Se essa rua fosse minha: uma cidade feita para pessoas

Pensar a mobilidade ativa pode nos ajudar a recalcular a rota, transformar o cenário das cidades e contribuir para a sustentabilidade

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E se tudo que você precisa fazer no seu dia a dia estivesse a 15 minutos de distância da sua casa?

Embora essa ideia pareça impraticável no contexto atual de urbanização das grandes cidades, ela já é uma realidade em alguns lugares. A ‘Cidade de 15 minutos’ foi pensada e proposta por Carlos Moreno, pesquisador e professor da Universidade de Sorbonne, em Paris.

Esse é um conceito de planejamento urbano que propõe que todas as necessidades básicas dos moradores estejam em até 15 minutos de distância de suas residências (serviços médicos, escolas, espaços verdes e supermercados), utilizando meios de locomoção menos poluentes como a caminhada, a pedalada ou o transporte coletivo. 

O propósito é tornar as ruas das cidades mais habitáveis e conectadas, além de reduzir o uso de transportes individuais (como carros e motocicletas), impactando o cotidiano dos habitantes em termos de qualidade de vida e sustentabilidade.

A cidade de Paris, há alguns anos, já começou a adotar medidas estratégicas para aplicar o conceito. É possível pensar essa realidade nas grandes metrópoles brasileiras? E se as pernas e bicicletas voltassem a habitar nossas ruas?

Anatomia das cidades: um crescimento contínuo

A urbanização das cidades, sobretudo grandes metrópoles, representa uma crescente nas últimas décadas e traça um caminho que segue paralelo ao crescimento populacional e dos desenvolvimentos tecnológico e industrial.

De acordo com o presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Marcio Pochmann, com base no último censo realizado em 2022, o número de pessoas morando em cidades se aproxima de 90%, um aumento de quase 60% em relação ao primeiro censo do IBGE realizado em 1940, que registrava apenas 30% da população brasileira morando em cidades. 

Segundo dados do mesmo censo, a população brasileira cresceu, num período de 12 anos, um total de 6,5%, número que representa mais de 12 milhões de habitantes. A população atual do país conta, portanto, com 203 milhões de pessoas que se concentram, principalmente, na região sudeste: são 39,9% dos brasileiros vivendo nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Imagem aérea da cidade de São Paulo com centenas de prédios e uma via com automóveis
Cidade de São Paulo (Foto/Wikimedia Commons)

O aumento da população e a consequente ocupação das cidades demanda do poder público políticas públicas  que acompanhem essas mudanças. Os dados de urbanização e crescimento populacional estão diretamente ligados a fatores como: disponibilidade de moradia, ocupação das ruas da cidade, ordenamento do trânsito e segurança pública. 

Porém, de acordo com a Fundação João Pinheiro (FJP) em parceria com a Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, o Brasil registrou um déficit habitacional de 6 milhões de domicílios em 2022, ou seja, milhões de pessoas sem moradia ou que vivem em condições precárias.

O crescimento populacional nos grandes centros representa, invariavelmente, um aumento no tráfego de veículos diários. O fluxo intenso de automóveis em vias e rodovias do país carrega números alarmantes: o Brasil é o terceiro país que mais registra mortes no trânsito no país, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Uma vez que os movimentos migratórios são uma realidade no país – com tendência de crescimento nos próximos anos – é possível pensar em uma ocupação das cidades mais sustentável para as pessoas e para a natureza?

Pedal para mulheres: onde tudo começou 

É nesse cenário dos grandes centros urbanos que a professora de geografia da Educação Básica e Ensino Médio, Viviane Ferreira Mendonça, faz suas pedaladas. Há mais de duas décadas, Viviane percorre as ruas da cidade de Curitiba com sua bicicleta. 

Em 2011, depois de quase dez anos de vivências como ciclista na capital do estado, Viviane notou uma lacuna: faltava um espaço para conscientização sobre cuidados no trânsito e a necessidade de encontrar outras mulheres no esporte. Foi assim que nasceu a página “Vou de Bike e Salto Alto”.

  • Printscreen do Instagram e Facebook da página Vou de Bike e Salto Alto.
  • Printscreen do Instagram e Facebook da página Vou de Bike e Salto Alto.

A página hoje está presente em várias plataformas como o Facebook, Instagram, YouTube e TikTok, além de contar com uma comunidade fechada no Facebook exclusiva para mulheres compartilharem questões relacionadas ao ciclismo. Atualmente, já são mais de 100 mil seguidores, sendo 90% desse público composto por mulheres.

Criada há 13 anos por Viviane, é a única comunidade de mulheres ciclistas da América Latina que recebe suporte e treinamento pelo Facebook, pela relevância e pelas ações de inclusão e acessibilidade. Além disso, o espaço criado pela ciclista conta com centenas de conteúdos sobre o esporte, educação no trânsito e dicas de boas práticas no ciclismo.

Mulher com roupas de ciclismo e prédios ao fundo
Viviane Mendonça pedalando em Curitiba (Foto/Arquivo pessoal)

A utilização da bicicleta como esporte e lazer ou como meio de locomoção diário traz consigo incontáveis benefícios: pedalar traz impactos na saúde individual de quem pratica e em termos de saúde pública. Além disso, contribui para a redução de emissão de gases poluentes, ajuda a diminuir a poluição sonora, descongestionamento urbano, possibilidade de integração com o transporte público coletivo e redução dos custos em transporte.

Nesse sentido, Viviane aliou os benefícios que a bicicleta trouxe para sua vida e a vontade de unir um coletivo de mulheres que amam pedalar e dividir conhecimento sobre bicicleta para construir um espaço que acolhe, ensina e também politiza. 

Descentralizando o conhecimento: onde podemos aprender?

Foi um olhar mais atento ao material de anos de trabalho nas redes do “Vou de Bike e Salto Alto” que despertou na professora a vontade de estudar mais sobre a relação das pessoas com a cidade e as possibilidades de descentralização do conhecimento, ou seja, a maneira como as redes sociais podem ser aliadas no ensino. 

Assim, nasceu a pesquisa de mestrado da ciclista, na qual ela se dedica na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). O intuito de Viviane é dialogar sobre a bicicleta nas redes sociais e as possibilidades de falar sobre educação para o trânsito, mobilidade urbana, esporte e saúde de maneira descomplicada por meio do digital.

Mulher usando capacete de ciclismo com sua bicicleta em frente à UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná)
Viviane Mendonça em frente a UTFPR (Foto/Arquivo Pessoal)

“Eu tenho que convencer as pessoas de que sim, que a bicicleta tem a sua importância no cenário mundial da cidade, da segurança e da acessibilidade e que a rede social pode ser um espaço para educar e falar de bicicleta”, explica a professora.

Nesse sentido, a mestranda busca compreender de que maneira o espaço virtual configura um novo formato de ensino e aprendizado que rompe com a crença de que somente os lugares tradicionais e institucionalizados podem ser pedagógicos. Ao caminhar no sentido contrário, a professora pensa, ainda, de que maneiras as redes sociais e o ambiente virtual podem se somar às instituições, como as escolas e universidades. 

As cidades e a mobilidade ativa: novas possibilidades

Dentro da pesquisa, Viviane optou por introduzir o conceito de mobilidade ativa. Esse é um tipo de mobilidade que não utiliza combustíveis fósseis: nesse caso, o indivíduo se desloca de forma não-motorizada. Isso pode ser feito por meio da caminhada ou da utilização de bicicleta, patinetes elétricos, skate ou patins, por exemplo. 

A mobilidade ativa abre um leque sem fim de possibilidades para repensar o espaço urbano, uma vez que é preciso criar condições para que as pessoas ocupem as cidades.

Nesta formatação, à medida que o poder público investe em áreas verdes (como parques e espaços de lazer), iluminação e segurança pública, reordenamento do tráfego de veículos e melhoria no transporte coletivo, ele incentiva a população a ocupar as ruas da cidade: caminhando ou pedalando. Esse é um ciclo que se retroalimenta: aumento da saúde pública e aumento da sustentabilidade. 

Pessoas correndo e pedalando em um parque ao ar livre
Pessoas correndo e pedalando em parque (Foto/Pexels)

“Não adianta a medicina fazer todo um trabalho, toda uma pesquisa, que pedalar é saudável, caminhar é saudável, correr é saudável, se não tem onde correr, andar e pedalar. É aí que a mobilidade passa, deixa de ser só uma coisa relacionada à saúde, ao estudo e passa a ser relacionado também ao desenho da cidade”, afirma Viviane.

Ladrilhando um futuro possível 

Tendo como pano de fundo mais de duas décadas de vivências e histórias como ciclista, aprendendo e ensinando, Viviane pontua em sua pesquisa questionamentos que dão um passo além: pensar a segurança no trânsito para ciclistas é pensar em segurança no trânsito para pedestres, acessibilidade e viabilidade dos transportes públicos e um espaço de vida que seja mais sustentável.

Além disso, pensar em como um ciclista se desloca de um lado a outro da cidade perpassa questões importantes que dizem respeito à estrutura das cidades, à modernização, à segurança pública, ao acesso à moradia e à ocupação dos espaços públicos. Não é possível falar sobre um assunto sem que traga consigo uma dezena de outros paralelamente. 

Talvez, quando criança, você já tenha ouvido aquela canção popular “Se essa rua fosse minha / eu mandava ladrilhar / com pedrinhas de brilhante / para o meu amor passar”. Ela faz parte do repertório folclórico do Brasil e atravessou a infância da maioria das crianças e adolescentes.

Com o crescimento acelerado dos grandes centros urbanos e a consequente segregação entre o espaço que pode ser ocupado pelas pessoas e aquele que lhes é retirado, fica a pergunta: é possível repensar um futuro no qual as ruas das cidades sejam feitas para pessoas?

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Camila Lozeckyi
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Silvia Calciolari
Arte: Camila Lozeckyi e Lucas Higashi
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

Glossário

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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