A primeira vez que ouvi falar em hanseníase foi no final da década de 1970, na minha adolescência. Ainda chamada comumente de ‘lepra’ ou ‘mal de Lázaro’, era carregada de preconceito, a doença mais antiga que a bíblia descreve. Ela chegou na minha família por meio do meu avô, José. Após o diagnóstico, o isolamento passou a ser uma tormenta para o homem na casa dos seus quarenta e poucos anos, e principalmente para nós, os netos, que sempre estavam à sua volta.
Éramos aquela tradicional família de imigrantes italianos de sete filhos e incontáveis agregados, que, aos domingos, se reunia com alegria em volta da mesa para os banquetes preparados pela minha avó Amélia.
Ainda sem entender, de uma hora para outra, vimos meu avô sentar numa mesinha num canto distante e separado da mesa principal, usando seu prato, talheres e copos marcados com esmalte vermelho, cuidado da minha avó para evitar que outras pessoas tivessem o mesmo destino dele. Sempre que a gente sentava à mesa, disfarçadamente, todos olhavam embaixo do prato para ver se não tinha aquela marca do Rebu, nome da cor do esmalte.
Sim, desde antes daquela época já se sabia que a hanseníase era uma doença infecto-contagiosa de evolução crônica que se manifesta, principalmente, por lesões cutâneas com diminuição de sensibilidade térmica, dolorosa e tátil. Estas manifestações são resultantes da ação do Mycobacterium leprae (M. leprae), agente causador da doença de Hansen, que ataca células cutâneas e nervosas periféricas.
Após o tratamento, meu avô nunca mais teve manifestações da doença e, para alívio de toda a família e amigos, estava curado. E ninguém próximo a nós teve hanseníase. Mas algumas pessoas, após o diagnóstico e todo o cuidado, um tempo depois voltavam a apresentar os sintomas da hanseníase. Este era o desafio que se apresentava já naquela época e, de certa forma, perdura até hoje.
Imunogenética
E foi Instigada pelas características próprias e incomuns da hanseníase, que a professora e pesquisadora Jeane Eliete Laguila Visentainer, do Departamento de Ciências Básica da Saúde, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), ainda no mestrado, nos anos 1990, começou a se aprofundar no estudo da bactéria M. leprae que se apresenta na forma de bacilo.

Com ampla experiência na área de Imunologia, com ênfase em Imunogenética e Imunohematologia, Jeane coordena uma pesquisa que busca a possível associação genética dos genes da resposta imunitária com a imunopatologia da hanseníase.
Trocando em miúdos, seria como supor que algumas pessoas teriam genes que não estariam predispostos a ‘combater’ o bacilo. Diferente de outras doenças infecciosas, em que o corpo fica imune a novas manifestações, na hanseníase isso não aconteceria para algumas pessoas. E a resposta pode estar na genética de cada indivíduo.
“A hanseníase é uma doença que a gente gosta de estudar porque a resposta imunológica, que é a resposta de defesa do nosso organismo, é crucial. Porque o indivíduo vai para um polo da doença, que é um polo onde você vai ter uma gravidade maior com uma alta carga da bactéria, que a gente chama de polo virchowiano1 ou vai para o outro polo, onde há uma baixa carga bacilar, que se chama tuberculoide2”, explica.
O que já se sabe é que a genética da pessoa infectada, que os pesquisadores chamam de ‘hospedeiro’, é responsável pelo nível de imunidade (resposta de proteção ou susceptibilidade à doença). Muitos genes já foram identificados com evidências substanciais em apoio à sua relação direta com a hanseníase.
Entre eles, os genes HLA-DR/DQ, LTA, IL10, PRKN/PACRG, NOD2, LACC1/CCDC122, SOD2, NEBL, GATA3, IFNG e LR1 foram associados à hanseníase em amostras populacionais brasileiras, a maioria deles desempenhando papéis importantes relacionados ao sistema imunológico do hospedeiro.
“A recorrência da hanseníase é definida como pacientes que apresentam novos sinais e sintomas clínicos da doença ativa após terem sido tratados adequadamente com um regime terapêutico padrão e receberem alta como curados”, justifica a pesquisadora.
Desta forma, o papel funcional que teriam os marcadores genéticos nesses genes merece maior investigação. O objetivo principal do projeto é estudar a relação entre mutações nestes genes e suas associações aos endofenótipos3 e recorrências da hanseníase.
Por sua relevância, a pesquisa da UEM integra o Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação (NAPI) Genômica, que reúne pesquisadores do Paraná em um ecossistema de inovação, envolvendo o Estado, a Academia, a iniciativa privada e a sociedade civil. O NAPI Genômica surgiu a partir do Instituto de Pesquisa do Câncer (IPEC), em Guarapuava, que hoje é uma das bases tecnológicas para pesquisas em genoma no Estado.
Estigma e hereditariedade
Como é comum na ciência, o sobrenome de Gerhard Henrick Armauer Hansen dá nome à doença, por ter identificado o agente causador da hanseníase, em 1873. Naquela época, a doença já era considerada, em grande parte, de origem hereditária ou devido a miasmas4 gerados a partir das más condições ambientais. Hansen concluiu, com base em estudos epidemiológicos, que a hanseníase era uma doença específica com uma causa específica.

Na década de 1960, a lepra passou a ser chamada de hanseníase pelos gestores e operadores dos sistemas de saúde no Brasil, com o objetivo de facilitar a comunicação e desmistificar a doença. Antes do surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS) com a Constituição Federal de 1988, o Brasil já tinha iniciativas institucionais que determinaram o fechamento dos hospitais colônia para a internação compulsória daqueles acometidos pela doença.
Já se sabia que era transmitida por meio da respiração e dependia do contato constante, sendo relacionada à pobreza e aos locais onde várias pessoas dividem a mesma casa. O diagnóstico e tratamento precoces são essenciais para prevenir as possíveis sequelas e incapacidades físicas permanentes, responsáveis pelo estigma5 e preconceito até hoje associados à doença.
O Boletim da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2023, mostra que, a cada ano, são registrados cerca de 200 mil novos casos da doença em todo o mundo. Índia, Brasil e Indonésia são os três países que têm os maiores números de casos, correspondendo a 80% do número mundial.
O Boletim Epidemiológico de Hanseníase de 2024, divulgado pelo Ministério da Saúde (MS), aponta que o número de casos novos reportados passou de 10 mil. Num recorte de gênero, a maioria dos casos novos ocorre em pacientes homens, 55,6%. Já entre faixa etária, 53,9% dos infectados tinham entre 30 e 59 anos, 24,6% com 60 anos ou mais e 15,2% de 15 a 29 anos de idade.
Uma das principais características da hanseníase, que de certa forma dificulta e prolonga a pesquisa, é que o indivíduo começa a manifestar os sintomas a partir de 10 anos do contágio. Isso mesmo, uma década entre o contato com o bacilo e os primeiros indícios percebidos na avaliação clínica e exames laboratoriais para fechar o diagnóstico. Nesse período, o portador pode estar transmitindo, sem apresentar sintomas.
Por isso, quando uma criança de até seus 15 anos apresenta os sinais clássicos, imediatamente após o diagnóstico, é feita uma busca ativa na família e um estudo do ambiente que ela vive para procurar quem está transmitindo. O número de crianças infectadas tem aumentado no Brasil na proporção de 9,9% entre meninos e meninas, de acordo com dados de 2022, do MS.
Para saber mais detalhes sobre a hanseníase, temos disponível o Podcast Conexão Hanseníase nas principais plataformas de áudio.
Pesquisa
É neste contexto complexo que começa a incursão pela hanseníase de Érica Aparecida Pereira, na Academia. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Biociências e Fisiopatologia (PBF), na linha de pesquisa de Imunogenética, no Laboratório de Imunogenética da UEM, Érica é orientanda da professora Jeane na empreitada que busca descobrir marcadores genéticos para entender as razões da reincidência, ou recidiva, de casos em alguns portadores.
“Os estudos já têm mostrado que esse número de pessoas que voltam a ter a doença é influenciado por fatores genéticos. Minha pesquisa do doutorado faz parte de um projeto multicêntrico, em que se estuda várias populações para verificar a associação desses genes que podem estar influenciando para que as pessoas tenham mais chance de ter a recorrência da doença”, detalha.

A pesquisa desenvolvida na UEM abrange populações do Paraná, especialmente na região de Maringá, encaminhados pela Associação dos Municípios do Setentrião Paranaense (Amusep), e de Curitiba, com professores da Pontifícia Universidade Católica (PUC).
Há ainda a participação de pacientes de Manaus, no Amazonas, e Uberlândia, em Minas Gerais. Ao todo, são 250 pacientes que estão registrados no estudo, de diferentes regiões do país e com diversidade genética.
Érica explica que o estudo segue um cronograma e determinados protocolos em todas as regiões. Começa na identificação dos casos onde há recidiva, geralmente na Unidade Básica de Saúde (UBS), coleta de material, fechamento do diagnóstico e análise em laboratório para a coleta de dados.
Nesta última etapa, a pesquisa no Laboratório de Imunogenética irá comparar dois grupos de pacientes: os que são curados e não apresentam recidiva da doença dentro de 5 anos e quem, após o tratamento e cura, volta a manifestar a doença pela mesma bactéria. A taxa de reincidência saiu de 30% para 51%, segundo a OMS, o que reafirma a necessidade de se entender as causas e corrigir as falhas no tratamento dos fenômenos de recorrência.
“A partir da identificação de marcadores genéticos nas recidivas, será possível realizar testes moleculares mais rápidos e eficazes, a exemplo de outros marcadores já caracterizados, possibilitando o ajuste e direcionando o tratamento. Assim, será possível predizer a evolução da doença”, adianta a doutoranda.
De acordo com Érica, o estudo dos casos de recidiva é fundamental para chegarmos a um indicador de eficácia de tratamento e, num futuro próximo, a uma vacina para ajudar a enfrentar a ocorrência de novos casos e, claro, a reincidência da hanseníase.
Nunca é demais lembrar que a desigualdade social ainda faz com que a hanseníase seja uma doença relevante. Todo problema que temos de saúde pública, de saneamento e pessoas vivendo em locais muito aglomerados, leva ao aumento de uma doença transmissível. Por isso é importante o trabalho de Jeane e Érica, que estará disponível para balizar políticas públicas de enfrentamento da doença.

Por fim, quero voltar ao meu avô José. Sempre depois da escola, passava na casa dos meus avós. Dormindo num cômodo no fundo da casa, eu chegava no final da manhã e via meu avô escutando o rádio de pilha, geralmente futebol, olhar perdido e com aqueles dois comprimidos brancos enormes que ele tinha que tomar todo santo dia.
Não consigo precisar quanto tempo se passou entre o diagnóstico e a cura. Só sei que a partir de um dado momento, meu avô estava liberado para sentar à mesa, voltar a dormir na casa e, o mais importante, abraçar os netos. E eu pude, finalmente, sentar ao seu lado para ouvir no radinho de pilha nossos times (rivais) jogando.
Desde aquela época, nunca mais falei dessa doença. Agora, com todas essas informações, coloco a hanseníase no meu radar, novamente.
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Texto: Silvia Calciolari
Revisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Juliano Filho
Supervisão de arte: Hellen Vieira
Edição Digital: Guilherme Nascimento
Glossário
- Virchowiano – O polo virchowiano é uma forma da hanseníase que se caracteriza por ser multibacilar e disseminada. É a forma mais disseminada da doença, de evolução mais severa, porém, é curada com o tratamento adequado. ↩︎
- Tuberculoide – O polo tuberculoide da hanseníase é uma forma da doença que afeta principalmente a pele e os nervos. É caracterizada por poucas lesões cutâneas bem delimitadas e de evolução menos severa e, é curada com o tratamento adequado. ↩︎
- Endofenótipos – São características internas que estão associadas a doenças como a hanseníase e que podem ser medidas biologicamente, bioquimicamente, neurofisiológica ou cognitivamente. ↩︎
- Miasma – É uma impureza presente no ar que pode causar doenças e pestes. ↩︎
- Estigma – Trata-se de uma visão negativa e muito arraigada, numa sociedade, a respeito de determinada prática, comportamento, doença ou características, geralmente, invisíveis. ↩︎
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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