A artista plástica e professora Sandra Marchi sempre esteve mergulhada no universo das cores. Seu trabalho se desenvolveu entre tintas, luzes e nuances que expressam sensibilidade e técnica. Mas, mesmo com anos dedicados às artes, ela sentia falta de um novo desafio, uma maneira de dar continuidade aos estudos e à própria trajetória profissional.
Na busca por um novo rumo acadêmico, encontrou uma oportunidade inusitada: uma vaga na pós-graduação em Engenharia Mecânica, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). À primeira vista, parecia um universo distante de sua história nas artes. Porém, a curiosidade e o desejo de aplicar o conhecimento em cor de forma inovadora falaram mais alto.
Dentro de um projeto colaborativo com cinco universidades brasileiras, voltado ao desenvolvimento de Tecnologias Assistivas, ela recebeu a missão de criar algo que tornasse as cores acessíveis a pessoas com deficiência visual (por exemplo, pessoas com cegueira, baixa visão e daltonismo). Continuava lidando com cores, mas agora sob um lado radicalmente novo, com o tato no centro da experiência.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que mais de 6,5 milhões de pessoas têm algum grau de deficiência visual no Brasil. Desse total, cerca de 500 mil são cegas e aproximadamente seis milhões possuem baixa visão. São milhões de brasileiros com acesso limitado à cor, uma informação essencial do nosso dia a dia. Pensando nessas pessoas e na importância de tornar o mundo mais inclusivo, Sandra decidiu transformar o desafio acadêmico em um projeto de vida.

Foi assim que nasceu o See Color, um método de linguagem tátil que representa as cores por meio de pequenos códigos em relevo, pensados para serem facilmente memorizados e aplicáveis a qualquer superfície. “Eu sabia que tinha que fazer alguma coisa diferente do Braille, porque tinha que ser pequeno, tinha que ser fácil e ter um design universal”, conta Sandra.
A pesquisadora ressalta que o Braille, apesar de essencial para a alfabetização de pessoas com deficiência visual, não é uma alternativa simples para representar cores. Além de exigir grande espaço para aplicação em objetos do cotidiano, seu aprendizado pode ser desafiador, especialmente para quem perde a visão na vida adulta. Ela ainda constatou que o Braille não é uma linguagem universal. Como se trata de um sistema de escrita baseado no alfabeto, cada país o utiliza conforme sua própria língua.
A proposta da pesquisa de Sandra foi unir conhecimento técnico, sensibilidade artística e acessibilidade. Para isso, baseou-se na Teoria das Cores e criou uma lógica simples e intuitiva, com inspiração também em algo muito familiar: o relógio. Cada cor primária, secundária e neutra ganhou um código baseado na posição dos ponteiros.
“A pessoa tem que memorizar apenas oito posições, ou seja, oito códigos, que são iguais ao ponteiro de um relógio. Se ela sentir a posição, por exemplo, dez horas, já sabe que é roxo. Seis horas, verde. Doze horas, vermelho”, explica. Além disso, há diferenciação de tonalidades. Pontos adicionais ao lado do eixo indicam se a cor é clara ou escura, enquanto um semicírculo ao redor do eixo do código representa tonalidades metálicas. Com isso, o sistema abrange quase 100 cores.

O See Color é um projeto registrado oficialmente, pois seu código é patenteado pela UFPR, garantindo sua originalidade e reconhecendo seu valor como inovação. Desde que criou o See Color, Sandra entendeu que não bastava apenas desenvolver um sistema tátil de identificação de cores. Para que o método realmente chegasse às pessoas, era preciso criar caminhos de aprendizagem acessíveis e materiais que pudessem ser usados por diferentes públicos.
Dessa forma, surgiram os kits pedagógicos. O material foi desenvolvido para atender tanto crianças quanto adultos com deficiência visual, além de educadores, instituições e qualquer pessoa interessada em aprender a linguagem tátil das cores. “Quando eu estava fazendo o doutorado, eu já pensava que precisava de um material para ensinar o código. Mas, para isso, eu teria que ensinar a Teoria das Cores também”, acrescenta Sandra.
“O kit pedagógico é lúdico, ensina de forma divertida e pode ser usado por qualquer pessoa, de qualquer idade”, afirma. A ideia é oferecer ferramentas que promovam autonomia e aprendizado prático. Não por acaso, o See Color tem ganhado espaço de Norte ao Sul do Brasil.

No pequeno município de Borba, no Amazonas, Dilma Lopes encontrou no See Color uma poderosa ferramenta de empoderamento. “Quando tive o primeiro contato com o See Color, me senti realizada”, relembra. Dilma perdeu a visão aos 13 anos, após uma infecção no nervo óptico, e, desde então, buscava uma forma de reconhecer as cores ao seu redor.
Recentemente, viveu um momento marcante durante uma atividade de jogo da memória com tampinhas coloridas. Utilizando a linguagem tátil do See Color, conseguiu identificar todas as cores e impressionou seu professor da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Ela é a primeira aluna com deficiência visual a frequentar o EJA na sede do município e relata que tudo é uma novidade. “Eles dizem que têm muito a aprender comigo, e eu também tenho muito a aprender com eles. A gente vai se ajudando.”
O professor de música Tiago Bicz, professor de música e cego total, conheceu o See Color em uma oficina realizada pela Associação dos Deficientes Visuais de Erechim (Adeve), no Rio Grande do Sul. Daí em diante, passou a utilizá-lo em seu dia a dia. “O método é simples e revolucionário porque permite à pessoa cega acessar a informação da cor sem depender de um vidente”, afirma. “Facilita muito no nosso dia a dia, traz uma independência e uma autonomia muito grande.”
De acordo com Sandra, uma das frentes mais promissoras de aplicação do See Color é a educação. A ideia é que a linguagem tátil das cores esteja presente nas escolas regulares, de forma que todos os estudantes, com ou sem deficiência visual, aprendam desde cedo sobre cor, inclusão e acessibilidade.
Os testes realizados com o kit pedagógico revelaram mais do que a eficácia do método, mostraram também o entusiasmo dos alunos. Em uma das turmas em que Sandra aplicou a atividade, os próprios estudantes se organizaram em grupos, vendaram os olhos e desafiaram uns aos outros a identificar cores pelo tato. “Eles não queriam que acabasse a aula”, lembra.
O See Color possibilita que o conhecimento sobre cor seja explorado em diversas disciplinas escolares, permitindo que estudantes com deficiência visual acompanhem o conteúdo junto aos colegas. Ao aprender desde cedo, o aluno desenvolve uma base sólida que facilita o uso do código ao longo da vida.

Apesar da importância e do grande potencial, o projeto ainda enfrenta dificuldades para ganhar escala. Na tentativa de ampliar o alcance da iniciativa e viabilizar sua inserção em políticas públicas, a pesquisadora da UFPR objetiva dar um novo passo para o See Color e criar um instituto. A proposta é consolidar uma estrutura capaz de firmar parcerias, captar recursos e formar voluntários, garantindo a continuidade e a expansão do projeto.
O reconhecimento, no entanto, já ultrapassa fronteiras. Em 2024, a Universidade Federal do Paraná recebeu o IUAD Award – Bronze, concedido pela International Association of Universal Design (IAUD), do Japão, em reconhecimento ao See Color. No Brasil, o projeto também foi laureado com premiações importantes, como o Prêmio Viva Inclusão (2018), o Prêmio Empreendedora Curitibana (2019), o Prêmio Curta Ciência (2019) e o Prêmio Sérgio Mamberti, do Ministério da Cultura.
Resultado do encontro entre arte e ciência, o See Color é a possibilidade de dar forma ao que antes era invisível para milhões de pessoas. Ao transformar a cor em algo que pode ser sentido com as mãos, o projeto amplia horizontes e propõe uma nova perspectiva sobre acessibilidade, autonomia e inclusão. Nesse percurso, a universidade pública se reafirma como espaço de invenção social e produção de conhecimento com impacto real na vida das pessoas.
Assista ao vídeo e conheça mais sobre o See Color:
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Texto: Maria Eduarda de Souza Oliveira
Revisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Lucas Higashi
Supervisão de arte: Lucas Higashi
Edição Digital: Guilherme Nascimento
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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