Há um estranhamento quando vamos em galerias de arte contemporânea ou em exposições como Bienais, pois somos constantemente desafiados a pensar e refletir o que é arte. Conta-se uma famosa história de uma pessoa que entrou em uma dessas galerias e ficou minutos olhando uma vassoura e um balde encostados na parede, pensando ser uma obra artística, até um funcionário da limpeza vir e levá-los. Algo parecido também já aconteceu com um óculos esquecido em um museu em San Francisco. Durante uma Bienal, por exemplo, a atenção a essa questão é tamanha, que podemos ficar desconfiados do pipoqueiro na saída ser um artista famoso fazendo uma performance. Aquele extintor de incêndio é uma obra? E esse estranhamento, próprio do nosso período, não é necessariamente ruim.
Nesses ambientes, os artistas mostram o resultado de seu processo criativo e de pesquisa e expõem objetos (ou a ausência deles ou a ideia de um objeto) como um trabalho artístico, que, de fato, torna difícil identificar os limites do que é ou não arte. O melhor é que isso não reflete, necessariamente, uma crise do mundo artístico, pelo contrário, confirma que os artistas estão pensando e desafiando o que é arte, alargando as fronteiras do seu próprio fazer. Se não fosse assim, não teríamos as diversas linguagens que são aceitas como arte atualmente, não compreenderíamos o mundo da mesma maneira. Esses artistas e pensadores, em seus processos de pesquisa e criação, ampliam ainda mais as possibilidades artísticas.
Um exemplo de grupo de pesquisadores e artistas que pensam e refletem sobre os limites da arte contemporânea é o Grupo de pesquisa e experimentação em arte, subjetividade, educação e diferença (Dobra), da UEM. Criado há três anos pela artista, pesquisadora e professora do curso de Artes Visuais da UEM, Roberta Stubs, o Dobra, como ela mesmo explicou, tem como foco a arte contemporânea em articulação com outros campos de conhecimento.
Questionada sobre a arte contemporânea ser apenas aquela feita nos dias atuais, a pesquisadora esclarece:
Utilizando textos de filosofia, escritos de artistas e textos dos estudos de gênero, do feminismo, da filosofia da diferença e do pensamento decolonial como base teórica, as discussões do Dobra analisam os trabalhos de artistas contemporâneos e os trabalhos dos próprios participantes, transitando entre o campo da arte e da educação, sob a ótica do pensamento contemporâneo.
“A gente pensa o contemporâneo a partir da encruzilhada que é esse lugar, que é um encontro de teorias dissidentes, de práticas artísticas desviantes e de um pensamento que não busca respostas, mas que busca fazer perguntas, lançando luz de modo singular e sensível às complexidades e urgências do presente”, explica Roberta. Além disso, o grupo realiza mediação em exposições e publicações de livros e artigos.
Dentre as principais discussões e produções artísticas dos participantes do grupo, percebe-se o pensamento do corpo para além do binarismo, o debate feminista, o esgotamento do presente, desse capitalismo que exige excessivamente e que nos deixa cansados e esgotados, e alguns outros assuntos. Todos os trabalhos do Dobra, de alguma forma, estão articulados com questões contemporâneas, como discussão de gênero e discussão do pensamento decolonial.
Antes de explicar o que é o pensamento decolonial, a pesquisadora Roberta ressalta que o nosso modo de pensar e praticar a vida é definido pelo modelo de pensamento branco europeu, ou pensamento do colonizador (que “mata” a cultura original e torna-a inválida), imposto a nós, colonizados, há muitos anos, e que determina, por exemplo, o que é e não é cultura ou o que é e não é arte.
O pensamento decolonial, portanto, repercutido na arte, passa a problematizar a imposição desse único modelo de conhecimento europeu e abre espaço para novas formas de pensamentos, novas narrativas e outras expressões. A escola do pensamento decolonial realiza a “abertura para outras frequências de pensamento e produção artística”, afirma Roberta. Essa escola surge do desdobramento de pensamentos dos movimentos feminista, negro, latino-americano e indígena, originários da década de 1960.
“Atualmente, existem muitos artistas indígenas contemporâneos e eles fazem questão de dizer que não é ‘arte contemporânea indígena’, é ‘arte indígena contemporânea’, porque não são eles tentando se encaixar no que a arte contemporânea define, são eles causando fissuras na própria arte contemporânea e ressignificando esse lugar”, afirma Roberta. A arte indígena contemporânea, que é melhor explicada na reportagem Arte é tudo aquilo que você quer que ela seja, desta semana, é um exemplo de arte que faz uso do pensamento decolonial, entre tantos outros.
Além dessas questões, há grupos e artistas que buscam experimentar e criar arte com instrumentos e ferramentas que não são vistas como próprias do mundo artístico, dentre elas, a própria tecnologia. Com esse grupo de artistas que se desafia a usar informática e satélites, por exemplo, novos campos de atuação se iniciam, denominados: arte telemática, arte e tecnologia, arte digital, arte eletrônica e arte interativa.
Muitos desses trabalhos artísticos colocam o espectador para atuar e fazer parte do próprio processo, tocando objetos, se mexendo, acionando botões, clicando em imagens e tantas outras interações. Assim, nos últimos anos, o público saiu de uma posição mais passiva e contemplativa da arte para se tornar uma espécie de autor, ou, como preferem alguns, um “interator”.
Um outro grupo de pesquisa que se interessa por essa dimensão na arte é o Grupo de Estudos Interdisciplinar de Arte Interativa (Gritaria), criado e liderado pelo pesquisador Rael B. Gimenes Toffolo. Um dos eixos da arte interativa que norteia os estudos do grupo, conhecido como interatividade forte, compreende as interações artísticas em que o público participa do processo de criação, derrubando as fronteiras entre autor e espectador, fazendo com que os dois papéis se tornem apenas um. O segundo é conhecido como interatividade fraca e se preocupa com as fronteiras entre as linguagens audiovisuais, visuais, sonoras, corporais e tantas outras.
Ao contrário do que vem sendo feito, historicamente, na arte, o Gritaria lida com os sistemas da percepção do ser humano, como audição, visão, tato, paladar, movimento, corpo etc, como percepções conectadas. “A gente não tem mais fronteiras entre o que é música, o que é arte cênica, o que é artes visuais, o que é dança, o que é circo. Você tem músico fazendo obra musical e visual, você tem bailarinos e bailarinas fazendo obras sonoro-corporais, então, as fronteiras se fundiram”, explica Rael.
As atividades do grupo sofreram com o começo da pandemia do Covid-19, porque o que eles mais precisam é de público e aglomeração. Mas apesar disso, um dos participantes, Tauan Sposito, defendeu a tese de mestrado no ano passado: uma dissertação/composição audiovisual, intitulada A Mandala Entre os Escombros: (re)situando tempo e espaço em uma composição audiovisual.
Em sua pesquisa, Tauan aborda a relação entre o corpo e a mente, e entre o tempo e o espaço, como dependentes e intimamente ligadas, distanciando-se do pensamento cartesiano dualista. Para isso, ele adota o termo “fenômeno espaço temporal” para falar sobre essa complexa conexão entre tempo e espaço. A composição audiovisual não é um produto da pesquisa, aponta Tauan, ela emerge junto com a pesquisa. O processo de composição auxiliou o processo de pesquisa e os resultados da pesquisa foram moldando as formas como ele via a produção.
“A composição da ‘Mandala entre os escombros’ passa por um processo de imersão audiovisual, buscando sonoridades do ambiente, vídeos de objetos com ângulos, desfoques e sobreposições diferentes, resultando em imagens distorcidas e abstratas, e a utilização de softwares de edição de áudio e vídeo. Dessa forma, buscamos um ambiente e tempo próprios”, explica o pesquisador.
São nessas produções artísticas, em que se quebram as fronteiras entre público, artista e linguagens, que encontramos a arte como prática social, em um processo de democratização, em que as pessoas se veem tão artistas quanto qualquer outra. “Isso faz com que elas revejam o mundo delas. Isso é o mais artístico: transformar a percepção do outro, de forma que ele comece a reler o próprio mundo em que vive, comece a rever a própria vida”, diz o líder do Gritaria.
Consequentemente, para Rael, o período mais importante da arte sempre será o que estamos vivendo, o “período presente”, o contemporâneo que está em nosso tempo presente, não aquele que está nos livros de história como “arte contemporânea”, porque esse já está no passado, virou conceito. Caso contrário, a produção artística passa a ser historicizada.
Com o artista conectado ao tempo e o espaço que o cerca, é possível “jogar” em suas obras os questionamentos que tem em relação aos dilemas, os problemas e as necessidades do mundo e da própria vida, sendo, então, capaz, como agente social, de transformar o planeta.
É por isso que poderes autoritários e ditatoriais sempre temeram, e ainda temem, a arte de seu tempo. A capacidade de transformação da produção artística pode derrubar qualquer um deles.
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Rafael Donadio e Tiago Franklin Lucena
Edição de vídeo: Thamiris Saito
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior