Costumo me questionar sobre os sonhos que temos. É normal o ser humano ter objetivos e planos para o futuro, seja ele por coisas que ainda não aconteceram, como planejar uma viagem, ter um relacionamento, uma faculdade, construir uma casa, ter um carro novo, como outras tantas coisas que movem o nosso coração e nos fazem ter esperança em traçar metas para concretizá-las. Ter um sonho é como ter uma razão para acordar todas as manhãs, buscar forças e inspiração, superar obstáculos e perseverar naquela ideia.
Diante disso, te pergunto: qual é o seu maior sonho? Qual é aquele desejo intenso, que existe dentro de você e que te impulsiona a buscar algo maior? Qual é aquele objetivo de vida que você reflete sobre ele e, quando se vê alcançando, a alegria e entusiasmo tomam conta?
Durante a produção dessa matéria para o Conexão Ciência – C², pude compreender que os sonhos podem soar como “simples”, porque tudo depende da realidade em que se encontra o sonhador, como por exemplo, o fato de sonhar em ter uma torneira em casa. Parece absurdo, porém esse contexto não está tão longe de nós. Vou te contar essa história.
Ter sonhos é importante não só para nossa realização pessoal, mas, também, pelo impacto positivo que eles podem ter na sociedade. E foi em uma das oficinas realizadas por um projeto de extensão com Catadores de Materiais Recicláveis, atendido pela Incubadora Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), que o impacto de pensar sobre os sonhos se fez presente da forma mais singela e, ao mesmo tempo, tão complexa.
Desde 2019, a Incubadora Social da Universidade abriga projetos de extensão que têm como foco, entre outros públicos, famílias de catadores de materiais recicláveis de Guarapuava-PR. Em uma das ações desenvolvidas pela equipe de trabalho foi realizada uma “Dinâmica dos Sonhos”, em que os participantes deveriam colocar no papel, fosse desenhando ou colando recortes, quais eram seus maiores sonhos. Alguns colocaram casas, outros carros, mas teve um que se destacou entre eles: um senhor que escolheu representar no papel uma torneira. Sim, uma torneira. Porque seu sonho era simples, porém difícil em sua realidade: ter água encanada em casa, poder tomar um banho gostoso, depois de um dia de trabalho árduo.
A busca pelos sonhos desse catador atendido pelo projeto já não era mais só dele, mas de toda a equipe. E assim é o trabalho que se realiza nos projetos ‘Esperançar e Cata(ação): fomento à organização coletiva na perspectiva da economia solidária’. Esse trabalho coletivo, envolve catadores, técnicos, professores, egressos e acadêmicos das áreas de Serviço Social, Administração, Geografia, Arquitetura e Urbanismo, Comunicação Social e Direito, com o objetivo de assegurar o acesso dessas pessoas aos direitos sociais, econômicos e de educação ambiental, além de contribuir para processos socioeducativos ambientais da comunidade em geral.
O Departamento de Serviço Social tem um histórico de trabalho com catadores. Entre 2019 e 2022, foi desenvolvido o Projeto Trabalho Social com famílias de catadores de materiais recicláveis de Guarapuava-PR, financiado pelo Programa Universidade Sem Fronteiras, financiado pela Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná (Seti), com a participação de 36 famílias de catadores que foram beneficiárias do “Programa Municipal para Desenvolvimento Social das Famílias em Extrema Vulnerabilidade e Risco Social” – Programa Vida Digna.
Organização coletiva
‘Entre 2021 e 2023, está sendo desenvolvido o ‘Esperançar” junto aos(as) catadores(as) de materiais recicláveis de Guarapuava – PR, acompanhado pela Incubadora Social, com o objetivo de incubar o território onde vivem essas 36 famílias e acompanhar as demandas apresentadas em seu cotidiano. E, agora, também conta com o projeto ‘Cata(ação): fomento à organização coletiva na perspectiva da economia solidária’, com foco de trabalho em outro bairro da cidade, onde ainda não existiu nenhum projeto neste sentido, para desenvolver ações socioeducativas com grupos de catadores, sobretudo, sensibilizando para a importância da organização dos trabalhadores e trabalhadoras da catação.
Por isso, o projeto irá realizar ações na perspectiva da economia solidária e organização coletiva, direitos sociais e cidadania, evidenciando também a importância de entender os contextos que envolvem o trabalho, renda e, principalmente, a importância do associativismo e cooperativismo. Além disso, a noção de território, com foco no acesso dos catadores aos direitos sociais, estímulo à autonomia e à participação cidadã. O foco é a construção desses saberes e possibilidades com esses trabalhadores e não para eles, estimulando sua busca por autonomia e o fortalecimento do coletivo.
Os projetos, que hoje contam com a coordenação da professora Angela Maria Moura Costa Prates, do Departamento de Serviço Social, e do Anderson Roik, da Incubadora Social da Unicentro, desempenham um papel fundamental na busca por garantia de direitos e políticas públicas de inclusão para grupos marginalizados, como os catadores de materiais recicláveis. Estudantes, professores, comunidade universitária e catadores se envolvem em ações concretas, que visam melhorar a qualidade de vida e buscam diminuir as desigualdades e promover oportunidades para esses indivíduos.
Para tudo isso acontecer na prática, exige muito planejamento, reuniões com os catadores, diagnósticos, visitas, articulações, inclusive junto ao poder público, pois como aponta Bruna Carvalho, egressa de Serviço Social e integrante dos projetos, “não somos política pública. O que podemos fazer é fomentar essas políticas, mas não temos esses recursos para que a política pública aconteça”.
Durante essas ações, muitos temas são observados junto às famílias e se tornam objeto de ações socioeducativas com temas dos mais variados, que poderão ser vistos e aplicados no dia a dia desses indivúdios, desde o protagonismo das famílias, gravidez na adolescência (risco e prevenção), violência familiar e doméstica contra mulheres, prevenção ao abuso sexual contra crianças e adolescentes, prevenção ao uso de substâncias psicoativas até o Direito à cidade, economia popular solidária, entre tantos outros assuntos que precisam chegar até esse grupo de pessoas.
A importância da Coletividade – Formação de uma Cooperativa
Os catadores de materiais recicláveis desempenham um papel essencial na sociedade, contribuindo para a preservação do meio ambiente e para a redução dos impactos negativos causados pelo consumo desenfreado e pela produção excessiva de resíduos. No entanto, muitas vezes, esses trabalhadores são excluídos e enfrentam inúmeras dificuldades, incluindo a falta de acesso a direitos básicos e à proteção social.
“A maior parte das trocas e das experiências que nós tínhamos com eles eram de muita luta, muito sofrimento, muita discriminação. As conversas acabavam acontecendo em torno daquilo, mas não porque a vida deles era só aquilo, mas porque a nossa presença como grupo da Universidade que estava lá em contato com eles, era como se fossemos os receptores dessas demandas, eles nos enxergavam como a grande chance de dizer o que estava acontecendo, de se sentirem ouvidos, considerados”, relatou Aline Koslinski, egressa do curso de Jornalismo, que participou do projeto e integra a equipe ainda hoje.
As novas ações extensionistas visam, agora, o trabalho em outro bairro da cidade, onde ainda não existiu nenhum projeto neste sentido para desenvolver ações socioeducativas com grupos de catadores, sobretudo ressaltando a importância da organização coletiva dos trabalhadores da catação.
Para a professora Angela Maria Moura Costa Prates, coordenadora dos projetos, “estimular a organização coletiva e fortalecer a luta pela transformação social é imperativo nesta proposta”, por ir ao encontro do que já foi alinhado nas ações anteriores junto aos demais grupos de catadores.
“A gente desenvolveu uma série de ações, sempre em grupos, reúnem-se as famílias, com atividades pensadas para todos: crianças, adolescentes, adultos, envolvendo todo o grupo nas ações dos projetos, trabalhando temas como economia solidária, trabalho de cooperação, associativismo, cooperativismo, o entendimento do próprio trabalho da catação, do trabalho de forma geral na nossa sociedade capitalista. Além disso, questões da reciclagem, o ciclo da reciclagem, trouxemos até o Movimento Nacional dos Catadores para cá”, explicou a coordenadora.
Ao unir os conhecimentos acadêmicos e as habilidades dos estudantes com as demandas e necessidades da comunidade de catadores, essas ações criam um ambiente colaborativo de aprendizado mútuo, conforme esclareceu o coordenador do projeto, Anderson Roik. “Construímos ofício juntos, colocamos no papel, para apresentarmos essas demandas para a Prefeitura. Depois que já estavam no novo território retomamos esse ofício, refletimos sobre como estava agora, então já foi um momento diferente daquele primeiro. As próprias catadoras escreveram o novo ofício e foram fazer esse protocolo, colocando elas em posição de protagonistas em busca de uma cidadania política, territorial, busca por direitos”, destacou o professor.
O dia a dia dos projetos é de muitas idas e vindas. A cada encontro com as famílias são necessárias novas ações, novas estratégias, formações, planejamento. Funciona como um ambiente vivo. Porque é! Em cada momento surgem novas demandas e, por isso, os projetos contam com muitas atividades como rodas de conversa, oficinas, que permitem essa avaliação e monitoramento constante das necessidades. Vídeos, músicas, dinâmicas, elaboração de materiais que vão desde documentos com as demandas do território, até atividades mais lúdicas que auxiliam, inclusive, na construção do processo de identidade dessas pessoas de forma mais lúdica, como o fanzine, por exemplo.
Ações de prática simples, mas planejamento complexo, que proporcionam aos catadores de materiais recicláveis a oportunidade de serem ouvidos e suas necessidades atendidas. Por meio do mapeamento das condições de trabalho, entrevistas e diálogos participativos, os estudantes e professores podem identificar as principais demandas do grupo e elaborar estratégias efetivas de intervenção. Isso é fundamental para a construção da perspectiva da coletividade para esses grupos.
“Não adianta você ter um espaço, ter um barracão e colocar um grupo de 20 pessoas, que sempre trabalharam individualmente, muitas vezes disputando entre eles o material e, simplesmente colocá-los para trabalhar juntos”, pontua o coordenador Anderson.
Os projetos de extensão universitária desempenham um papel crucial no estímulo dos catadores de materiais recicláveis nessa busca por garantia de direitos e políticas públicas de inclusão. Por meio do envolvimento da academia, da comunidade e dos catadores, essas iniciativas promovem a transformação social, a valorização do trabalho desses profissionais e a construção de uma sociedade mais justa e sustentável.
Além disso, auxiliam na busca por sonhos, por mais simples que seja, como ter água encanada em casa. Mas esse sonho, para quem desconhece a realidade desses grupos, é exatamente o que estimula essas pessoas a desenvolver novas habilidades, superar suas dificuldades, lutar contra as injustiças e fazer ouvir sua voz.
A comunidade universitária que se envolve nos projetos, professores, universitários, egressos, fazem esses sonhos perseverar, auxiliando na preparação, na determinação e na busca pela ação de fato. É por intermédio deles, que essas pessoas, antes esquecidas, lembram que o primeiro passo para a realização de um sonho é acreditar que ele é possível.
Ainda nessa perspectiva de apresentar o impacto social dos projetos de extensão das Universidades em parceria com a comunidade, o Conexão Ciência – C² preparou esta semana outra matéria sobre o assunto. Confira lá!
Glossário:
Fanzine – é uma manifestação midiática de tema livre, em forma de revistas confeccionadas artesanalmente. Estas revistas são feitas com desenhos, colagens e textos digitados ou escritos a mão.
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Texto: Andressa Rickli
Revisão: Débora Arcanjo
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Leonardo Rasmussen
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: