstrual, seja através da pesquisa bibliográfica ou de campo. Mas o trabalho não fica só no papel! As atividades visam contribuir para definição de políticas públicas e educacionais que possam promover a dignidade, a igualdade de gênero e a saúde reprodutiva com impacto positivo no meio ambiente.
Para o ano de 2024, os planos para os projetos incluem realizar um mapeamento de pessoas em situação de vulnerabilidade dentro da cidade de Maringá, para que, assim, ações mais efetivas possam ser aplicadas de acordo com a necessidade de cada região. Sônia destaca a importância da participação de instituições de ensino nesse combate à pobreza menstrual. “São instituições com competência para pesquisar sobre o tema, formar cidadãos conscientes e engajados. Por meio de seus projetos de extensão, trabalham com a comunidade no sentido de entender suas necessidades para produzir, conjuntamente, um novo conhecimento acessível e que permita o crescimento social e econômico.”
As leis que fazem a diferença
No mês de janeiro, uma conquista para o combate à pobreza menstrual foi alcançada! O Programa Dignidade Menstrual, do governo federal, vai começar a distribuição de absorventes, por meio da Farmácia Popular, de forma gratuita. A iniciativa é prevista pela Lei n° 20. 717/21, que tem o objetivo de garantir a saúde básica menstrual de pessoas com útero. Mais de 31 mil unidades participantes do Programa vão ofertar o item de higiene.
Poderão receber o benefício pessoas com idade entre 10 e 49 anos, que estejam em situação de vulnerabilidade social extrema, estudantes da rede pública de ensino e pessoas em situação de rua. A lista de requisitos completa, pode ser acessada no site do Governo Federal.
Mesmo sendo um grande avanço para a sociedade, vale destacar que alguns setores precisam ter uma participação ativa na iniciativa para que ela funcione. Em uma rápida caminhada por farmácias populares da cidade de Maringá, a professora Sônia Trannin constatou a inexistência do cadastro dessas unidades para receberem os absorventes que serão ofertados. Observando como a evolução ainda acontece em pequenos passos, percebe-se que essas ações carecem de orientações, campanhas de divulgação e, sobretudo, de fiscalização.
O projeto vem para corrigir um cenário ainda calamitoso em nossa sociedade. Distribuir um absorvente vai além de um simples ato de doar um item de higiene, esse é um investimento para o futuro econômico e educacional do país. Se espera que, a partir de agora, mais de 740 mil jovens que menstruam possam ir à escola todos os dias do mês.
Quer saber mais sobre o assunto? Confira essa outra matéria do C² e entenda porque pessoas com útero menstruam.
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Texto: Isadora Monteiro e Gabrielli Ferreira
Colaboração: Luiza da Costa
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
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A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:
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