Seda Brasil: tecendo fios que unem e transformam

Um projeto original fomenta uma rede econômica e produtiva da seda, incentivando empreendedores e desenvolvendo uma cadeia produtiva sustentável

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Você sabia que a melhor seda do mundo é brasileira? Aliás, não só brasileira… paranaense! 

Mas antes dessa fibra têxtil se tornar destaque na indústria do Estado, ela trilhou um longo caminho. Sua origem é incerta, e algumas lendas discutem seu surgimento. Confúcio, grande pensador chinês, conta a história da imperatriz Hsi Ling-shih, que enquanto tomava seu chá na sombra de uma amoreira, teria se surpreendido com um casulo que caiu dentro da sua xícara de chá quente. A imperatriz percebeu que o casulo ficava amolecido e, quando desenrolado, formava um longo fio. Em alguns dias, após inúmeras tentativas, ela conseguiu tecer um pedaço de tecido: a seda. 

Por inventar a primeira forma de tear, há mais de quatro mil anos, a imperatriz Hsi Ling-shih é, até hoje, conhecida como a deusa da seda na cultura chinesa. Essa narrativa se encontra com muitas lendas e mitos, como a lenda da moça com cabeça de cavalo. 

Nessa versão, o pai de uma moça é sequestrado por piratas. A jovem fica tão desolada que se recusou a comer e, ao ver o sofrimento da filha, a mãe faz uma promessa: ofereceria a mão da jovem em casamento a quem trouxesse o pai de volta. Ouvindo a promessa, o cavalo da família partiu em busca do homem. Após alguns dias, o animal retornou com o pai em sua garupa. Quando o homem soube da promessa imprudente de sua esposa, usou uma flecha para matar o cavalo, arrancou sua pele e a deixou secando na porta de casa.

Algum tempo se passou e a moça foi misteriosamente envolvida pela pele do cavalo e levada para longe. Dez dias depois, a pele do cavalo foi encontrada pendurada num galho de amoreira, mas agora havia se transformado em um casulo! Para os chineses, o bicho-da-seda tem uma cabeça que lembra a de um cavalo e, dentro do casulo, vivia uma “bonequinha”, ou pupa, termo que vem do latim e significa boneca.

Estátua esculpida em mármore branco, da imperatriz chinesa creditada como inventora da seda.
Estátua que representa a imperatriz Hsi Ling Shi, cultuada como a deusa da seda, na China (Foto/Hubpages)

Com tantas lendas sobre o assunto, a China, berço da seda, ainda é o maior produtor dessa fibra têxtil, responsável por mais de 60% da produção mundial. Mas quando falamos em qualidade, a seda brasileira é a mais requisitada do mercado. Por aqui, a introdução da sericicultura1 se deu em 1848, no estado do Rio de Janeiro. 

No Paraná, segundo a Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), o bicho-da-seda foi introduzido em Cambará no ano de 1932. Em 1972, após a instalação da primeira fábrica de fiação de seda do Estado, em Cornélio Procópio, a sericicultura passa a participar da cadeia produtiva industrial paranaense. Hoje, o Estado se sobressai como o principal produtor de casulos de bicho-da-seda no Brasil e contribui com mais de 80% da produção nacional. Além do expressivo volume produzido, principalmente nas regiões norte e noroeste, o Paraná também se destaca pela alta qualidade do fio de seda. 

O início 

Em 2017, uma professora recebeu uma ligação e, em pouco tempo, um projeto multidisciplinar surgiu para transformar o negócio de sericicultores. Para contribuir com a qualidade da produção paranaense e ajudar os produtores a enfrentar desafios, nasce um projeto único, que vem crescendo e inovando cada vez mais. 

“Uma manhã, recebi uma ligação do meu amigo, Nivaldo Benvenho, diretor da Sociedade Rural do Paraná. Ele me questionou se eu sabia que a melhor seda do mundo é paranaense e sugeriu de montarmos um estande sobre seda num evento, mas eu não entendia nada sobre assunto. Em quinze dias, já tínhamos um estande na Expo Londrina e, aprendi tanto sobre sericicultura, que um professor da área comentou que eu entendia muito de seda.  Eu respondi: ‘sou professora, a gente aprende rápido”. É o que diz a docente, pesquisadora e coordenadora do “Seda Brasil”, Cristianne Cordeiro Nascimento, sobre o início do projeto, financiado pelo Fundo Paraná, por meio da Secretaria da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Estado do Paraná (SETI).

A imagem mostra Cristianne, vestida com uma blusa clara e usando óculos, falando em um evento. Ela segura um microfone, fazendo uma apresentação. <br>
Cristianne Cordeiro, coordenadora do “Seda Brasil”, no 40º Encontro Estadual de Sericicultura (Foto/Seda Brasil)

Cristianne conta que passou por um momento no qual, ao estabelecer uma parceria com uma empresa privada, parecia estar indo contra as expectativas da época. Hoje, ela reconhece que escolheu o caminho certo, e acredita que inovar vai além da criação de novos produtos; envolve a transformação de processos e a adoção de novas formas de pensar e atuar. 

A professora, que é docente da Universidade Estadual de Londrina (UEL), começou sua jornada de maneira humilde, participando de um encontro de sericicultores do Paraná, onde ouviu atentamente as necessidades dos produtores. Para ela, o verdadeiro propósito do projeto é sair dos laboratórios e da academia para levar conhecimento à sociedade. Com sua experiência como professora de design e ex-pró-reitora de extensão, Cristianne entende a extensão universitária como uma forma de pesquisa aplicada e uma maneira de compartilhar conhecimento com a sociedade, que, por sua vez, retribui com novas perspectivas. 

Expandindo olhares

O foco do projeto sempre esteve em atender às necessidades dos sericicultores e pequenos produtores rurais. Na verdade, Cristianne gosta de destacar que embora trabalhem em pequenas propriedades, são grandes agricultores que, em sua maioria, fazem parte da agricultura familiar. 

“Conforme eu me inteirava dos problemas que eles enfrentavam no campo, fui descobrindo novas áreas que pudessem integrar o projeto. Começamos com somente um departamento, hoje somos quase dez áreas atuando no ‘Seda Brasil”, explica a coordenadora. 

Dentre as áreas de atuação do projeto, Cristianne destaca o trabalho da equipe de biólogos, que atua na sequência do genoma do bicho-da-seda e na análise do estresse causado pelo clima. Além disso, há um forte compromisso com o bem-estar animal, com o time da zootecnia desenvolvendo alimentação artificial para o bicho-da-seda, especialmente durante o período de entressafra, quando o alimento natural, a folha da amoreira, não está disponível. “Queremos garantir que o produtor possa ter safras durante todo o ano”, ela assegura.

Outro desafio para os produtores é o cultivo da amoreira, que é suscetível a doenças e nematoides. Para superar esses obstáculos, um projeto de biofábrica visa a produção de mudas saudáveis, para melhorar ainda mais a qualidade da seda produzida.

A área da química também desempenha um papel importante, com o desenvolvimento de métodos sustentáveis, como o tingimento artificial da seda com bactérias. A equipe analisa a qualidade do fio de seda, assegurando que a alimentação e os processos não comprometam a estrutura e a qualidade do produto final.

Na cosmetologia2, o projeto “Seda Brasil” avançou na criação de um biofilme para tratar feridas crônicas e queimaduras, que está em fase final de desenvolvimento. Em parceria com a SETI, um novo sérum cicatrizante será lançado, em outubro de 2024, no Congresso Internacional de Cosmetologia, na cidade de Foz do Iguaçu. Cristianne ressalta o apoio da atual primeira-dama do Paraná, Luciana Saito Massa, que é uma grande incentivadora do projeto, especialmente, pela forte presença de mulheres na produção de seda, tanto no campo quanto na indústria.

A professora lembra que o Paraná é o maior produtor de seda do Brasil, abrigando a única empresa de fiação do ocidente. “Toda gravata e lenço da marca de luxo Hermès são feitos com seda de Londrina”, enfatiza ela, mencionando que compradores de grifes de luxo visitam frequentemente os laboratórios do projeto. 

Olhando para fora

No mercado internacional, há alguns desafios. Para combater a adulteração de produtos brasileiros, estão em desenvolvimento marcadores genéticos que irão certificar a seda como um produto de qualidade exclusiva paranaense. 

“O objetivo central do projeto é melhorar a vida dos produtores, gerando desenvolvimento econômico e social para o Paraná, por meio da exportação numa cadeia sustentável e multidisciplinar”, ressalta Cristianne. 

O bicho-da-seda (Foto/Seda Brasil)

Nessa missão de encontrar soluções para problemas enfrentados pelos sericicultores, como o crescente uso de defensivos químicos, o “Seda Brasil” promove práticas de sanitização e sustentabilidade entre os produtores. Cristianne lembra que a certificação de orgânico é essencial para o mercado europeu, principal comprador da seda brasileira: “nossa cadeia de produção é limpa e sustentável, mas temos que mitigar vários fatores para que a sericicultura não acabe no Paraná. Podemos coexistir com plantios de soja e milho, por exemplo, desde que todos sigam, adequadamente, a legislação de como se faz o uso correto de defensivos”. 

Pela legislação brasileira, uma lagarta não é um animal, mas na Europa, sim. Por isso, é necessário comprovar que o bicho-da-seda não sofre por aqui. Com essa demanda, o “Seda Brasil” desenvolveu uma patente natural, hoje utilizada no mundo todo, de anestesia para o bicho-da-seda, que garante que ele não sente dor ao morrer. 

Na verdade, para Cristianne, “morrer” não é um termo adequado. “Considerando todo seu impacto positivo em diversas áreas e, principalmente, na economia, prefiro dizer ‘fim de ciclo’, uma vez que, nada se desperdiça do bicho-da-seda. A pupa, pode servir de alimento, e seus resíduos, chamados de estopa, podem ser utilizados para estofamento de carros”, diz a pesquisadora.

  • As imagens mostram a participação do projeto num evento.
  • As imagens mostram a participação do projeto num evento.
  • As imagens mostram a participação do projeto num evento.
  • As imagens mostram a participação do projeto num evento.
  • As imagens mostram a participação do projeto num evento.

O projeto no 40º Encontro Estadual de Sericicultura (Foto/Seda Brasil)

Olhando para dentro

O projeto, que atende mais de dois mil produtores em 168 municípios paranaenses, atua em propriedades de, no máximo, 50 hectares. Para Cristianne, isso contribui para uma característica diferenciada. Ela diz que “atendendo esses pequenos produtores me dei conta de que esse é o nosso papel, talvez seja esse o diferencial de professores, nós estamos acostumados a compartilhar conhecimento, a inspirar pessoas. Eu digo que a minha diferença de ser docente é ser a inspiração, compartilhar pesquisa e conhecimento, ajudando a transformar a vida das pessoas”.

Por casulo, o bicho-da-seda paranaense produz um quilômetro e meio de fio da seda. “Esse é o grande diferencial, um fio totalmente branco, graças ao nosso ‘jeitinho paranaense’, em que se destaca a boa qualidade do solo, clima, genética e muita pesquisa envolvida, algo que o mercado exterior exige”, defende a professora.

Mudas de moreiras cultivadas em estufas.
O cuidado com as amoreiras, parte essencial da sericicultura, também é uma preocupação do projeto “Seda Brasil” (Foto/Seda Brasil)

A equipe do projeto está identificando bolsões de áreas propícias para a sericicultura, trabalhando junto ao Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR-PR) para ampliar as regiões de produção, e explorando a integração com outras culturas, como café orgânico, morango e apicultura. Cristianne destaca: “apesar do tamanho reduzido das áreas de produção, a sericicultura é uma cultura mais rentável por hectare para o pequeno produtor, superando outras atividades, como a soja, em termos de retorno econômico proporcional ao espaço utilizado”. Além disso, o “Seda Brasil” pretende treinar os técnicos do IDR para coleta de amostras, aumentando a qualidade das pesquisas.

O futuro é logo ali

Tecidos de origem orgânica estão cada vez mais em alta, devido à crescente preocupação com a sustentabilidade, uma tendência que veio para ficar. Para Cristianne, a sustentabilidade na produção de seda não é apenas uma opção, mas uma necessidade inerente ao processo. Ela ressalta que o futuro da seda no Paraná está diretamente ligado à capacidade de identificar e resolver os problemas que afetam o setor atualmente. Por isso, o projeto realiza diagnósticos detalhados das propriedades no estado, coletando e cruzando dados para montar estratégias para ampliar a produção. 

Cristianne também vê potencial em explorar novos mercados, com a utilização da sericina3. A parceria com uma startup do Vale do Silício4, que utiliza sericina para prolongar a vida útil das frutas, é um exemplo de como ativos da sericicultura podem, cada vez mais, agregar valor à cadeia produtiva. 

A pesquisa é parte essencial do projeto “Seda Brasil” (Foto/Seda Brasil)

O projeto também está comprometido com a disseminação de conhecimento e capacitação dos produtores. Até 2025, será lançado um livro que promete mudar a literatura sobre o bicho-da-seda, além de um curso de educação a distância voltado para o treinamento de pequenos produtores.

O futuro da seda, segundo Cristianne, depende da capacidade de prever e prescrever as melhores práticas para superar os desafios atuais, aproveitando ao máximo os recursos disponíveis e agregando valor em todas as etapas da produção.

A professora Cristianne acredita que a seda é “o fio que transforma”, capaz de mudar a vida de quem se envolve com o negócio. Embora a sericicultura represente uma pequena parcela da economia do Paraná, que é um estado produtivo em muitas áreas, ela se destaca por ser a melhor do mundo. Essa excelência justifica a atenção especial dada ao envolvimento de mulheres e pequenos produtores, assegurando que o Paraná continue a ser referência mundial na produção de seda de alta qualidade.

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Texto:
Guilherme de Souza Oliveira
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Silvia Calciolari
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

Glossário

  1. Sericicultura – consiste na criação do bicho-da-seda e na cultura de amoreiras ↩︎
  2. Cosmetologia – estudo dos produtos cosméticos e das suas aplicações ↩︎
  3. Sericina – proteína hidrofílica constituinte do casulo do bicho-da-seda ↩︎
  4. Vale do Silício – região da Califórnia, nos Estados Unidos, onde estão situadas várias empresas de alta tecnologia ↩︎

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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