É quase impossível que em 2024 você ainda não tenha tido nenhum contato com o novo mundo de apostas on-line, como o Jogo do Tigrinho ou alguma das inúmeras Bets Esportivas. Seja porque você já tenha apostado, conhece alguém que apostou, recebeu algum anúncio nas redes sociais ou mesmo viu alguma notícia sobre o assunto… As apostas voltaram com força no Brasil.
O Governo tem corrido para realizar a regulamentação desses jogos, uma vez que em pouquíssimo tempo, muito prejuízo já foi causado. São vários os relatos de pessoas que perderam suas economias, seus bens e acumularam dívidas por conta das apostas on-line, em especial, no Jogo do Tigrinho, o caça-níquel digital mais famoso da atualidade.
E as consequências não se limitam ao bolso do brasileiro, mas afetam também a saúde mental. Muitos apostadores ficam doentes por conta de desenvolverem um vício com a prática, bem como os prejuízos causados podem desenvolver depressão, ansiedade e diversos outros transtornos mentais.
Mas essa problemática não é de agora. O problema com apostas em jogos de azar existe há anos no Brasil, o que fez com que o, então presidente da República, general Eurico Gaspar Dutra, em 1946, proibisse os cassinos no país e todos os jogos que os acompanhavam, como os famosos caça-níqueis físicos, que já fizeram com que vários brasileiros perdessem muito dinheiro. Vem conhecer um pouco mais sobre a história dos caça-níqueis no Brasil:
A proibição de caça-níqueis no Brasil, infelizmente, não impede que haja casas de apostas ilegais que mantêm os equipamentos. Isso faz com que a Polícia Federal apreenda, com frequência, diversas dessas máquinas, gerando um acúmulo de lixo desnecessário.
Foi com essa demanda que diversos pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina (UEL), de três centros de estudos distintos, desenvolveram o projeto “Aposta Cultural”, para a reutilização dessas máquinas, utilizando-as positivamente para o ensino de pacientes em hospitais, bem como para pessoas privadas de liberdade em penitenciárias.
O projeto envolveu professores e estudantes dos cursos de Engenharia Elétrica – do Centro de Tecnologia e Urbanismo (CTU) –, da Computação – do Centro de Ciências Exatas (CCE) –, e do curso de Design Gráfico – do Centro de Educação, Comunicação e Artes (CECA). O vice-diretor do CCE e coordenador do projeto piloto, professor doutor Silvano Cesar da Costa, explica que, de todas as ideias de novas finalidades para máquinas, apenas duas foram colocadas em prática.
“Conseguimos utilizar os caça-níqueis para oportunizar aos apenados um direito que eles têm e que, às vezes, não é exercido pela falta de livros, que é a remissão de pena em função da leitura. Dessa forma, os equipamentos se tornaram armazenadores de livro. Além disso, foi possível adaptar as máquinas para implementar o jogo educativo Gamellito para crianças diabéticas. Enquanto as crianças aguardam para realizar os exames de controle da diabetes, eles ficam jogando/brincando e aprendendo sobre a doença”, afirma o coordenador.
De acordo com o supervisor da equipe de Engenharia Elétrica e vice-diretor do CTU, professor José Fernando Mangili Jr., a participação dos alunos nas etapas de reutilização dos caça-níqueis é fundamental para que eles adquiram conhecimentos práticos sobre testes e recuperação de equipamentos eletroeletrônicos, bem como de re-projetos de máquinas e equipamentos, além de propiciar o desenvolvimento de valores sociais.
Ter contato com um equipamento ilegal no Brasil e participar de sua reconfiguração para trazer benefícios para a comunidade amplia a visão de atuação desses futuros profissionais. Além disso, de acordo com o supervisor dos alunos da Engenharia Elétrica, o “Aposta Cultural” também contribui para a capacitação e treinamento da profissão de eletricista dos apenados, dentro do sistema carcerário. Isso porque alguns componentes das máquinas também são separados para essa finalidade.
E, claro, além dessa capacitação, os indivíduos privados de liberdade também podem reduzir a sua pena por meio da prática da leitura, o que também é propiciado pelo projeto com os caça-níqueis.
“Os 30 livros disponíveis nas máquinas são de domínio público e com o texto integral, sendo selecionados pelo setor de Pedagogia do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). O software foi desenvolvido para que a leitura seja feita na própria máquina por várias pessoas diferentes, sendo que o progresso individual de leitura de cada pessoa é registrado de forma individualizada para que cada uma possa retomar a sua leitura de ponto onde ela parou, sempre que necessário”, explica o supervisor da equipe de Computação, professor Wesley Attrot.
Dar esse novo propósito para o uso dessas máquinas é a melhor forma de evitar que elas voltem a prejudicar a sociedade e se transformem em um resíduo que traga impactos ao meio ambiente. “Os caça-níqueis, agora, irão contribuir para o bem das pessoas. O papel da computação foi desenvolver novos softwares para permitir este novo propósito das máquinas apreendidas”, afirma Attrot.
E não para por aí! As máquinas também receberam a implantação do Gamellito, um jogo concebido pela psicóloga da UEL, doutora Vânia Vargas, para crianças de 6 a 12 anos, que sofrem com a diabetes. O jogo foi batizado com o mesmo nome do seu personagem principal, um extraterrestre laranja que possui apenas um olho, o qual veio até à Terra para descobrir qual o seu problema de saúde… Claro, com o auxílio das crianças!
O objetivo é tornar o processo de tratamento da diabetes mais fácil para os mais jovens. “Utilizar jogos, livros, animações, oficinas culinárias e rodas de conversa, têm sido algumas das ferramentas usadas para levar educação em diabetes de uma maneira mais leve e lúdica, ao mesmo tempo interativa, que produz a construção não só do conhecimento, mas dá importância do paciente saber realizar o tratamento corretamente aceitando o diagnóstico e tomando decisões corretas em cada situação”, explica a psicóloga.
A versão virtual do jogo foi desenvolvida, a partir do conteúdo do jogo físico, envolvendo também as equipes de computação e de design. Os caça-níqueis adaptados com o Gamellito virtual estão disponíveis no Ambulatório de Especialidades do Hospital Universitário da UEL e permitem que as crianças se divirtam, enquanto se informam sobre a diabetes.
“Levar o Gamellito dentro do caça-níquel é uma oportunidade de tornar acessível uma série de materiais educativos em forma de autoatendimento. Esse momento no hospital é sempre cercado de incertezas e angústias que o impacto de uma doença crônica causa, ainda mais em uma criança. Disponibilizar as possibilidades de tratamento e acolhimento pode ajudar as pessoas a não se sentirem tão perdidas e saberem onde e como procurar ajuda”, afirma Vânia Vargas.
O Gamellito é uma forma lúdica de favorecer a comunicação entre pais, profissionais de saúde e amigos com as crianças portadoras de diabetes. Sem contar que deixa o espaço hospitalar, muitas vezes visto como assustador para os mais novos, muito mais acolhedor.
Inclusive, a beleza da estampa dos caça-níqueis reutilizados também não é ao acaso! Segundo a supervisora da equipe de Design Gráfico, professora doutora Rosane Fonseca de Freitas Martins, o envelopamento das máquinas apresenta elementos da fauna e da flora encontrados no campus universitário da UEL. Além disso, a equipe também foi responsável em pensar em um nome com significado e propósito, para transmitir a ideia do projeto. Confira a explicação da supervisora:
Dessa forma, a área do design é capaz de ajudar a homenagear a natureza que compõe um espaço acadêmico tão importante para a sociedade e para o projeto. O design se encarrega da interface gráfica, como os usuários vão lidar com essas informações que vão ser colocadas nas máquinas. Além disso, torna tangível todas as ideias que foram pensadas para esse projeto, tanto no nível estratégico, tático, quanto operacional, em relação aos dados, informação e conhecimento gerado”, explica Martins.
O envolvimento de todas essas ciências e áreas de atuação só comprova a viabilidade do uso das máquinas caça-níqueis em prol da sociedade. O coordenador do “Aposta Cultural” afirma que foram executados apenas dois dos possíveis projetos, mas que outros também são viáveis.
“O número de pessoas acessando informações, por meio de um equipamento gratuito e disponível em grande quantidade, pode aumentar muito com a oferta em clínicas, hospitais, penitenciárias e até asilos. Para dar continuidade ao projeto, vamos buscar recursos, principalmente na forma de bolsas de estudo para incentivar os alunos a participarem”, afirma Costa.
As bolsas são super importantes, tendo em vista que o piloto foi realizado de forma voluntária por professores e alunos. “Com investimentos do setor público responsável na concessão de bolsas para os alunos, aquisição de equipamentos de infraestrutura de oficina (ferramentas, computadores, equipamentos de testes de eletroeletrônicos, hardware e software) o projeto pode ganhar amplitude e volume de produção, com resultados mais amplos, beneficiando muita gente”, aponta o Prof. Dr. Silvano Cesar da Costa.
O “Aposta Cultural” pode ter uma longa vida pela frente, já que os caça-níqueis estão disponíveis para reutilização, e que tem uma importância enorme, tendo em vista seus propósitos ambiental e social. “Com o projeto, retiramos do meio ambiente resíduos da tecnologia que iriam para o lixo e utilizamos materiais de jogos ilícitos que ajudam pessoas que, em muitos casos, não tem acesso fácil à informação”, afirma o coordenador do projeto piloto.
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Texto: Mariana Manieri Pires Cardoso
Revisão: Silvia Calciolari
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de vídeo: Luiza da Costa
Arte: Mariana Muneratti e Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:
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