Por uma universidade cada vez mais indígena

A ilustração mostra dois jovens indígenas, uma mulher à esquerda e um homem à direita, com uma cidade ao fundo composta por prédios coloridos em tons de amarelo, vermelho e azul. Ao centro, um edifício clássico é atravessado por uma seta vermelha apontando para cima, simbolizando ascensão ou resistência.
Aumento de 474% das matrículas no ensino superior deve ser celebrado, mas ainda é preciso muito para tornar as universidades território indígena

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No dia 19 de abril, comemora-se o Dia dos Povos Indígenas. A data foi originalmente instituída em 1943 por Getúlio Vargas como Dia do Índio, termo que já não é mais utilizado. A mudança foi uma conquista através de mobilizações dos povos originários, a fim de evitar o preconceito e valorizar a diversidade, pluralidade e heterogeneidade dos indígenas brasileiros que, de acordo com o Censo Demográfico de 2022, totalizam 1.694.836 pessoas, de 305 etnias, falantes de 274 idiomas. 

O conhecimento ancestral indígena e as áreas conservadas em terras indígenas possuem grande relevância cultural e de sustentabilidade em escala nacional e mundial. Dentre direitos que os indígenas possuem garantidos pela Constituição, está a educação. Mas muitos espaços ainda são excludentes e desvalorizam os conhecimentos, saberes e costumes tradicionais, incluindo as universidades. 

Quantos indígenas você conhece? Por conhecer, entenda ter tido interações significativas, e não apenas ter assistido a uma palestra, ter visto alguém na rua, no TikTok ou na TV. Dessas pessoas, quantas têm ou cursam ensino superior? E pós-graduação? Muito antes de começar a escrever, peguei-me pensando sobre essas questões. Conclui que, no meu caso, esse número era pequeno demais.

Acesso 

Aos poucos, a presença indígena vai se difundindo pelos campi do Brasil, fruto da luta dos povos pela inclusão e políticas afirmativas de acesso às universidades. Segundo levantamento realizado pelo Semesp, entidade que representa as instituições de ensino superior do Brasil, entre 2011 e 2021, a quantidade de matrículas de alunos autodeclarados indígenas no ensino superior aumentou 374%, em comparação ao decênio anterior.

O infográfico mostra a evolução da presença indígena no ensino superior brasileiro entre 2011 e 2021. Os dados são divididos por modalidade (Presencial, EAD e Total) e tipo de instituição (pública e privada). Os círculos representam a quantidade de estudantes, com aumento significativo em todas as categorias de 2011 para 2021. Destaques: Em 2011, havia 9.764 estudantes indígenas no total; em 2021, esse número subiu para 46.252. No ensino presencial, os indígenas passaram de 8.868 para 32.727. No EAD, o salto foi de 896 para 13.525. O maior crescimento foi no setor privado, especialmente na modalidade EAD. Fonte: Censo IBGE/Inep/Semesp. Arte: Lucas Higashi

Aline Rodrigues é uma das mais de 46 mil pessoas indígenas inscritas em um curso superior, segundo dados do último Censo. Natural do Amazonas, da etnia Tariana, a estudante de Medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR) deixou a família em São Gabriel da Cachoeira, distante quase 3.500km, para realizar o sonho em Curitiba. “A maioria dos jovens amazonenses não estuda dentro do Amazonas. Por conta do acesso. No Amazonas não existe vestibular indígena, como aqui”, conta Aline. 

Apesar de o Amazonas concentrar a maior população indígena do Brasil – 490.854 pessoas, cerca de 12,4% dos habitantes do Estado, segundo o Censo –, não há nenhum vestibular específico para indígenas. 

Em 10 anos, de 2012 a 2022, 53.757 indígenas se matricularam em cursos de graduação públicos na Amazônia Legal, mas apenas 5.327 concluíram os estudos, o que representa uma taxa de conclusão inferior a 10%. 

No Paraná, desde 2001, são destinadas vagas suplementares para indígenas nas Universidades, através do Vestibular dos Povos Indígenas no estado. Segundo a atual coordenadora da Comissão Universidade para os Indígenas da UEM (Cuia/UEM), Maria Christine Berdusco Menezes, “essa iniciativa facilitou muito o acesso dos indígenas ao ensino superior no estado”. 

A professora ainda complementa: “Sabemos que o cenário ainda não é o ideal, nem tudo são flores, tem muito a ser melhorado, mas a implementação de políticas afirmativas já trouxe muitos avanços para os indígenas nos níveis de graduação”.

O mapa mostra a distribuição das terras indígenas e das universidades estaduais e federais do Paraná. As instituições são destacadas por cores específicas, enquanto os territórios indígenas são marcados com áreas em tons de rosa, vermelho, marrom e outras cores, e aldeias indígenas aparecem com pontos pretos. Universidades representadas: UEL (verde) UEM (laranja) UEPG (azul claro) UNIOESTE (rosa) UNICENTRO (amarelo) UENP (roxo claro) UNESPAR (azul escuro) UFPR (roxo escuro) Destaques: A presença indígena é ampla em todo o estado, especialmente no oeste e sudoeste. As universidades estão estrategicamente espalhadas, com algumas próximas a territórios indígenas. A imagem sugere a importância da articulação entre as universidades e as comunidades indígenas para a inclusão educacional. Fonte: © Conexão Ciência | Arte: Lucas Higashi.

Nesse contexto, destaca-se também a Lei Federal 12.711, de 2012, conhecida como “Lei de Cotas”, que prescreve a reserva de vagas em instituições federais de ensino superior para segmentos sociais específicos, como os povos indígenas. A Lei de Cotas pode ser entendida como um marco na consolidação de direitos relacionados à educação, pois serve de parâmetro para a construção de outras políticas específicas elaboradas em diferentes espaços universitários. 

Permanência e luta por direitos 

O escritor, educador e doutorando de Antropologia da UFPR, Florêncio Rekayg Fernandes 46 anos, do povo Kaigang, natural da Terra Indígena de Rio das Cobras, foi o primeiro indígena paranaense a tornar-se mestre, em 2016, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), e também um dos primeiros no estado a adentrar no doutorado. Florêncio foi o primeiro mestrando da UEM e concorreu às vagas de ampla concorrência. “Quando eu falava que era indígena, as pessoas diziam ‘eu não sabia que tinha vaga para indígenas aqui’, e eu respondia ‘não tem, eu concorri às mesmas vagas que você’. E eu sentia o preconceito que essas falas carregavam”, relembra.

A imagem mostra um homem indígena em uma cadeira de rodas elétrica, posicionada em uma sala de aula ou auditório. Ele veste uma jaqueta azul escura acolchoada e calças em tom cinza. 
Ao fundo, há um projetor exibindo uma apresentação sobre a cultura Kaingang, um povo indígena do Brasil. O texto na tela destaca a rica tradição cultural dos Kaingang, incluindo rituais, mitos, música, danças e artesanato, além da importância da organização social baseada em clãs. Elementos visuais como gráficos e símbolos Kaingang também estão incluídos, explicando significados como “riscos retos” (Kamé) e “pontos” (Kairu).
O ambiente é bem iluminado, com piso de cerâmica claro e um pequeno palco ao fundo, onde está o projetor. A atmosfera é de um evento educacional ou cultural.
Professor indígena Florêncio Rekayg Fernandes (Foto/Arquivo pessoal)

O escritor reforçou que, para ele e para a maioria dos indígenas, a permanência ainda é a maior dificuldade. “Eu morava longe e passei fome, sabe. Eu trabalhava à noite para poder ganhar dinheiro, vendia artesanato, vendia meus livros e dava palestras em toda a região, estava sempre na ativa de alguma forma para poder mandar dinheiro para a minha família na aldeia”, relata. 

Florêncio conta ainda que é sincero com os jovens, fala que vai ser difícil, mas os estimula a não desistirem. “Eu não vou mentir para você que eu pensei em desistir muitas vezes, pensei sim. Têm alguns momentos que você se sente muito sozinho, tem muito estresse, muita pressão psicológica. Muitos professores não se importam e ainda existe muito a ser trabalhado e muito preconceito, inclusive no ensino superior”, desabafa. 

Muitos, como Aline, vêm de longe e encontram dificuldades ao chegar. “Depois do ingresso, a primeira barreira que existe é a chegada, porque a gente não tem onde chegar. Eu já tinha um conhecimento da cidade porque morava aqui, mas é difícil encontrar um lugar que não fosse tão longe da faculdade, mas que também não fosse tão caro, porque a gente sabe que as bolsas não cobrem um aluguel no centro de Curitiba”, destaca. 

A estudante também cita que, apesar de receber bolsas de permanência, o processo burocrático pode demorar. “Eu não recebi as bolsas logo de cara, né? Porque a burocracia para poder receber as bolsas é enorme. Precisa de muitos documentos. E a gente entende que são necessárias, mas eu não tive alguém que me ajudasse nesse processo”, relembra.

A imagem mostra um grupo diverso de pessoas posando para uma foto em frente a um vitral colorido em um ambiente interno. O grupo é composto por jovens e adultos, com expressões alegres e acolhedoras. No centro do vitral, há uma imagem simbólica com a palavra "CIÊNCIA". O ambiente transmite uma atmosfera de união, diversidade e respeito cultural.
Coletivo dos estudantes indígenas da UFPR (CEIND) em recepção dos calouros 2025 (Foto/Arquivo pessoal)

A moradia e permanência de indígenas são, justamente, grandes pautas do Coletivo dos estudantes Indígenas da UFPR, do qual Aline participa e atualmente é presidente. Dentro dele, ela é capaz de auxiliar nas questões das quais não obteve ajuda: “Eu quero facilitar a vida dos calouros indígenas que estão entrando agora e deixar um legado, para que seja ainda mais fácil para os próximos”. Ela também reforça que, no início da sua graduação, só queria saber de estudar. Com o tempo, a estudante entendeu que só estudar não era o suficiente, que precisaria constantemente reafirmar sua identidade dentro da universidade. “O coletivo também serve para representar os interesses dos estudantes indígenas e buscar direitos e melhorias”, reforça. 

Dessa luta, veio uma conquista: a ocupação Maloca UFPR, em 2024, mobilizou estudantes indígenas que reivindicavam moradia e permanência digna em uma ocupação do prédio do DCE por mais de três meses. A mobilização resultou em um acordo inédito entre a UFPR, o Estado do Paraná e o Ministério Público do Paraná (MPPR). Foi assinado um termo de cessão de um imóvel pelo Estado, que terá a reforma custeada pela universidade para atender às necessidades dos estudantes. 

Ensino privado

Chama atenção o percentual destes alunos que estão matriculados em instituições privadas de educação. Pelo menos 63,7% dos indígenas no ensino superior estudam em universidades particulares. Sem o recorte racial, 76,9% dos universitários brasileiros estão no ensino privado (Infográfico 1).

 A imagem mostra um grupo diverso de pessoas reunidas em um ambiente interno durante um evento da Comissão Interinstitucional para Acompanhamento dos Estudantes Indígenas (CUIA) com estudantes da UEM. Ao centro, os participantes seguram uma faixa com os dizeres "Universidade Território Indígena", acompanhada de texto em língua indígena. Ao fundo, vê-se um painel com a identidade visual do evento "Ciclo de Debates Interculturais". Um dos participantes usa cocar tradicional, destacando a valorização da cultura indígena.
Comissão Interinstitucional para Acompanhamento dos Estudantes Indígenas (CUIA) com estudantes da UEM (Foto/Arquivo pessoal)

Para a coordenadora da CUIA, Maria Christine, a inclusão do modo de ensino à distância (EAD) para indígenas na UEM foi uma grande conquista: “As particulares oferecem o EAD, negociam termos e dão flexibilidade. Se nós não abrirmos essa porta, eles vão optar por ir pra lá. As mulheres indígenas não querem deixar seus filhos na aldeia por quatro anos para cursar uma graduação. Promover o EAD é, também, promover a inclusão para elas.”

Faltam professores indígenas

“No doutorado em Antropologia, me senti mais acolhido. Fiz alguns amigos, porque meus colegas também estudavam os povos indígenas e tinham mais conhecimento e respeito pelos nossos costumes”, conta Florêncio. 

O educador, descendente de toda uma geração de caciques, diz que não queria ser professor, mas ainda jovem, era o único indígena com formação para lecionar na escola de sua aldeia e foi convocado pelo tio, cacique à época. Atualmente, não se imagina fazendo outra coisa.

Em 2021, apenas 428 dos mais de 483 mil professores de ensino superior eram indígenas, de acordo com o Censo da Educação Superior. Apesar do crescimento no número de indígenas como alunos do ensino superior, não existem dados atualizados sobre os que optaram pelo magistério. 

Diagnosticado com miosite por corpos de inclusão, uma doença neuromuscular degenerativa, que provoca fraqueza muscular progressiva e atrofia da musculatura corporal, hoje Florêncio sonha em lecionar no ensino superior:

“Para ser professor, eu só preciso da minha cabeça. E ela continua mais ativa do que nunca. Se eu desistir agora, que motivação eu vou oferecer para os jovens? Eu sempre levantei a bandeira indígena e agora eu levanto também a bandeira PcD”, justifica.

Sobre o 19 de abril, o professor confirma a importância de utilizar a visibilidade para celebrar as origens e reivindicar demandas, mas também diz que, para os indígenas, “todo dia é dia de luta”.

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Texto:
Joana Giacomassa
Revisão de texto: Silvia Calciolari
Arte: Mariana Muneratti e Lucas Higashi
Supervisão de arte: Lucas Higashi
Edição Digital: Guilherme Nascimento

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