Tem mulher na Filosofia, sim!

Pesquisadoras brasileiras buscam o resgate histórico das filósofas e estimulam a presença da mulher nos espaços de produção do pensamento

Antes de começar a ler, pare sete segundos para pensar em quantas e quais mulheres filósofas você conhece, leu ou já ouviu falar. Difícil, né? 

Talvez, só talvez, você já tenha esbarrado em sua vida ou na timeline com textos, posicionamentos e fofocas sobre Hannah Arendt (1906-1975), Simone de Beauvoir (1908-1986) ou até mesmo Rosa Luxemburgo (1871-1919). Se sim, é provável que as conheça como ativistas, feministas ou revolucionárias. Filósofas? Quase nunca. 

Mas não se desespere. Você não está só.

Mesmo para quem está inserido de alguma forma no vasto universo das ciências, provavelmente não conhece um dos exemplos mais célebres da filosofia que é Hipátia de Alexandria (415 d.C.). Hipátia ensinou matemática, filosofia e astronomia na Academia Neoplatônica de Alexandria, mas é ignorada na maioria dos currículos acadêmicos no Brasil e no mundo. 

Com a permissão do pai, Hipátia pode estudar matemática e se aventurar nos escritos filosóficos. Por sua inteligência, ‘mesmo sendo mulher’, ganhou prestígio entre os intelectuais e políticos da época, o que lhe rendeu muitos inimigos. Ela foi brutalmente assassinada por fanáticos religiosos em meio a controvérsias entre o prefeito e o bispo de Alexandria sobre o calendário da Páscoa.

Outro exemplo para quem desconhece a presença de mulheres na história da filosofia é de Christine de Pizan (1364-1430), uma antecipadora da Querelles des Femmes, expressão que designa um conjunto de textos escritos em um espaço de mais de quatro séculos, reunidos segundo uma unidade temática: a reflexão sobre o estatuto da mulher na sociedade. Dedicando-se à escrita, ela foi autora, editora e publicadora de seus livros e é considerada a primeira mulher escritora profissional no ocidente.

Pizan conquistou uma considerável reputação em vida e seu lugar na literatura ocidental está assegurado – o que ainda não é o caso em relação ao cânone filosófico.

Muitos ainda não se dão conta que estas, e dezenas de outras mulheres invisibilizadas, comeram o pão que o homem amassou para terem sua condição de serem capazes de pensar e suas obras reconhecidas com seriedade e legitimidade no campo da filosofia.

Filosofia para poucos

Desde os primórdios do pensamento – isso há pelo menos 20 séculos – a historiografia tem privilegiado destacar os feitos e as obras filosóficas dos homens, numa hegemonia violenta, excludente e institucional. 

Tragicamente, o apagamento das mulheres se dá em todos os campos da ciência, mas a filosofia reserva um capítulo à parte, revelando o preconceito e a opressão do patriarcado, com pitadas generosas de misoginia. 

A notícia ruim é que essa mentalidade prevalece nos dias atuais. É como se a mulher não fizesse parte da condição humana, ser pensante, individual e autônomo, na mesma categoria que os homens.

A verdade é que o fato de termos apenas homens como protagonistas da história do pensamento, e as estantes de bibliotecas são a prova incontestável desse lamentável contexto, não significa que durante séculos não houvesse nenhuma mulher capaz e merecedora de figurar no panteão ao lado dos filósofos. 

A boa notícia é que não conhecer, não significa que elas não existiram. Sim, as mulheres, apesar das vicissitudes de cada época, foram capazes de elaborar um pensamento de acordo com os cânones da filosofia, referendando ou criticando-os, em todos os tempos da história humana. 

Também é preciso lembrar que nem sempre à mulher foi permitido expressar seu pensamento no espaço público, escrever e dar voz a suas inquietudes e questionamentos sobre o mundo e as ideias que as cerca. Pertencentes à nobreza, as mulheres eram preparadas pela família para o casamento, bordado, música quando havia talento e procriação, numa relação absolutamente submissa aos homens que estivessem em seu caminho. 

Proibidas de frequentar as universidades, burlavam os costumes em todas as épocas ao participarem de debates nos salões da corte ou se expressarem em cartas trocadas com ilustres filósofos modernos. E são essas correspondências que atualmente servem de fonte primária para o resgate de um pensamento aprisionado no tempo, mas não da história.

Importante entender que a Filosofia Moderna é uma corrente ideológica que surgiu no século XV e prevaleceu até o século XVIII, marcando uma mudança de pensamento medieval – que até então era voltado à fé cristã – para a reflexão em torno do conhecimento humano e valorização da razão. 

Foi um período de grandes inquietações e revoluções em que as mulheres também estavam inseridas e desejavam participar do novo arranjo social e da construção de um mundo onde elas pudessem ter direito a pensar, voz e respeito.

Uma das principais representantes da filosofia moderna, Anne Conway (1631-1679) é autora do Principia Philosophiae (1677) em que tece críticas à metafísica de Descartes e o seu Discurso do Método num tratado dividido em oito capítulos que seguem a ordem de dedução metafísica tradicional. Apesar de não ter cursado a universidade, compartilha com os outros membros do grupo dos Platonistas de Cambridge o apreço pelos problemas da metafísica e um interesse na crítica à religião. 

Sua obra é um exemplo do resgate do neoplatonismo nas discussões metafísicas do XVII, oferecendo importantes críticas ao cientificismo mecanicista de Descartes, ao materialismo Hobbesiano e ao monismo Espinosista. 

Foi o pensamento original e vigoroso de Conway que atraiu a atenção de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1712), que confessou a influência de Lady Conway, já falecida, no seu pensamento. 

A outra boa notícia é que, após séculos, essa história está ganhando relevantes e inéditos contornos.

Formação acadêmica

Aristóteles (384-322 a.C.) definiu o Homem como um animal social, um ser dotado de alma (anima) que nasce pronto para a sua existência junto com os mesmos da sua espécie. É possível conjecturar que o filósofo grego não tinha preocupações em incluir as mulheres nessa definição, já que elas e os escravos não eram considerados cidadãos da pólis grega.

Quando conhecemos um pouco da história de muitas das mulheres que tiveram apreço pela filosofia desde a antiguidade nos damos conta do quanto elas lutaram, contra tudo e todos, pelo direito de existir enquanto ser social. 

Patrícia Coradim Sita da UEM (Foto/Maysa Ribeiro)

“Chega ser bizarro, chocante até esse apagamento, quando vemos o número de mulheres que foram silenciadas, desqualificadas e desrespeitadas. Muitas não foram publicadas, muito menos traduzidas, o que merece uma ampla e profunda revisão da historiografia da filosofia”. A crítica enfática é da professora Patrícia Coradim Sita, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), diante do machismo sufocante que imperou e impera, até hoje, na produção de ciência em geral e na filosofia em particular.

“Afinal, qual é o papel da mulher na filosofia?” É o que provoca na professora Patrícia a necessidade de repensar a sua trajetória na academia, espaço onde a maioria é de homens, tanto entre docentes quanto alunos. “Professores, colegas e orientadores homens ensinam os filósofos e formam as mulheres, tornando praticamente impossível ter a consciência de que há um vácuo, uma ausência, nesse aprendizado”, explica. 

Única professora entre 15 docentes no departamento de Filosofia da UEM, Patrícia defende “que a filosofia produzida pelas mulheres modernas, por exemplo, do século XVII, que é minha área de pesquisa, não era marginal e merece sim ser estudada”.

Preconceito sem limites

Pedro Pricladnitzky, professor de filosofia, na Universidade do Oeste do Paraná (Unioeste), câmpus de Toledo no Paraná, também tem refletido sobre a questão. “Na formação acadêmica, não nos damos conta da ausência de mulheres filósofas nas ementas, o que se mostra uma versão insidiosa e problemática da realidade”, avalia. 

Ele é um homem que tem como objeto de estudo uma filósofa moderna, Margaret Cavendish (1623-1673). Pasmem, isso não é normal no contexto da filosofia, rendendo uma certa desconfiança de seus pares.

Pedro Falcão Pricladnitzky da Unioeste/Toledo (Foto/Arquivo Pessoal)

O encontro de Pedro com Margaret proporcionou uma oportunidade de rever seus próprios conceitos e visão de mundo. A Duquesa de Newcastle-upon-Tyne foi uma aristocrata, filósofa, poeta, cientista, romancista e dramaturga britânica do século XVII. Morreu cedo, aos 50 anos, e deixou 12 volumes publicados com seu pensamento que começa a ser ‘descoberto’ pela Academia. 

Cavendish participou do que foi batizado de “Círculo de Newcastle”, reuniões em que aconteciam importantes debates filosóficos e científicos da época. Dentre os participantes mais famosos estavam Thomas Hobbes, Mersenne e Gassendi, além do próprio René Descartes, para citar alguns nomes célebres. 

E-book organizado por Nelsi Kistemacher Welter e Junior Cunha da Unioeste, campus de Toledo, no Paraná, em  2021
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A única obra dessa filósofa traduzida para o português é o célebre O Mundo Resplandecente (1666), considerado por muitos teóricos como o primeiro livro de ficção científica e a primeira utopia de autoria feminina. Por meio da literatura, ela acreditava poder apresentar ao leitor uma experiência mais palatável de seus argumentos.

“Cavendish publicou muito, mas foi pouco lida”, afirma Pedro, para quem essa realidade começou a ser revista na última década no Brasil, embora na Europa esse movimento de resgate histórico tenha se iniciado no começo dos anos 2000. O contato com estes escritos originais e biografias resistentes tem proporcionado novas questões para a própria filosofia, o que por si só já é uma revolução.

“O grande desafio para a pesquisa é perceber uma perspectiva de análise diferente, o que me permitiu um grande enriquecimento enquanto pesquisador”. Ao trabalhar com filósofas, muitas ainda não traduzidas e inéditas, o professor entende que a originalidade no pensamento está proporcionando a revisão de narrativas dentro da própria filosofia. 

Mulheres na academia

A presença de mulheres nos departamentos de Filosofia no Brasil foi objeto de um estudo da filósofa Carolina Araújo, publicado, em 2019, e norteia várias correntes em torno da desigualdade de tratamento e oportunidades na carreira acadêmica. Pioneira, a pesquisa analisou os números de discentes e docentes na Graduação e Pós-Graduação em Filosofia no país, entre 2004 a 2017. 

O resultado demonstrou que as mulheres são, em média, 36,44% dos graduandos, 30,6% dos mestrandos, 26,98% dos doutorandos e 20,14% dos docentes de pós-graduação. Na carreira acadêmica, as chances do profissional do sexo masculino são, em média, 2,3 vezes maiores do que as do profissional de sexo feminino. 

Como tudo que é ruim ainda pode piorar, a pesquisa indicou que há uma tendência de aumento da desigualdade ao longo dos últimos 14 anos. 

A professora Maria Cristina Müller, do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), acredita que, para enfrentarmos essa dificuldade histórica, é preciso rever o próprio conceito do que é Filosofia e quais são os critérios para definir quem é filósofo. 

Maria Cristina Müller (UEL)
Maria Cristina Müller da UEL (Foto/Arquivo Pessoal)

Atualmente, prevalece o referencial europeu a partir de uma mentalidade eurocentrista ocidental, que privilegia o homem como filósofo, independente do volume de seu pensamento. Porém, já há quem defenda uma mudança nesse critério ao estabelecer que a intensidade do pensamento deva ser um parâmetro a ser considerado.

“Nas entrelinhas, a discussão desse referencial não está restrita às mulheres, embora tenha emergido nas últimas décadas a partir da descriminação de gênero, mas que deve refletir na própria forma como as pensadoras serão reconhecidas”, filosofa. 

Maria Cristina enfatiza que professores e alunos na atualidade já não têm que lidar com essa exclusão, pois cada vez mais há um reconhecimento no dizer das mulheres. “O trabalho agora é combater a naturalização histórica de desigualdade e dar visibilidade às pensadoras, abrir a porta trancada a sete chaves e permitir que as meninas e mulheres transitem num espaço que é também é seu”.  

Pensadoras do nosso tempo como Ângela Davis, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, entre tantas outras que participam deste movimento organizado de mulheres, desafiam o senso comum, discutem e defendem temas que afetam metade da população mundial. Isso não é pouco, nem irrelevante. 

O livro 12 Mulheres 12 Filósofas 12 Artistas foi organizado por Maria Cristina Müller e Daniela Hruschka Bahdur, professoras e pesquisadoras da Universidade Estadual de Londrina (UEL), em 2021. Você pode conferir parte do conteúdo Youtube

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Na ordem do dia estão temas relativos à filosofia como ética, liberdade, ideologia, gênero, racismo e igualdade, reflexões que permeiam os escritos femininos sob um olhar repleto de resiliência, sensibilidade e muita, mas muita sororidade.

Por fim, sempre é tempo de afirmar e reafirmar: a presença de mulheres na história da Filosofia é tão antiga quanto à própria Filosofia. Ao existir e pensar, elas estão dispostas a transformar o mundo, nem que para isso precisem ir muito além da Filosofia.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Silvia Calciolari
Edição de áudio: Andressa Andrade
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

Igualdade de Gênero
Educação de Qualidade