Por um mundo sem prefixos para todos, todas e todes

‘Conforme’ e ‘além’ são afirmações de gênero cada vez menos importantes quando o assunto é educação sexual de verdade

Você se lembra das aulas de gramática do ensino fundamental, que muitos leitores cursaram como sendo o primeiro grau, nas quais aprendemos as definições das palavras? Faz tempo, né? Mas aposto que, como bom aluno, você sabe o que são prefixos. Não? Eu te ajudo: são adjetivos com dois significados bem marcantes. Podem ser tanto algo “fixado anteriormente; prefixado, predeterminado”, quanto “feito com rigor, exato, preciso”. Pronto, primeira parte da lição concluída.  

Agora a segunda: você já se perguntou o porquê dos prefixos nas palavras Cisjordânia e Transilvânia? Dois segundos para pensar. Acertou quem respondeu “porque identificam os respectivos locais”. O primeiro é “conforme” a Jordânia, país que anexou o referido território na Guerra Árabe-Israelense de 1948. O segundo, a terra do Conde Drácula, está “além” da floresta, uma região montanhosa no centro-norte da Romênia.

Não, este não é um texto sobre língua portuguesa, mas sobre a existência e a dignidade de muitas pessoas que se percebem além do que foi predeterminado, prefixado e feito com rigor. No mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, falar sobre transexuais é dever de ofício em busca de uma vida sem prefixos, para todas, todos e todes.  

Começando por reconhecer a educação sexual como fundamental para compreender a cisgeneridade – o formato esperado de acordo com a genitália fêmea/vulva, macho/pênis – e o que a transpõe – o corpo dissidente, aquele desencaixado dos anseios sociais. 

Eliane Maio, psicóloga com pós-doutorado em Educação Escolar, foi professora da UEM por 30 anos, onde criou e ainda coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Diversidade Sexual – Nudisex. Para ela, crianças vestindo rosa imitando doninhas de casa, ou de azul visitando galáxias distantes são pequenos exemplos capazes de engessar almas em corpos que divergem, provocando dor e abrindo espaço para todo tipo de agressão, física ou verbal.

“Não é a vulva ou o pênis que definem o que a pessoa quer ser, ela poderia decidir”, pondera. Parece simples, mas, na prática, a teoria é outra. O Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais e travestis, desonroso posto há 14 anos consecutivos. Segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 131 pessoas trans e travestis foram assassinadas em 2022, e 20 tiraram a própria vida em decorrência da discriminação e do preconceito.

No entanto, seres humanos não nascem sexualizados, aprendem na cultura em que vivem. Mais um motivo que desabona a indefensável objeção à educação sexual – séria e de qualidade – nas escolas brasileiras. “Educação sexual é conhecimento do corpo a fim de lidar com abusos e violências, aprendizagem para ter prazer enquanto ser humano e, principalmente, igualdade de gênero, não importa se macho ou fêmea”, explica Eliane.  

Neste sentido, uma ação pedagógica ousada assumida pela sexóloga e aguerrida militante em defesa das garantias legais e das pessoas LGBTQIA+ dentro da UEM completa 10 anos em 2023. A Resolução 030/2013 permitiu o uso do nome social por alunos trans e travestis, abrindo um caminho sem volta no ambiente acadêmico e inspirando outras instituições de ensino superior. 

“O fiz pela minha Danutcha”, revela sorrindo a forma carinhosa com a qual se refere à ex-aluna, primeira travesti a usar o nome social na universidade. Graduada em Pedagogia e servidora pública de um município vizinho, “Danutcha” é exemplo real do mundo que Eliane constrói com a ciência à qual dedicou a vida acadêmica. “Anseio pelo dia em que pessoas serão apenas pessoas, sem prefixos, ocupando os espaços que lhes pertencem por direito, porque existem.”

Aprender para ensinar 

Se há buracos no ensino da educação sexual na cisgeneridade, que dirá em corpos dissidentes. A propósito, o Nudisex/UEM promove em abril, de 26 a 28, o VIII Simpósio Internacional de Educação Sexual, com o tema “Corpos em dissidência: a diferença nas educ(ações) democráticas”. Confira a programação e inscreva-se até o dia 24 aqui.

Eliane Maio, coordenadora do Nudisex/UEM
Eliane Maio, coordenadora do Nudisex/UEM (Foto/Maysa Ribeiro)

O direito vai aonde pessoas trans estão 

Samantha Campana não veio da Transilvânia, mas viveu num corpo dissidente e foi uma pessoa além. Do sexo biológico, do nome registral e das expectativas sociais sobre quem ela deveria ser. Vítima de latrocínio (roubo seguido de morte) no final de janeiro de 2023, a jovem de 23 anos, que se mudou para Maringá vinda do interior do Estado para estudar e trabalhar, morreu sendo no papel o que não correspondeu à sua existência. 

A garçonete foi uma das atendidas no mutirão “Meu nome, meu direito”, promovido pela Defensoria Pública do Paraná (DPE-PR) para mudança de prenome e gênero, dois meses antes de ser assassinada. A exemplo de mais de 70 pessoas transexuais, Samantha foi orientada sobre a documentação necessária à efetivação do estabelecido no Provimento 73/2018, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que autoriza a mudança nos Cartórios de Registro Civil. Além de Maringá, ação semelhante foi feita em Curitiba, Foz do Iguaçu, Guarapuava e Apucarana. 

Emília Fugiwara, psicóloga da área de Família da DPE-PR, surpreendeu-se positivamente com o número de pessoas em busca de informações sobre seus direitos, a maioria mulheres trans, e destacou o marcante sentimento de conquista e alegria estampado nas expressões de quem passou pelo serviço. “’Você não imagina o quanto é importante para mim’ foi o que mais ouvimos”, conta. 

A assistente social Andréia Andretto, que integra a equipe da área de Família da DPE-PR, enxergou na felicidade por alcançar o direito à existência social o símbolo de um desejo muito verdadeiro. “Muitas pessoas não sabiam nem onde buscar o direito previsto em lei, muito menos o que fazer caso este não fosse garantido.”  

Samantha provou o gostinho bom do direito que uma fatalidade a impediu de efetivar. O que faltou em vida, a morte tentou redimir. De acordo com o boletim policial, as primeiras notícias publicaram o nome masculino, erro rapidamente reparado. O pouco que se torna muito quando não se tem nada. Samantha Campana, presente! 

⬇️Acesse aqui para conhecer o Guia de Orientação à Retificação de Prenome e Gênero:

Samantha Campana morreu sem conseguir retificar nome e gênero (Foto/Arquivo pessoal/Facebook)

UEM e corpos dissidentes, mozão antigo

O relacionamento da UEM com corpos dissidentes não é de hoje.  No final dos anos 1980, a graduada em direito prata da casa e recém-mestre Tereza Vieira concedeu uma entrevista a uma emissora de tv local sobre mudança de nome, tema do mestrado defendido em São Paulo. O cenário foi o campus sede, onde ela atuava como professora colaboradora.

Dias depois, um telefonema na secretaria do Departamento de Direito a colocou em contato com a “moça de Maringá”, a primeira mulher trans que ela conheceu pessoalmente. “Me chamou atenção o quão feminina ela era”, relembra a professora, atualmente titular das disciplinas de bioética, no curso de medicina e direitos das minorias e grupos vulneráveis, no mestrado em DireitoProcessual Civil e Cidadania, da Unipar.

Ao contrário da “moça de Maringá”, que vive discreta e reservadamente mesmo depois de retificar prenome e gênero, Tereza tornou-se nacionalmente conhecida pela ação judicial mais famosa dentre as quase 350 ajuizadas para garantir às pessoas trans o direito de existir socialmente. Graças à advogada formada pela UEM, a modelo Roberta Close ganhou o direito de assinar Roberta Gambine Moreira.

Tereza assumiu o caso Close depois da derrota da ação anterior. Na década de 1990, transexualidade e transição de gênero eram ficções. Recém-saído da ditadura militar, os tempos eram difíceis no país e no restante do mundo não era fácil. Na Europa, retificar nome e gênero só era possível se a mudança também ocorresse fisicamente. “O Estado obrigava a submissão de pessoas trans à cirurgia para não haver risco de voltar para o corpo anterior”, explica ela. Anos depois, tamanha violência foi cobrada nos tribunais da Suécia. 

Tereza doutorou-se pela PUC-SP/Université Paris II (Panthéon-Assas), e pesquisou em 14 países, ampliando os estudos para mudança de nome e gênero. De volta ao Brasil, acompanhou bem de perto as mudanças sociais, médicas e legais relacionadas ao tema – que incluíram a condenação do médico, que fez a primeira cirurgia numa pessoa trans, por lesões corporais e a inclusão da transexualidade na classificação internacional de doenças – CID 10, até que, em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a mudança de nome e gênero administrativamente. Surgiu, então, o Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que regulamentou  o fim da mutilação física, das perícias, dos pareceres médicos, da autorização judicial. Por fim, em 2022, entra em vigor a CID 11, despatologizando a transexualidade, denominando-a “incongruência de gênero” e mantendo-a entre os problemas relacionados à saúde sexual, não mais entre os transtornos mentais.

Numa tentativa de tornar este texto menos chato, algumas mulheres trans foram procuradas para contar suas trajetórias. A “moça de Maringá” foi uma delas. A resposta enviada por whatsapp foi definitiva e resume bem o título e o objetivo desta matéria: “aquilo já não faz parte da minha vida faz tempo! Graças a Deus.”

Feliz 8 de março!

Tereza Vieira viu bem de perto as mudanças sociais, legais e médicas relacionadas à transexualidade
Tereza Vieira viu bem de perto as mudanças sociais, legais e médicas relacionadas à transexualidade (Foto/Juliana Daibert)

Equipe desta página

Texto: Juliana Daibert
Arte: Maylon Correia
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

Igualdade de Gênero
Educação de Qualidade