Um dos casos mais emblemáticos até hoje para as Ciências Forenses no Brasil começou em 4 de setembro de 1990, quando foi descoberta no Cemitério Dom Bosco, localizado no bairro de Perus, em São Paulo, a vala clandestina onde foram coletadas ossadas humanas organizadas em 1.049 lotes.
Conhecida como Vala de Perus, o local serviu para ‘desaparecer’ com vestígios da ação violenta e criminosa de grupos de extermínio durante a ditadura, como o Esquadrão da Morte e vítimas da tortura pelos agentes do Estado, na década de 1970.
Após a descoberta, uma força-tarefa de cientistas e peritos forenses foi organizada para tentar quantificar e identificar o maior número de pessoas, entre elas vítimas da violência e da arbitrariedade do Estado. O problema é que muitas ossadas estavam misturadas, o que de antemão torna mais complexo o trabalho de identificação.
Os problemas começaram já na pesquisa dos documentos existentes no cemitério. Descobriu-se que as anotações continham nomes falsos exatamente para dificultar o trabalho da perícia. Porém, um detalhe chamou a atenção: dezenas de fichas estavam marcadas por um ‘T’, o que se deduziu que era uma nomenclatura para designar os ‘terroristas’ que lutaram na resistência democrática.
Valendo-se das técnicas forenses existentes à época da descoberta da vala clandestina, a estimativa feita era que entre 1,3 e 1,4 mil pessoas faziam parte do ‘acervo’. Esse cálculo prevalece até os dias atuais pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), responsável pela guarda e proteção do material.
Após quase 33 anos de pesquisa, o que temos são apenas cinco militantes identificados, a saber: Dênis Casemiro, Frederico Antonio Mayr, Flávio de Carvalho Molina, Dimas Antônio Casemiro e Aluísio Palhano Ferreira. Outras 40 ossadas ainda esperam resultado de DNA para confirmação da identidade.
Por que esse caso é tão emblemático?
Primeiro porque revela o quão problemático, complexo e instigante é o trabalho para promover o diálogo com as mais variadas Ciências Biológicas, Exatas e Humanas. Por isso é denominada Ciências Forenses, já que se propõe a reunir conhecimentos e métodos científicos fundamentados na busca de resoluções para conflitos de identidade e autoria material, como vemos em acidentes, crimes, mortes e homicídios, entre outros processos que desafiam o sistema judiciário e a sociedade.
Segundo aspecto é que nas últimas décadas o avanço na pesquisa e desenvolvimento de novos métodos de perícia forense, evolução de tecnologia e formação superior de peritos forenses nos mostra que ainda temos muito que caminhar em termos de conhecimento científico para solucionar casos complexos como o da Vala de Perus.
Difícil? Não, desafiador
Vemos que no dia a dia das Ciências Forenses, os peritos se deparam com essas e outras dificuldades para fundamentar laudos que auxiliam a Justiça na resolução dos crimes e delitos.
E será preciso muita Ciência para esses e outros momentos, acredite. E já temos um excelente começo.
Curso pioneiro
Na Universidade Estadual de Maringá (UEM), no norte do Paraná, 30 jovens recém-formados participam da primeira turma (2022-2024) do Programa de Residência Técnica (Restec) em Ciências Forenses. O objetivo é ofertar uma pós-graduação que promova atividades teórico-práticas em parceria com a Polícia Científica ou outro órgão da administração direta ou autárquica do Estado do Paraná.
No período de dois anos do curso, há uma cooperação técnica com a Secretaria de Estado de Segurança Pública-SESP, envolvendo as polícias científica e militar do Paraná para possibilitar a realização de projetos de ensino, pesquisa, extensão, prestação de serviços, desenvolvimento tecnológico e inovação.
Destinado a estudantes com até 36 meses de graduação, o curso de Ciências Forenses é pioneiro no Estado ao oferecer disciplinas na modalidade Ensino a Distância-EAD e práticas presenciais nas unidades da Polícia Científica da Polícia Civil do Paraná.
O coordenador do Restec e professor de Odontologia Legal e Deontologia da UEM, Luiz Fernando Lolli, afirma que a área da Odontologia Legal tem atraído muitos profissionais que, já na faculdade, começam a ter noções da sua importância e relevância na sociedade. “Eu mesmo comecei meu interesse pela área no fim da graduação, há 20 anos, o que geralmente acontece ainda hoje”.
Formado em Odontologia pela mesma universidade, hoje Lolli também é coordenador da área Clínica-Integrada de Odontologia Legal e Deontologia da UEM, e tem inspirado novas adesões ao programa. Desde 2009 é membro da Comissão de Conciliação e Instrução de Processos Éticos do Conselho Regional de Odontologia-CRO-Pr e até 2020 foi o representante do Paraná na Associação Brasileira de Ética e Odontologia Legal-ABOL.
Mas o que faz uma pessoa dedicar a carreira, e a própria vida, à Odontologia Legal?
Assim como em outras profissões, a curiosidade e paixão é o que se observa ao conversar com o professor, um entusiasta da área e incansável na busca da valorização da pesquisa nas Ciências Forenses.
Método primário
O professor explica que a Odontologia possui 23 especialidades para atuação profissional. “A maioria das pessoas conhece de sete a oito, indo dos tratamentos clínicos, cirurgias reparadoras ou estéticas, todas exercidas nas clínicas odontológicas. Mas poucos sabem da Odontologia do Trabalho, do Esporte, Preventiva e Social e mesmo da Odontologia Legal”.
A especialidade, exercida extra clínica, vem ganhando relevância junto a pesquisadores científicos e órgãos de segurança e justiça, porque alia o conhecimento científico desenvolvido na academia a demandas da criminalística.
Ao fazer parte do rol das Ciências Forenses, uma das principais características da Odontologia Legal é a variedade de possibilidades que a sua aplicação permite na identificação de indivíduos vivos ou mortos, auxiliando o sistema de Justiça a solucionar crimes ou delitos ao examinar provas periciais e emitir laudos para embasar os processos judiciais.
Outro fator que pesa é que a Odontologia Legal é um dos três métodos primários de identificação, ou seja, quando o exame sozinho consegue definir a identidade do indivíduo. A datiloscopia, que é a identificação pela impressão digital, e o exame de DNA, onde o ácido nucleico apresenta todas as informações genéticas, são os outros procedimentos.
“Importante ressaltar que os três métodos possuem em comum a dependência de um registro prévio para a análise comparativa da amostra e assim legitimar o laudo”, diz Lolli. No caso da Odontologia Legal, o registro para comparação pode ser exames de imagens da arcada dentária que mostrem características próprias de cada pessoa, intervenções cirúrgicas ou traumas na mandíbula, em caso de acidentes.
Para obter sucesso no objetivo, os peritos precisam destas imagens ou mesmo informações que auxiliem na análise. “Muitas pessoas não sabem, mas todos têm o direito a ter a posse, após o fim do tratamento, do prontuário como raio x ou panorâmicas quando vão ao dentista, o que auxilia a família num possível processo de identificação”, salienta o professor.
Aliás, junto com os dados retidos pelos órgãos oficiais, os peritos também recorrem às famílias para obter os dados para comparação, especialmente em situação de acidente e desastres com muitos óbitos.
Ao se associar com outras áreas do conhecimento, a Odontologia Legal abre um leque de possibilidades para identificação. Por exemplo, junto à Antropologia Legal é possível analisar o crânio e estimar qual o sexo biológico, a ancestralidade, a estatura e, dependendo da integridade do material, também presumir a idade.
Todo vestígio é uma prova?
Nem sempre. Mas em alguns casos é possível que sirva de elemento processual.
Por exemplo, a queiloscopia, como é chamado o estudo dos lábios, também é uma das áreas da identificação humana por suas características como grossura e posição dos sulcos ou estrias e o registro das impressões deixadas por eles. O método pode se tornar bastante útil na prática forense devido à extensa quantidade de informações que carrega, já que existem variações na morfologia e disposição das linhas dos lábios que são únicas para cada indivíduo, permanentes e imutáveis.
Em investigações criminais, impressões labiais visíveis pela presença de batom podem ser encontradas em copos, guardanapos, roupas, cigarros, indicando uma relação do sujeito com o ambiente do crime.
Outra técnica da Odontologia Legal é a rugoscopia palatina, que consiste no processo pelo qual se pode obter a identificação inspecionando as pregas palatinas transversas da abóbada bucal, conhecido popularmente como ‘céu da boca’. É o método mais indicado para identificação quando a vítima é desdentada e não é possível a obtenção de impressão digital devido ao estágio avançado de decomposição. E é um método de estudo mais fácil, rápido e barato do que o DNA.
Vai chegar um dia…
O desenvolvimento da Odontologia Legal vem se intensificando nas últimas décadas a partir de investimentos em novos cursos de extensão para formar e qualificar peritos forenses. Sem dúvidas, o exemplo inédito no país do Restec em Ciências Forenses implantado na Universidade Estadual do de Maringá deverá servir de impulso para avanços tanto na área de pesquisa como na consolidação e profissionalização da carreira de perito criminal.
Para isso acontecer, o Restec tem amplo apoio do governo do Paraná e consiste em uma iniciativa coordenada pela Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná-SETI, por meio da Coordenadoria de Ensino Superior, Pesquisa e Extensão, e desenvolvido em parceria com as universidades estaduais. O projeto faz parte do Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação – NAPI em Segurança Pública em parceria com a Fundação Araucária.
Outra ação paralela é a criação do Programa Núcleo de Ciência e Tecnologia Forense (Proforense-UEM), já em tramitação na UEM e que buscará congregar os pesquisadores da área, além de contribuir com a construção da Rede de Ciências Forenses do Paraná.
Agora, voltando ao caso da Vala de Perus lá do começo da matéria, é muito reconfortante saber que estamos evoluindo em termos de políticas públicas para o fomento das Ciências Forenses no país, uma atividade tão importante para o conjunto da sociedade e para a Democracia.
Oxalá, num breve período de tempo possamos desenvolver técnicas que nos permitam a identificação e o resgate da história de cada uma das pessoas que foram encontradas no Cemitério Dom Bosco. Assim como suas famílias e amigos, todas e todos que ainda se encontram na condição de ‘não identificados’ também esperam não só pela Ciência, mas também pela Justiça.
Afinal, sonhar não custa nada!
Se você ficou interessado em saber mais, o C² preparou o podcast sobre Ciências Forenses, que traz um pouco da história e a relação entre Ciência, Justiça e ética profissional.
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Texto: Silvia Calciolari
Revisão: Juliana Daibert
Arte: Leonardo Rasmussen
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: