Por que o Brasil precisa de uma reforma tributária?

Antes de tudo, para garantir a justiça social

compartilhe

Fui assistir à peça “O Auto da Barca do Fisco” e minha mente passou a pensar recorrentemente em um tema que vem mobilizando os brasileiros. Pelo menos, boa parte da nossa população: a reforma tributária.

O espetáculo, encenado no Teatro Universitário da Universidade Estadual de Maringá (TUM/UEM), traz um texto que busca colaborar com o conjunto de ações do Projeto de Educação Fiscal, do Museu Dinâmico Interdisciplinar (MUDI/UEM). A ideia é sensibilizar as pessoas para “a função socioeconômica do tributo”, diz uma reportagem que achei sobre o projeto.

Para elaborar o roteiro, os autores buscaram inspiração no “Auto da Barca do Inferno”, peça do teatro medieval, escrita por Gil Vicente, e na obra crítica e atual, “O auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna. O enredo aponta que é necessário investir na valorização de atitudes eticamente responsáveis em relação aos impostos, que devem ser pagos, mas cobrados de forma justa. É aí que cheguei à reflexão sobre a reforma tributária que está tramitando no Congresso Nacional e é foco desta reportagem que havia sido “encomendada” a mim. Afinal, para que ela serve?

Fotografia colorida da peça de teatro “Auto da Barca do Fisco”. Na imagem há dois homens em primeiro plano, caracterizados de personagens da esquerda para a direita, respectivamente, prefeito corrupto (sorrindo e fazendo beleza com o polegar) e diabo (vestido com uma roupa toda vermelha e preta, com uma tiara na cabeça com dois chifres vermelhos, e maquiagem vermelha) também faz beleza como o polegar. Em segundo plano há uma mulher em uma plataforma elevada sorrindo para os dois enquanto segura uma pasta de papéis, em sua frente está aberto um livro.
Peça teatral “Auto da Barca do Fisco” (Foto/Maysa Ribeiro)

Segundo o coordenador do Projeto de educação Fiscal do Mudi e autor do texto do “Auto da Barca do Fisco”, professor Marcílio Hubner de Miranda Neto, “para que a reforma tributária que está sendo proposta seja justa precisa aliviar o peso da carga dos impostos sobre os mais pobres”. 

Marcílio lembra que, no Brasil, até muito recentemente, os mais vulneráveis estavam gastando em torno de 53% do que ganhavam com impostos, que estão embutidos nos preços dos produtos e serviços que consomem. Quem gasta menos nas camadas mais pobres, segundo Hubner, despende 40% do que ganha pagando impostos, o que não é justo.

De acordo com o professor da UEM, o produto que o pobre precisa ou algumas de suas necessidades, do ponto de vista financeiro, são altamente tributados.

Fotografia colorida 	de cinco pessoas em cima de um palco, respectivamente da esquerda para a direita, o professor Marcílio Hubner de Miranda Neto, a cantora Márcia Capelette, o cantor Tijolo (José) está segurando um violão enquanto ri, a cantora Mari Tenório e o cantor Eneias.
Evento de educação fiscal com a grupo Abaecatu (Foto/Arquivo Pessoal)

“Nós, por exemplo, compramos um carro ou uma moto, e escolhemos errado. Por quê? Porque você escolheu um objeto que paga imposto. Se você tivesse escolhido comprar um helicóptero, não pagaria imposto. Um iate não paga imposto. Ou seja, aquilo que realmente só é utilizado pelas camadas mais ricas está sem carga tributária ou com carga com um peso menor”, explica Hubner.

Na verdade, o professor prega que é necessário simplificar o sistema tributário brasileiro, que é “um dos mais complexos do planeta”, o que vai facilitar, inclusive, o combate à sonegação de impostos e, quem sabe, “se os interesses de quem está no Congresso não conseguem elaborar uma proposta de reforma que seja mais justa, com equidade”.

Equidade não é igualdade. Quer saber o que este termo significa? Assista ao vídeo abaixo.

Para discutir esses temas que foram levantados pelo autor do “Auto da Barca do Fisco”, conversei com o outro professor da UEM, que hoje atua na Controladoria da Instituição, Carlos Henrique Marroni. Ele começou nosso papo lembrando que as teorias que discutem impostos trazem como referência o pai do liberalismo econômico, Adam Smith. Para o escocês, o sistema tributário, isso em 1770, tinha que ser simples, ter justiça e liberdade econômica, nas palavras dele: são os princípios da neutralidade, da simplicidade e da justiça. Quando avaliamos esses três pontos no nosso sistema tributário vemos que é necessário um processo de reforma tributária. 

Em primeiro lugar, segundo Marroni, o nosso sistema tributário brasileiro foi se tornando cada vez mais complexo, amplo e difícil, porque criamos muitos tributos, que são independentes, não existe uma centralização de quem arrecada cada um deles. Lá se foi o princípio da simplicidade.

O professor destaca que o tributo não é algo ruim, o que pagamos se torna fonte de financiamento das ações do governo, que nós chamamos de políticas públicas. Podemos até questionar que os serviços públicos não têm lá a qualidade que a gente queria, mas dão conta de direitos básicos como saúde e educação. 

Unificação

No Brasil, os tributos estão organizados, de forma mais superficial, em tributos sobre consumo; renda e propriedade; folha de pagamento. Mas há meandros1 enormes neste cenário, especialmente, quando se pensa em quem arrecada e gere esse volume de recursos. E mais, lembra o professor Marroni:

Fotografia colorida de um homem usando óculos, com barba e sorrindo. Ele veste um terno na cor cinza.
Professor Carlos Henrique Marroni (Foto/Arquivo Pessoal)

“O que os empresários pagam de imposto na folha de pagamento, representa 25% da arrecadação tributária. Se a gente somar o tributo da folha mais o do consumo, já dá praticamente 70 e poucos por cento do que nós temos de arrecadação no país. Isso precisa ser revisto para trazer mais justiça à sociedade. 

Por exemplo, aqueles que contratam, que dão empregos, deveriam ter mais benefícios. Esse é um aspecto que a gente precisa levantar, que tem o nome de ‘desoneração da folha’ que é importante para fortalecer nossa economia. Temos que rever os impostos que incidem no bolso do empresário para abrir novos postos de trabalho e colocar, assim, mais pessoas com potencial de consumo no cenário brasileiro”, descreve o controlador da UEM. 

Pronto, lá se foi mais um princípio pelo ralo abaixo. O da neutralidade. A neutralidade tributária prevê que políticas públicas, especialmente as tributárias, não devem causar perda social. Por exemplo, tributos que são incorporados nos custos tornam o produto nacional mais oneroso2 em relação ao de outros países, o que resulta em perda de competitividade pelas empresas e menos produção, renda e emprego no país.

O conteúdo da Reforma, então, proposto pelo governo, é criar o IVA, que é o Imposto de Valor Agregado. A parte que será arrecadada pelo governo federal vai ser chamada de CBS, que é Contribuição sobre Bens e Serviços. E a dos ‘entes federados’, ou seja, os estados e municípios, vai ganhar o nome de IBS, Imposto sobre Bens e Serviços.

A imagem contém o título "Tributos que estão com os dias contados" e lista cinco tributos que estão em destaque. Abaixo do título, cada tributo é exibido em uma cor diferente:<br>IPI - Imposto sobre Produtos Industrializados (em uma caixa laranja).<br>ICMS - Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (em uma caixa roxa).<br>PIS - Programa de Integração Social (em uma caixa amarela).<br>COFINS - Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (em uma caixa laranja clara).<br>ISSQN - Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (em uma caixa azul claro).<br>No rodapé da imagem, há créditos para "Conexão Ciência" e "Arte: Any Veronezi".<br>

A reforma propõe a unificação do IPI, o ICMS, PIS, COFINS e o ISSQN (veja o nome completo no infográfico acima). Hoje, o ICMS é arrecadado pelo Estado, o ISS pelos municípios e os outros três, o PIS, a COFINS e o IPI, são do governo federal. Os cinco impostos que existem hoje seriam substituídos por dois IVAs: 

• No lugar de três tributos federais (PIS, Cofins e IPI), entra a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal;

• No lugar do ICMS (estadual) e do ISS (municipal), entra o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), com gestão compartilhada entre estados e municípios.

Hoje, a gente paga esses cinco impostos de forma acumulativa. Quando a gente compra uma televisão, pagamos IPI o ICMS, PIS e COFINS. Esses quatro vão dentro do preço. Não pense que é um ônus muito grande para os empresários. Na verdade, é um preço muito grande para o consumidor, ele é quem paga. Porque ao estabelecer o preço, o empresário incluiu os porcentuais dos impostos.

A imagem contém o título “Exemplo de não cumulatividade do IVA”. O infográfico que explica o conceito de “não cumulatividade” do IVA (Imposto sobre Valor Agregado) com uma alíquota fictícia de 10%. O objetivo é demonstrar como o imposto é cobrado em cada etapa da cadeia produtiva sem ser acumulado, ou seja, evitando a tributação repetida sobre o mesmo valor. Explicação de não cumulatividade: “Consiste em não tributar mais de uma vez as operações que compõem uma mesma cadeia produtiva.” O infográfico divide o processo em 5 etapas, cada uma representando uma fase da cadeia produtiva, com os seguintes elementos:<br>Etapa 1: Produtor Rural - Vende o algodão, valor final: R$ 55, IVA pago: R$ 5<br>Etapa 2: Indústria de Tecelagem - Transforma o algodão em tecido e o vende, valor final: R$ 66 e IVA pago: R$ 1 (descontando o valor já pago pelo produtor rural)<br>Etapa 3: Fábrica de Roupas - Transforma o tecido em camisa e o vende, valor final: R$ 110 e IVA pago: R$ 4<br>Etapa 4: Loja de Roupas - Compra a camisa e a revende ao consumidor final, valor final: R$ 220 e IVA pago: R$ 10<br>Etapa 5: Consumidor - Fase final para aquisição do produto.<br>Resumo: O consumidor final paga um total de R$ 20 de IVA, que é a soma do imposto recolhido em cada uma das etapas anteriores: R$ 5 (Produtor), R$ 1 (Indústria), R$ 4 (Fábrica) e R$ 10 (Loja). O infográfico mostra graficamente a repartição do imposto em cada etapa, destacando que o IVA pago na etapa anterior é deduzido na etapa seguinte, evidenciando o conceito de não cumulatividade.<br>

Se aprovada a Reforma tributária, a cadeia produtiva vai ser cobrada sobre o CBS e IBS, e o tributo sobre o consumo, o IVA. 

“A ideia é implantar um processo de simplificação, que cause uma redução no tributo de consumo. Vai sobrar mais dinheiro para as pessoas, o que faz aumentar o consumo, compensando qualquer queda de lucro das empresas que vão vender mais. Se aumenta o consumo, vai aumentar a geração de renda e emprego”, explica Marroni.  

Alíquota

Mas, quanto vamos pagar de imposto? Para determinar a alíquota; isto é, o percentual de pagamento dos impostos, os técnicos do governo fizeram um cálculo da arrecadação média do Produto Interno Bruto (PIB), no período de 2016 até 2020. A conclusão é que esses cinco tributos, o IPI, o ICMS, o ISS, o PIS e a COFINS, juntos representaram, na média do período, 12,5% do PIB. Em outras palavras, o que se produziu de riqueza no país. 

Então, a proposta inicial do governo é que a Reforma fosse feita e que, se possível, o percentual de impacto no PIB se mantivesse até 12,5% ou fosse menor para não haver impacto nas contas públicas. A alíquota proposta, então, em princípio, para o IVA, especificamente, foi de 25%. Isso quer dizer que, se aprovada a proposta, toda vez que a gente for comprar alguma coisa, vai pagar esse percentual de imposto.

O problema é que essa alíquota já está sendo questionada; isto é, estimada num percentual maior. Por quê? Porque existe uma discussão de diminuir a cobrança de impostos sobre itens da cesta básica. Quanto mais produtos forem incluídos na cesta, maior tem que ser a alíquota, para compensar uma queda na arrecadação. Porém, se for confirmada uma alíquota de 25% para o futuro IVA, já significaria que o Brasil terá uma das maiores do mundo.

Imagem colorida, no qual há uma caixa que tem a frase em fonte marrom “Cesta Básica”, com alimentos como, dois litros de óleo, um saco de arroz, um saco de feijão, dois pacotes de macarrão e um litro de detergente.
A cesta básica é um recurso fundamental para várias famílias (Foto/Weeb)

Na verdade, a Reforma já foi aprovada pelo Congresso, o que falta é a regulamentação, o que ocorre por meio de uma Lei Complementar Federal. Essa ordenação é que vem sendo discutida, porque vai definir qual será a base de cálculo e quais serão as alíquotas para o imposto “novo”, o IVA. 

É aí, na base de cálculo, que se define o que vai ser tratado como cesta básica, lembra o professor Marroni. Muitos produtos estão querendo entrar na cesta. E os lobbies3 são bem fortes. Por isso, em torno dessa questão, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, fez uma sugestão: em vez de se criar a cesta básica, aqueles que estão em vulnerabilidade social deveriam receber um cashback. No lugar de se fazer uma lista de produtos, foca-se em quem precisa, devolvendo o imposto pago para uma fatia da população. 

Para Marroni, o pensamento de Eduardo Leite é mais coerente. Porque quem ganha mais vai pagar mais, efetivamente. Se a pessoa precisa de recursos para poder consumir carne, o governo deve fazer repasses, por meio do cashback, para que essa população em vulnerabilidade social consiga ter acesso ao produto. 

No entanto, o professor Marcílio do Mudi faz a seguinte ressalva sobre a questão do cashback. A proposta que se discute na Reforma é que esse sistema vai beneficiar quem tem renda familiar de até meio salário-mínimo.

“Viver com até meio salário-mínimo é viver muito abaixo da linda pobreza. Ou seja, mais uma vez, a reforma tributária não parece que vai ser justa. Por isso, que lá na peça, uma das falas é: ‘esperamos que a reforma tributária seja justa e alivie o peso sobre os ombros dos mais pobres’”, reforça Hubner. 

Justiça

Aqui entramos em outro princípio fiscal proposto por Smith. Falando em justiça social, a gente vai chegar também nas discussões sobre as mudanças no imposto sobre renda e propriedade, tão necessárias. Nesse caso, ser justo seria considerar a capacidade contributiva de cada pessoa. Por exemplo, se cobra 3,5% de um sujeito que compra uma motoneta pequenininha para poder trabalhar. Estes mesmos 3,5% são cobrados de quem adquiri uma Ferrari ou um Porsche. O tributo deveria ser progressivo, depender da capacidade contributiva.

Imagem colorida de uma mesa branca com dois carrinhos de brinquedo, uma calculadora, moedas e um celular mostrando na tela escrito “IRPF”. No primeiro plano do lado direito há uma mão branca segurando notas de cem reais na mão.
Os impostos de renda são cobrados na maioria dos produtos (Foto/Weeb)

Essa equidade acontece, por exemplo, na cobrança do imposto de renda. Paga mais, quem ganha mais. Certo que se reivindica a criação de outras classes, alíquotas maiores para tributar mais quem ganha mais e menos quem ganha menores salários. Mas o sistema segue a lógica da progressão.

“É a justiça social, que é o que a gente briga. Aí é que o pessoal não entende. Quando se fala de justiça, não é que todo mundo tem que ser igual, mas o ponto de partida tem que ser igual para todo mundo. Esses dias atrás, o meu menino perguntou sobre o que é meritocracia? Respondi que é uma forma disfarçada de esconder que alguns começam sempre com vantagem. Não teve mérito, não. É que ele largou na frente. 

Quem teve mérito foi aquele que estava lá atrás e conseguiu chegar junto. Desfavoravelmente, conseguiu alcançar o outro, que largou na frente. Então, quando a gente fala de justiça, é todo mundo largar da mesma posição, em igualdade de condições. O complicado é ter um parâmetro de partida. Isso que as regras e a Reforma podem nos trazer no que diz respeito ao pagamento de impostos”, descreve o controlador da UEM. 

O professor Marcílio, do Mudi, ainda lembra da sonegação de impostos, que pesa muito para os empresários honestos. Estamos discutindo como equilibrar o orçamento para a retirada de tributos da cesta básica ou de algum produto essencial, mas é sabido que para cada real de imposto pago, 40 centavos é sonegado. 

“A grande pergunta é, quem hoje está sonegando esse dinheiro? Com certeza não é o dono da mercearia ou a senhora que tem uma lojinha na esquina. São grandes sonegadores, muitos deles financiadores de campanhas políticas. O Congresso, na grande maioria das vezes financiado pelo grande capital, muitas vezes com o dinheiro de pessoas que sonegam. A justiça social só virá quando o capital estiver a serviço da sociedade”, finaliza o professor.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Ana Paula Machado Velho
Revisão: Maysa Ribeiro Macedo
Edição de Vídeo: Sabrina Mendes Heck
Arte: Any Veronezi
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

Glossário

  1. Meandros: disfarces, voltas, complicações, desvios, enredos, ramais, sinuosidades. ↩︎
  2. Oneroso: que impõe, envolve ou está sujeito a ônus, encargo, obrigação. ↩︎
  3. Lobby: é a prática de influenciar decisões políticas, administrativas e legislativas por meio de uma ação direta junto às autoridades públicas como prefeitos e deputados. ↩︎

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

Gostou do nosso conteúdo? Nos siga nas nossas redes sociais: Instagram, Facebook e YouTube.

Edição desta semana

Artigos em alta

Descubra o mundo ao seu redor com o C²

Conheça quem somos e nossa rede de parceiros