“Essa criança não é normal!” “Quanto talento e criatividade!” “É a mais inteligente da sala!”. Muitos professores lidam com esses pensamentos em sala de aula, e saber exatamente como lidar com casos de Altas Habilidades e Superdotação (AHSD) ainda é um desafio no Brasil.
Mas iniciativas importantes sobre o tema têm sido feitas, como o projeto “Identificação, Avaliação e Intervenção Pedagógica para Potencialização de Talentos”, coordenado pela professora Carla Luciane Blum, da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), em Guarapuava, que conversou com a gente sobre a trajetória desse projeto. A professora Carla tem doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2010), pós-doutorado em Educação na Durham University-Reino Unido (2016-2017) e tem um dos maiores números de dissertações e teses defendidas sobre altas habilidades e superdotação do país.

O início do desafio
A criança superdotada é aquela que apresenta certas habilidades cognitivas e intelectuais acima da média. É também conhecida como a que tem um Quociente de Inteligência elevado, o famoso Q.I.. Mesmo quando o teste de Q.I. não revela um número elevado, uma criança ainda pode ser caracterizada com altas habilidades quando evidencia grande talento artístico, musical ou social, por exemplo.
Tudo começa com algumas suspeitas de pais, cuidadores e professores, quando percebem que há algo incomum nas ações da criança, como formular e responder questões extraordinariamente acima da média e apresentar um entusiasmo exagerado por alguma atividade. Outro indício é quando, subitamente, muda de interesse, ficando entediada, e até irritada, por já ter dominado o conteúdo. Para confirmar a suspeita, a criança precisa ser submetida a várias sessões de avaliação por profissionais especializados como psicólogos e neuropsicopedagogos.
Os primeiros profissionais a levantarem essas hipóteses são os professores do ensino infantil, porque estão em contato com as crianças testando e observando sua aprendizagem. Mas como estimular ainda mais as suas habilidades? Como evitar que se sintam mal, desencaixadas e culpadas por serem diferentes da maioria? Ou, por outro lado, como lidar com as perguntas constantes que desafiam o professor, ou com os casos de indisciplina, como inquietação e recusa em copiar tarefas?
É por esse motivo que a formação recebida nos cursos de Pedagogia deve prever na sua matriz curricular um ensino voltado para esses casos. Mas o tema das altas habilidades, geralmente inserido nas disciplinas de Educação Especial e Ensino Inclusivo, é apenas um entre vários temas trabalhados no curso. Com duração em média de quatro anos apenas, uma graduação em Pedagogia acaba priorizando alguns temas e os das AHSD não é um deles.
Enquanto isso, o senso comum reforça com uma lamentável indagação: Por que nós vamos nos preocupar com aquele aluno que é muito inteligente, se há o aluno que tem uma dificuldade “real” em aprender como em casos de dislexia, Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno Opositor Desafiador (TOD)?
Começa-se, aqui, o silenciamento dessas crianças com altas habilidades e superdotação. Muitas delas sofrem bullying na infância e têm dificuldades em formar amizades, o que prejudica seu processo de autoconhecimento e aceitação. Daí, quanto mais o tempo passa, mais difícil diagnosticar, porque elas vão camuflando esse jeito que as faz se sentirem tão erradas, por serem diferentes. A maioria dos estudantes superdotados chega à universidade sem identificação prévia, não reconhecendo suas próprias habilidades, e seus talentos ficam despercebidos, resultando em “talentos perdidos”.
“Seria valioso que essa temática fosse discutida não só nos cursos de formação de educadores, mas também com a família, com as escolas e a comunidade local. Isso ajudaria os pais e a equipe pedagógica a identificarem as características e buscarem avaliação. Seria interessante discutir, dentro das políticas de inclusão, os direitos das pessoas com altas habilidades, como o direito à aceleração escolar”, alerta a professora Carla Blum.

A pesquisadora nos explica ainda que é crucial realizar avaliações desde a infância, juntamente com atendimentos psicológicos e participação em grupos de altas habilidades. “Esses grupos permitem que os alunos se encontrem com pares semelhantes, ajudando na construção de sua identidade como superdotados”, afirma.
O silenciamento dessa questão pode ser quebrado com mais parcerias entre escolas e universidades, que poderiam proporcionar suporte psicológico e integração em projetos que despertem curiosidade e fomentem o desenvolvimento pessoal e coletivo. É aí que o projeto “Identificação, Avaliação e Intervenção Pedagógica para Potencialização de Talentos” traz sua importante contribuição.
Iniciado em 2014, a proposta envolve a avaliação de crianças de até dez anos de idade com o intuito de verificar indicadores de superdotação e, após a identificação, os professores e as famílias são convidados a receber uma orientação sobre como acolher as demandas das altas habilidades.
A origem do projeto
O projeto começou a partir de outros estudos que a professora Carla realizou durante o seu doutorado, quando propôs a tese de que algumas crianças apresentavam respostas complexas relacionadas, principalmente, à resolução de conflitos e dilemas morais.
“Em 2010, isso me chamou muito a atenção, embora eu não investigasse altas habilidades na época. Eu me perguntava por que algumas crianças apresentavam respostas tão sofisticadas, enquanto outras não”, relata Carla. Essa busca incluiu leitura e estudo solitários, além da identificação de características de superdotação nela mesma. Notou essas características também em seu filho na época. Anos depois, buscou sua própria avaliação e a de seus filhos.
No início de seu novo interesse de pesquisa, recebeu uma recém-doutora, a professora Jarci Maria Machado, que queria fazer estágio de pós-doutorado sob sua supervisão. A professora Jarci havia estudado AHSD em sua tese, investigando o processo de raciocínio desses alunos, especialmente na área da matemática. Na época, em Guarapuava, já havia uma demanda de crianças que necessitavam de avaliação.
Quando a pós-doutoranda chegou com a ideia de criar um instrumento que poderia ser usado por professores ou educadores nas escolas para rastrear indicadores de AHSD em crianças, as pesquisadoras viram uma oportunidade. A ideia era que esse instrumento pudesse ajudar os professores a identificar e encaminhar alunos com possíveis altas habilidades.
“A equipe foi formada gradualmente. Já havia na época uma bolsista psicóloga no laboratório, além de duas pedagogas do departamento de Pedagogia interessadas em participar”, relembra a professora. A psicóloga tinha experiência clínica e já realizava trabalhos de identificação. Também se juntou à equipe uma especialista em avaliação, docente de uma universidade particular de Guarapuava. Formaram um grupo sólido, que incluía também alunos de Iniciação Científica. Assim, o projeto, inicialmente pensado para ser apenas um instrumento, foi expandido para incluir avaliação, identificação, orientação e intervenção.
Com a abertura que já tinham com a Secretaria Municipal de Educação, devido a outros projetos, sugeriram uma triagem mais ampla e a realização de um curso de formação para os professores. Iniciaram essa formação com pedagogos e diretores de aproximadamente vinte e quatro escolas do município, focando em crianças de seis a dez anos, do primeiro ao quinto ano do Ensino Fundamental.
Durante a formação, os profissionais ajudaram a desconstruir vários mitos sobre superdotação e também realizaram atividades que puderam identificar alunos com possíveis altas habilidades, como preenchimento de instrumentos, anamnese, entrevistas com crianças, famílias e professores.
Como resultado da iniciativa pioneira, o projeto foi contemplado pelo Programa de Bolsas de Produtividade em Pesquisa e/ou Desenvolvimento Tecnológico da Fundação Araucária (FA), refletindo toda a contribuição e reconhecimento do trabalho de Carla Blum.
Além do projeto, Carla também coordena o Laboratório de Psicologia Educacional (LaPE), que fará dez anos em 2025, e o Grupo de Estudo e Pesquisa Interdisciplinar em Desenvolvimento Humano e Educação (GIEDH) que fará vinte e cinco anos em 2025. Atuou junto ao PPGE da Unicentro e da UFPR, e hoje está no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemática (PPGEN/Unicentro).

Uma proposta enriquecedora
As formações e atividades do projeto foram aplicadas na escola que apresentou o maior número de alunos com altas habilidades, e baseadas nas ideias do psicólogo educacional americano Joseph Renzulli. Muito reconhecido na área, o professor desenvolveu modelos de práticas de ensino que visam não só estimular o potencial dos alunos com AHSD, mas também de todos os alunos. A equipe realizou um trabalho com os professores, que se tornaram multiplicadores da prática de enriquecimento curricular, que podia ser aplicada a toda a turma.
O que a equipe percebeu nos relatos dos professores foi surpreendente: eles não imaginavam ser possível realizar aquelas atividades com as crianças. À medida que trabalhavam e realizavam os encontros, os professores começaram a aplicar as atividades e os alunos com altas habilidades se tornaram mais interativos e motivados.
A professora Carla completa: “os relatos dos professores sobre a prática em sala nos mostraram que é possível atingir nossos objetivos com um bom material de trabalho e uma compreensão específica do que são as altas habilidades. É importante promover na sala de aula oportunidades para que a criança seja protagonista do próprio conhecimento, investigue a temática abordada, traga suas descobertas para a turma de forma estruturada e apresente isso aos colegas, entre outras atividades propostas por Renzulli”.
Ela lembra que essa formação foi extremamente enriquecedora e que o grupo recebeu muitos relatos positivos dos professores. Foram dois anos para avaliar 230 crianças. Destas, 30 famílias receberam indicativos de altas habilidades. Durante a devolutiva, convidaram as famílias para receberem o feedback nas escolas, onde estavam à espera para discutir os resultados. No entanto, apenas 15 famílias compareceram, o que levou a equipe a questionar os motivos dessa baixa adesão.
Das famílias que compareceram, muitas ficaram surpresas, pois não esperavam que seus filhos apresentassem indicadores de AHSD. Como retorno, orientaram as famílias sobre a necessidade de complementar a avaliação. Sugeriram que as crianças fossem encaminhadas para atendimentos especializados, onde teriam a oportunidade de desenvolver seus talentos, e também indicaram quais atividades seriam mais adequadas para cada fase da criança, respeitando sua faixa etária.
Muitos pais agradeceram, pois não tinham condições financeiras para buscar uma avaliação por conta própria. Na época, o município enfrentava dificuldades para avaliar as crianças, existindo uma fila de espera, tanto para aqueles com indicadores de altas habilidades quanto para crianças com outras necessidades educacionais especiais.
A baixa adesão das famílias durante as devolutivas indica a necessidade de um esforço contínuo para envolver a comunidade e garantir que todas as crianças tenham acesso ao suporte que merecem. Mais do que um olhar apenas especializado, é preciso um olhar integrador para que tenhamos uma cultura educacional que reconheça e celebre a diversidade de talentos e o potencial humano.
EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Patricia Ormastroni Iagallo
Revisão: Silvia Calciolari
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Any Veronezi e Mariana Muneratti
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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