Quem nunca foi assombrado pela ideia de que no futuro as máquinas irão substituir e controlar pensamentos ou ações humanas? Seremos dominados e escravizados pelas máquinas inteligentes? Perderemos nossa relevância enquanto espécie diante de uma Inteligência Artificial (IA) tão, ou mais, ‘inteligente’ quanto a natural?
Se você tem esses pensamentos apocalípticos, saiba que de alguma forma o cinema contribuiu para o imaginário de um tempo sombrio sob o domínio da tecnologia. Entre os vários clássicos da ficção científica, “2001: Uma Odisseia no Espaço” ou “Matrix” são exemplos emblemáticos, entre tantos outros, de como a problemática do avanço tecnológico e os limites da IA podem nos afetar. Afinal, ninguém quer ter em seu encalço um ‘tipo’ como HAL 9000 ou Agente Smith, representação de uma espécie de alegoria do que a humanidade teria que enfrentar num cenário profundamente automatizado.
E como atualmente tudo parece acontecer junto e ao mesmo tempo, este debate ganha contornos ainda mais dramáticos no momento em que acompanhamos, em streaming, a polêmica mundial em torno da IA como o Generative Pre-trained Transformer (ChatGPT) e seus possíveis efeitos e consequências para a humanidade.
Para o bem ou para o mal, uma coisa é certa: não há como impedir as pesquisas e investimentos nas chamadas tecnologias exponenciais que trazem inovações numa velocidade surpreendente, promovendo uma verdadeira revolução diante dos nossos olhos e até quando estamos dormindo.
Mas não pense que isto aconteceu da noite para o dia. Antes de se transformar em produto e estar disponível para consumo, a Inteligência Artificial já estava sendo pesquisada e desenvolvida há décadas nas universidades e centros de pesquisa. Para chegar até nós como agora, muitos cientistas das múltiplas disciplinas se dedicaram incansavelmente em testar hipóteses para a sua aplicação.
A história nos mostra que Alan Turing, um matemático e criptógrafo inglês, também enfrentou o ceticismo de sua época. Resiliente, Turing revolucionou na década de 50 a área da tecnologia e por seu feito é considerado atualmente como o pai da computação.
Com o surgimento do Google nos anos 2000, a proposta era facilitar e auxiliar a navegação na internet através de uma ferramenta de busca, veiculação de notícias e conteúdo geral, além de possibilitar a comunicação direta entre os internautas.
Hoje já estamos, digamos, ‘dominados’ pela tecnologia sem nos dar conta de quanto há de ciência envolvida em cada click.
Ferramenta de apoio
Como tudo o que é novidade, as pessoas ficam com receio diante do desconhecido. Deve ter sido assim na invenção da roda, no motor por combustão e, até mesmo agora, nessa busca por planetas onde a humanidade poderia viver.
E no caso da Inteligência Artificial não seria diferente, claro.
“Não há motivos para medo ou pânico”. É o que garante a pesquisadora e professora de Ciência da computação da Universidade Estadual do Centro Oeste- UNICENTRO, Carolina Paula de Almeida, que coordena diversos projetos de pesquisa para aplicar Inteligência Artificial. Ao integrar os Novos Arranjos de Pesquisa e Inovações-NAPI em Bioinformática da Fundação Araucária, os investimentos em IAs estão mobilizando um exército de pesquisadores no Paraná, a exemplo de todo o país.
Carolina explica que as IAs nasceram como ferramentas de apoio para a realização de determinadas tarefas complexas e que demandavam muito tempo e esforço, substituindo os seres humanos na busca, coleta e organização de bases de dados muito extensas. “O objetivo desta tecnologia é ganhar tempo e auxiliar na tomada de decisão, seja qual for a área de abrangência”.
Assim como uma receita de bolo, para cada IA, além dos ingredientes, há um ‘modo de fazer’, uma sequência do passo-a-passo que define como os dados serão trabalhados. Essa sequência, de forma simplificada, é o chamado algoritmo, conjunto de instruções e regras que um programa ou sistema inteligente possui para executar suas funções. Entre as pesquisas desenvolvidas na UNICENTRO coordenadas pela professora Carolina estão os algoritmos evolucionários, hiper-heurísticas e o aprendizado de máquina, o chamado machine learning.
Pesquisadora na aplicação de IAs, Carolina ressalta ainda que elas são desenvolvidas para serem utilizadas na abordagem de problemas do mundo real. Na sua área de pesquisa na Saúde, a análise de dados auxilia os médicos na definição de diagnóstico, na prevenção e tratamento e, na medida do possível, a salvar vidas.
“Temos grupos de pesquisa que trabalham em aplicação das IAs no auxílio a diagnósticos para o câncer de mama, Covid-19 e até mesmo Alzheimer, reunindo informações de diversos pacientes na tentativa de identificar padrões para verificar se há propensão a desenvolver certos tipos de doenças ou qual o melhor tratamento, por exemplo”.
Por essa perspectiva, a Inteligência Artificial jamais substituirá o profissional da Saúde na tomada de decisões. “Ela (a IA) vai garantir agilidade da coleta e amostra de dados do paciente ou mesmo análise dos exames, podendo ofertar ao médico uma pista, um detalhe que poderia passar despercebido sem o apoio da tecnologia”, reforça.
“Hoje as IAs são controláveis, neutras e só aprendem aquilo que são programadas para”, enfatiza, acrescentando: “Não é possível o auto aprendizado. Ainda. É possível que este cenário mude com o passar dos anos”
Em resumo, as IAs não são um problema, pois elas simulam a capacidade do ser humano de pensar. O problema está no livre arbítrio, ou seja, como vamos usá-las.
A única certeza é que a gente ainda não tem uma ideia exata do que pode ser feito com as Inteligências Artificiais. Suas aplicações são infinitas.
Agricultura sustentável
Por exemplo, desde 2018 a Universidade Estadual de Londrina-UEL sedia o Centro de Inteligência Artificial no Agro – CIA Agro. O Centro conduz projeto que tem por objetivo viabilizar o uso da Inteligência Artificial aplicada na agropecuária no estado do Paraná. Através de parcerias com empresas, universidades e institutos de pesquisa, cooperativas, startups e outras instituições, o foco é estimular o desenvolvimento de um ecossistema de inovação regional para a produção inteligente e sustentável. O projeto é uma proposta dentro dos Novos Arranjos de Pesquisa e Inovação- NAPI que recebe fomento da Fundação Araucária.
O coordenador do CIA Agro é o professor de Agronomia da UEL e pesquisador Marcelo Giovanetti Canteri, para quem o centro, em um primeiro momento, “desenvolve projetos em IA voltados para a fitossanidade, ou seja, controle de doenças e cuidados com plantas como a soja, especialmente o mofo branco e a ferrugem”.
Serão reunidos dados meteorológicos da rede do IDR/Simepar, de coletores de esporos (IDR-PR/Emater), dados espaciais e georreferenciamento e de época de semeadura da soja no estado, fechando o triângulo da doença. “Desta forma poderemos emitir alertas e orientar produtores e cooperativas sobre a melhor conduta, otimizando a produção de forma sustentável e garantindo competitividade através das novas tecnologias”, enfatiza Marcelo.
A partir da inclusão dos dados do passado e do presente nos programas e treinamento das IAs, o CIA Agro poderá estabelecer zonas controladas, que será a base para o desenvolvimento de modelos preditivos e prescritivos, incluindo a rastreabilidade de doenças por áreas de abrangência.
“Com a completa automação dos dados do passado sobre clima, por exemplo, seremos capazes de fazer previsões meteorológicas e estimativas para o melhor período para plantio, aplicação de insumos e até colheita, facilitando a vida do produtor”, completa o pesquisador.
Aqui, vale destacar que a Inteligência Artificial poderá interferir diretamente na quantidade de agrotóxicos que cada região deve utilizar, evitando aplicações desnecessárias. Só isso já faz o projeto atender um apelo importante da sociedade e dos próprios produtores, que é uma produção sustentável, com benefícios para a saúde e biodiversidade, além de aumentar o valor agregado.
Segundo o coordenador, nesta primeira etapa todas as ações envolvem dados das propriedades, ou seja, ‘porteira adentro’. “Já estamos nos preparando para a segunda fase que seria com suínos, quando iremos ensinar as IAs a trabalhar no esquema block chain, ou bloco de dados, como é feito com criptomoedas, rastreando o caminho que as peças percorreram até chegar ao consumidor”, adianta.
Debate produtivo
Como pudemos sentir, as possibilidades de uso são as mais variadas. Aqui o Conexão Ciência apresenta apenas duas áreas onde a Inteligência Artificial encontra-se em estágio avançado de desenvolvimento e em breve deverá ser disponibilizada para governos e sociedade.
Para a pesquisadora Carolina Paula de Almeida, este debate é de suma importância para desmistificar e esclarecer os propósitos desta tecnologia, que facilita e otimiza o tratamento de dados pelos seres humanos. E isso não é uma afronta à humanidade.
“Muitas vezes se consegue enxergar apenas os malefícios, ignorando que de alguma forma as IAs já estão nos beneficiando diretamente e as pessoas não se dão conta”.
Mas como vamos vencer o temor de que as Inteligências Artificiais poderão tomar nosso lugar?
Através da busca de informação de qualidade e de uma regulamentação que torne o processo das IAs mais transparente, além de uma legislação específica que coíba desvios éticos na sua aplicação. E o papel das universidades é fundamental nesse processo de consolidação das tecnologias exponenciais, como tem sido há séculos nos grandes momentos de ruptura do pensamento.
Nesse sentido, o professor Marcelo Cantieri entende que a Educação deverá, em breve, rever seu papel na construção do saber. “Em tempos de ChatGPT, a gente vai precisar mudar as perguntas para obter novas respostas, extraindo da tecnologia o que de melhor ela pode nos oferecer”, finaliza.
Outro fator que pode tornar a humanidade imune, ou mitigar os impactos de seus usos abusivos e escusos, é o papel das universidades na construção de uma pedagogia que nos prepare para esse novo mundo. Para a professora Carolina, a Educação é a chave para garantirmos a relevância da humanidade diante da Inteligência Artificial. “Não há como parar a IA, ainda mais quando ela se transforma num produto vendável”.
E quando se tem uma mercadoria que pode ser consumida por uma parte dos 8 bilhões de habitantes do planeta é que os problemas surgem. Por isso é tão vital o debate, mesmo que passional como vemos neste momento, para promover uma reflexão e dar às IAs a sua verdadeira dimensão e importância.
“Vivemos um momento em que há uma expectativa inflacionária em relação a aplicação da Inteligência Artificial. Sempre foi assim diante de qualquer novidade tecnológica. Em breve essa expectativa cairá e teremos um platô que irá nos orientar, pesquisadores e mercado, sobre o que deverá permanecer”, acredita Marcelo Cantieri, da UEL.
E nós do Conexão Ciência estaremos alertas e prontos para ajudar no processo de divulgação científica, confiantes de que todos possam ser beneficiados nesta nova ordem mundial.
Para saber outros detalhes sobre o que falaram nossos pesquisadores basta acessar o podcast Inteligência Artificial: meu bem, meu mal.
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Texto: Silvia Calciolari
Revisão: Juliana Daibert
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Juliana Sandaniel
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: