Um “substantivo coletivo,” embora seja singular, aponta para uma pluralidade de seres. É uma questão de gramática, mas, se olharmos mais a fundo, também é filosófico. Quando penso em corporeidade, não me vejo como única. Quando me enxergo como mulher negra, penso em nós, pessoas negras. Portanto, quando falo sobre mim, estou falando sobre todos nós, porque quem sou hoje é moldado pela nossa existência coletiva. Eu sou porque nós somos.
Tenho vários papéis na vida: atualmente sou atriz, produtora, professora e estudante. No entanto, independentemente do que faço, parece que nunca é suficiente. Para as mulheres negras, a pressão para ser mais, ter mais e fazer mais é constante. Foi assim que me senti crescendo como sou.
O corpo negro nunca se encaixou nos padrões convencionais. Por exemplo, quando estou na faculdade, fazendo o curso que escolhi, às vezes, confesso que as pessoas brancas lá me fazem sentir intimidada. Na aula, meu cabelo precisa estar impecável, o sorriso tem que estar sempre no rosto, e as respostas devem ser instantâneas.
Destacar-me pela inteligência foi a maneira como aprendi a crescer como mulher negra. Mesmo quando isso se estende para a minha carreira, a pressão persiste. As mulheres negras precisam trabalhar o dobro, e isso não é uma mera suposição, é a minha realidade. Posso afirmar que algumas pessoas, simplesmente, não entendem como me sinto, isso porque não têm a minha cor.
Como atriz, canalizei minhas indagações em uma cena chamada ‘Oração’, em que desabafo sobre tudo o que gostaria de dizer no dia a dia. Mas, muitas vezes, não posso. Essa cena, que realizo com meu amigo Cleiton Santos, envolve a participação de nossas mães no palco, porque sei e entendo que minhas conquistas não são apenas minhas, são de todos nós, assim como meus ancestrais conquistaram para mim. As pessoas costumam não gostar de encarar a realidade que enfrentamos, mas já pararam para pensar se gostamos de revelá-la?
Sempre que ouço notícias sobre a primeira vez que uma mulher negra conquista algo valioso para a sociedade, como um cargo, prêmio ou, até, ser capa de revista, me lembro que estamos em 2023. Isso me faz questionar se as pessoas realmente acreditam que nossa luta diária dentro dos movimentos negros é insignificante e desnecessária.
Mesmo com avanços, como o fato de termos pela primeira vez três novelas de sucesso com protagonistas negros na emissora hegemônica do país, reforço que estamos em 2023, quer dizer, por que demorou tanto assim? Detesto a palavra “vitimismo”, porque, frequentemente, a usam para desacreditar nossas experiências, como se não percebessem a realidade do mundo e seus protagonistas verdadeiros. Quando vejo pessoas como eu ocupando espaços, sinto uma sensação de calma. Posso ser apenas eu mesma, sem a pressão de ser mais do que já sou. É assim que me sinto quando vejo a presença negra ocupando lugares, inclusive nas salas de aula.
Afro-Brasileiros na Educação Superior
Em um país tão rico em cores, culturas e costumes como o Brasil, os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI) surgem como faróis de conhecimento, iluminando caminhos para uma educação superior mais inclusiva e representativa. A importância desses núcleos se torna ainda mais evidente ao se considerar o profundo impacto de professores negros no ambiente acadêmico.
Para estudantes negros, como eu, isso vai além de meras estatísticas, num cenário onde cabelos crespos armados, dreads e até o uso de turbantes são, por vezes, ridicularizados. Por isso, entendo que a existência de professores negros se torna um catalisador de empoderamento. É como se, de repente, a sensação de não pertencimento desaparecesse, e a de importância se estabelecesse. Isso é a parte central da representatividade, e suas ramificações vão muito além dos muros da universidade, ecoa no rap nacional com a importância de figuras na música como o Emicida, na televisão, com a Taís Araújo, na política, com a Erika Hilton. São nossos corpos, nossos cabelos, nossas cores e nossas vozes ecoando, inspirando e quebrando barreiras.
A representatividade não é apenas um conceito abstrato, é um pilar fundamental para construir um ambiente acadêmico verdadeiramente inclusivo e equitativo. Quando professores negros ocupam seus lugares nas salas de aula e corredores universitários, isso abre portas para novas perspectivas, diálogos e narrativas que enriquecem o conhecimento de todos os alunos.
Vozes poderosas
Em meio a esse cenário, surge no meu caminho o professor doutor Antônio Donizete Fernandes, cuja trajetória acadêmica e compromisso com as questões étnico-raciais têm sido fundamentais para o enriquecimento do ambiente educacional da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), campus de Jacarezinho. Donizete atua como docente no Colegiado de Pedagogia da Uenp, desde 1999, quando se tornou professor concursado. Seu comprometimento com o ensino vai além das salas de aula, uma vez que ele ministra disciplinas fundamentais, como ‘Introdução à Sociologia e à Educação’. Além disso, é ele quem coordena o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) “Beatriz Nascimento”, da Uenp.
Professor Antonio Donizete Fernandes, coordenador do Neabi, em uma fala num evento da Uenp que aborda as relações étnico-raciais na intervenção pedagógica no setor de educação infantil do Complexo Educacional Gastão Mesquita Filho, em Jacarezinho (Fotos/Maria Victória Moraes Leal, arquivo pessoal e Uenp)
O Núcleo nasceu em 2017, muito em resposta à necessidade de efetivar políticas de ação afirmativa, especialmente, após a aprovação das cotas sociais e raciais na universidade, buscando implementar atividades que tenham o intuito de promover a igualdade racial nas esferas de ensino, pesquisa e extensão.
A discussão em torno das cotas, por exemplo, nem sempre foi bem recebida, mas é fundamental para entender a importância dessas políticas. Contudo, as cotas são apenas um dos primeiros passos para uma transformação mais profunda. Hoje, a representatividade dentro das universidades tornou-se uma necessidade democrática, e o Neabi da Uenp é composto por um grupo comprometido, embora pequeno, de professores e estudantes que sabem disso.
Despertando a consciência racial
Depois de a conhecer por dentro, percebo que a Universidade atua como um agente de mudança na sociedade e o Neabi da Uenp também, abrangendo a comunidade local e suas memórias culturais. No Neabi, temos o Projeto do Maracatu, no qual são ofertadas aulas de percussão para crianças, ensinando a história do Maracatu e suas danças, proporcionando oportunidades para a educação e divulgação da cultura afro-brasileira.
Além disso, o Núcleo desempenha um papel fundamental ao discutir a integração das ações em desenvolvimento na Instituição, com foco na inclusão dos conteúdos relacionados à história e cultura africana, afro-brasileira e indígena nos cursos superiores.
Esse compromisso visa enriquecer a consciência histórica e fortalecer a identidade negra na Academia e na sociedade como um todo. Também, é de fundamental importância enaltecer o nome “Beatriz Nascimento” no título do Neabi, como uma reverência à notável historiadora, ativista e figura-chave no movimento negro brasileiro. Sua memória não é apenas reverenciada, mas celebrada por meio desse Núcleo.
Ainda neste mês de novembro, o Neabi da Uenp vai auxiliar a equipe da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (PROEC) na “IX Mostra de Arte e Cultura Afro-brasileira”, evento que naturalmente foi ganhando espaço na Universidade, tornando-se, a cada ano, memorável. Em 2023, a Mostra começou no dia 4 de novembro em Jacarezinho com o I Encontro dos Povos e Comunidades Tradicionais do Norte do Paraná.
Foram programados os Sarau da Negritude, Feira de Artesanato, Oficina de Grafite e apresentação musical. No Museu de Arte e Cultura Popular da Uenp, acontece a Exposição “CACostiando em Educar para as Relações Étnico-Raciais” do artista Clóvis Afonso Costa, o CACosta, que ficará disponível até janeiro de 2024. Isso tudo ocorrendo nos três campi da Universidade, promovendo o diálogo intercultural.
Com uma programação dentro da Mostra Afro, o Neabi também realizará uma nova edição do evento ‘II Manifesta Novembro Consciência Negra’, entre os dias 28 deste mês e 4 de dezembro. A ideia é sensibilizar, politizar e conscientizar sobre práticas racistas e desigualdades, incluindo palestras, debates, promovendo a cultura afro-brasileira e reflexões sobre igualdade racial. A programação completa pode ser conferida no site da Universidade Estadual do Norte do Paraná.
Moldando o Futuro
Embora possamos pensar que nunca é o bastante e que sempre podemos fazer mais, a UENP, especialmente por meio de seu diretório cultural, persevera para garantir que nossa presença seja reconhecida, não apenas em novembro, mas durante todo o ano. Conscientes do potencial para alcançar mais, vejo um trabalho grandioso sendo construído tijolo por tijolo ao longo dos anos, o que também se aplica ao Neabi e sua importância para todos nós.
Neste contexto, reafirmo que a presença de professores e alunos negros nas universidades adquire uma importância transcendental, nos mantendo fortes como sempre foi e sempre será, garantindo que nunca mais seremos apagados da história deste país.
Ecoando as palavras sábias de Carolina Maria de Jesus: “quando o homem decidir reformar sua consciência, o mundo seguirá por um caminho diferente”. Novembro simboliza nossa força ancestral, o mês de Zumbi dos Palmares, um mês repleto de profundo significado simbólico e político. Persistiremos, incansavelmente, em nossa busca pelo dia em que as barreiras raciais não mais existirão.
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Texto: Gabriele Christine
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Silvia Calciolari
Arte: Marjorie C. Gracino
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
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