Trânsito: um problema de saúde pública

O Brasil é o 3º país no mundo com maior número de mortes no trânsito

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Quantas vezes, ao ligar no noticiário, ouvimos a palavra acidente? E ao abrir as notícias no celular? Quantas fotos de colisões de automóveis – por vezes, até insensíveis – você já viu? Fiz o exercício de buscar no maior site de notícias do grupo Globo, um dos mais acessados do país, a palavra acidente de trânsito. Cheguei a uma média de vinte notícias diárias Brasil afora, contando as redes afiliadas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é, hoje, o terceiro país do mundo com mais mortes em acidentes de trânsito, atrás apenas da Índia e da China. 

Todos ficaríamos muito chocados se, diariamente, ao ligar no telejornal, fosse noticiado 100 mortos em quedas de aviões, certo? Mas essa é a média diária de brasileiros que morrem no trânsito e não parecemos estar tão espantados. Na realidade, estamos habituados, até demais, com os chamados “acidentes de trânsito”. O termo, por si só, carrega consigo uma falsa crença de eventos aleatórios e que não poderiam ser evitados ou previstos. Na verdade,devemos chamar de sinistros de trânsito as colisões, atropelamentos e outros eventos antes denominados acidentes. 

Os sinistros, em geral, resultam de motoristas, motociclistas, pedestres e ciclistas que, deliberadamente ou não, comportam-se de maneira perigosa. O que nos leva a esse tipo de comportamento no trânsito? E como podemos solucionar esse problema que pode ser considerado questão de saúde pública?

A psicologia do trânsito é uma área que estuda os comportamentos dos participantes do trânsito e os processos psicológicos associados, considerando, ainda, os contextos e os lugares específicos onde ocorrem.  É uma área de pesquisa e de aplicação que produz conhecimento científico junto aos indivíduos, aos grupos e às comunidades. A ideia é promover a segurança viária para todos.

E, quando falamos dos participantes do trânsito, estão inclusos desde os condutores de veículos até os pedestres. A psicologia do trânsito está preocupada com todo o sistema. Além de compreender como as relações de mobilidade acontecem, essa área também busca respostas para prevenir mortos ou feridos graves no trânsito. 

Conscientização 

Ações educativas acontecem na Semana Nacional de Trânsito (SNT) todos os anos desde a criação do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em 1997, entre os dias 18 e 25 de setembro. O tema em 2024 é “paz no trânsito começa por você.” Apesar da mensagem alertar para os comportamentos individuais, a especialista em psicologia do trânsito, professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Alessandra Bianchi, afirma, categoricamente, que a preocupação com o trânsito no Brasil deveria ser o ano todo e de forma institucionalizada. Não apenas durante o Maio Amarelo (movimento criado com a finalidade de chamar a atenção da sociedade para o alto índice de mortos e feridos no trânsito) ou durante uma Semana, em setembro. 

A mulher na imagem sorri, tem cabelo castanho claro com mechas e está usando um suéter verde. Ela está em um fundo colorido que parece um mosaico.
Professora Alessandra Bianchi (Foto/Arquivo Pessoal)

Segundo a professora, o grande problema está no fato das pessoas não compreenderem a real gravidade da situação. “Se as pessoas realmente entendessem que o trânsito é uma coisa perigosa e que o conjunto de leis que existe é para que nós estejamos protegidos, as coisas funcionariam melhor”, acrescenta Alessandra Bianchi.

A psicóloga Letícia Weis, que está finalizando o doutorado em psicologia no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPR, com orientação da professora Alessandra, compartilha da mesma opinião. Ela reforça que, apesar desses movimentos serem importantes para dar visibilidade ao tema, o ideal seria que o assunto fosse trabalhado de maneira contínua. “Não é um problema que acontece só em setembro ou só em maio. É um problema que acontece todos os dias e que nós precisamos dar enfoque para ele de maneira mais ampla”, afirma a doutoranda. 

Não é da boca pra fora que as pesquisadoras dizem que o trânsito não recebe sua devida importância como um problema saúde pública. Por exemplo, todos nós sabemos como o câncer é uma doença perigosa, responsável por milhões de mortes ao redor do mundo. Mas, e se nós te falarmos que, no Brasil, o trânsito mata mais pessoas que o câncer de pulmão, que é o tipo de tumor que mais mata no país…Pois é. Essa informação é verdadeira e, mesmo assim, o trânsito continua não causando tanto alerta nas pessoas. 

A imagem compara a quantidade de mortes por câncer de pulmão e por acidentes de trânsito no ano de 2022. Há duas barras verticais: a barra à esquerda, em amarelo, representa 29.576 óbitos por câncer de pulmão (fonte: O Globo). A barra à direita, em azul, representa 33.894 óbitos no trânsito (fonte: ONSV). No topo, lê-se o título: "Quantidade de mortes por câncer de pulmão vs acidentes de trânsito, em 2022". Na parte inferior, há os créditos: Conexão Ciência | Arte: Hellen Vieira.

Além disso, você sabia que os sinistros de trânsito também impactam a economia do país? Segundo o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), essas ocorrências geram custos anuais que ultrapassam R$ 50 bilhões aos cofres públicos. Os gastos são, majoritariamente, com a Previdência, por conta da redução de renda das famílias atingidas, além de despesas com atendimentos hospitalares e danos patrimoniais. 

De acordo com a OMS, no Brasil, mais de 70% dos leitos das UTIs estão ocupados por pessoas que sofreram acidentes no trânsito. Indo mais além, a pesquisa também aponta que as perdas por conta desses acidentes impactam diretamente o Produto Interno Bruto (PIB) do país, podendo consumir até 1,2% do total.

No mesmo estudo, dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF) indicam que a principal causa dos sinistros nas rodovias federais é a falta de atenção ou reação dos motoristas, motociclistas e pedestres. As pesquisas também mostram que as questões comportamentais estão associadas aos acidentes. Entre elas estão infrações das regras de trânsito, excesso de velocidade e motoristas dirigindo sob efeito de álcool. 

Mesmo diante desse cenário, é comum escutarmos frases do tipo: “eu só bebi um pouco, estou bem para dirigir” ou “vou furar esse final só porque não está vindo ninguém”. Esses comportamentos acabam sendo normalizados por parecem inofensivos, já que muitos não enxergam o risco dessas atitudes. “As pessoas precisam tomar consciência de que os seus atos são responsáveis por esses mais de 30 mil mortos no trânsito”, enfatiza a professora Alessandra.

Eu posso nunca ter matado alguém no trânsito e não ter contribuído diretamente para essa estatística estar aumentando. Mas, a forma como esses comportamentos inadequados são aceitos pelas pessoas favorece para que essas situações continuem acontecendo. “Isso vai validando esse tipo de comportamento, vai se tornando natural dentro da sociedade. Achando esse tipo de atitude certa, você está incentivando que os outros continuem fazendo, o que é um problema”, acrescenta Letícia Weis.

  • O cartaz destaca que "Na América Latina, sinistros de trânsito são a maior causa de mortes de jovens".
  • O cartaz destaca que “Aproximadamente 1,35 milhão de pessoas morrem no trânsito anualmente no mundo”.
  • O cartaz destaca que “O Brasil é o 3º país no mundo com maior número de mortes no trânsito: mais de 30 mil por ano”.

O trânsito nas instituições de ensino

Por isso, Alessandra Bianchi destaca a importância de falar de trânsito e pensar nele com a sua devida importância. Não comentar apenas em uma semana específica do ano. Para a professora, o tema devia estar nas escolas, dentro do currículo, permeado todas as disciplinas. “Que seja tão importante falar que as pessoas podem morrer no trânsito como é importante falar que elas precisam saber somar 2 mais 2. O trânsito precisa ser um tema que nos preocupa tanto, porque ele está lá na base”, conta ela. 

Seria de extrema relevância ensinar, logo na educação básica, a importância das leis e regras de trânsito. Afinal, elas não estão lá só por estar, possuem fundamento. Não é do nada que existe na frente de uma escola uma placa indicando que a velocidade máxima da via é de 30 km por hora. Essas regras existem para proteger os participantes do trânsito. 

Outro ponto, estudado pela psicologia do trânsito, é a percepção das situações de risco, algo que também precisa ser ensinado para as pessoas. “Porque, às vezes, por exemplo, eu sei que a lei me permite andar a 40 km por hora em uma via, só que, se essa via estiver cheia de crianças saindo do colégio, eu preciso conseguir avaliar que o risco é muito alto de andar nessa velocidade. A lei me permitiria, mas eu, sabendo do risco, teria consciência de andar mais devagar”, exemplifica a professora.  

Porém, o problema é que, normalmente, o raciocínio que as pessoas fazem é: “se não tem polícia e não tem blitz, então, não tem risco.” Para muitos, a questão está em receber uma multa ou perder a carteira, o que não é a realidade. Por exemplo, o risco de consumir álcool e dirigir tem a ver com perder o controle do carro, não conseguir tomar decisões ou não conseguir reagir a tempo, o que pode resultar em algum sinistro.

Como a discussão sobre o trânsito ainda não é uma realidade nas escolas, a professora tem tentado levar a abordagem do tema nesses ambientes com a ajuda de projetos estaduais. Ela é coordenadora do Eixo III, do Programa Interinstitucional de Ciência Cidadã na Escola (PICCE), que tem como objetivo transformar o ensino de Ciências nas escolas paranaenses, juntando a prática ao conhecimento científico, por meio de protocolos. 

O PICCE-TRAN foi estabelecido com a intenção de mapear o entorno das escolas quanto à segurança no trânsito, auxiliando crianças e adolescentes a compreenderem os riscos que o trânsito pode oferecer ao redor do seu ambiente escolar. Também indica como e onde é preciso realizar mudanças para tornar o espaço mais seguro. Além disso, o segundo tema dentro do protocolo aborda a importância do uso do cinto de segurança, principalmente, no banco de trás, já que as pesquisas nacionais indicam que muitas pessoas não usam. 

  • A foto mostra duas pessoas de costas, paradas ao lado de um carro vermelho estacionado na rua. Elas estão olhando para uma placa de trânsito amarela, que indica "travessia de pedestres", mostrando a silhueta de um adulto segurando a mão de uma criança.
  • PICCE-TRAN: A foto mostra um grupo de crianças e uma adulta que estão ao redor de uma placa de trânsito que indica "Proibido Estacionar" (um círculo vermelho com a letra "E" cortada por uma barra diagonal). Algumas crianças seguram pranchetas e cadernos.
  •  PICCE-TRAN: A foto mostra uma placa de trânsito amarela com o símbolo de um quebra-molas, indicando a presença de um redutor de velocidade à frente. A placa está em uma rua arborizada, e há um carro estacionado mais à frente no lado esquerdo da imagem.

 Atividades do PICCE-TRAN (Foto/Arquivos do PICCE)

“A ideia do PICCE-TRAN é, justamente, começar a instrumentalizar as crianças e adolescentes para que eles tenham condições de olhar para o ambiente e não só reconhecer os riscos, mas reconhecer se é um ambiente protetor ou o que precisaria ter para que fosse protetor”, explica Alessandra Bianchi.

O  “Ciranda do Trânsito” é outro projeto comandado pela professora. Com mais de 15 anos de atuação nas escolas de educação infantil e Ensino Fundamental de nível 1, a iniciativa aborda educação para o trânsito, trabalhando com crianças de até 10 anos. A equipe usa linguagem adaptada para elas, pensando nas questões de desenvolvimento infantil e as particularidades que envolvem a educação dos pequenos. 

Foi com esse projeto que Letícia Weis conheceu a psicologia do trânsito e, depois da graduação, manteve o interesse pela área. “Eu senti que poderia aplicar as questões da psicologia para dar um retorno real para a sociedade, pensando em uma melhoria social, aquele [a escola] era um local onde eu poderia contribuir socialmente com a psicologia”, acrescenta a doutoranda.

A foto mostra uma mulher sorrindo, ela tem cabelo castanho e está usando uma blusa verde e brincos dourados.
Letícia Weis (Foto/Arquivo Pessoal)

Esse interesse direcionou o tema do mestrado da discente: “Desenvolvimento e comportamento de crianças pedestres”. Ela procurou entender como o desenvolvimento das crianças permitia com que elas tivessem ou não competências para estarem no trânsito enquanto pedestres. Para isso, realizou entrevistas com as crianças. Na dinâmica, tinha uma maquete em que os pequenos escolhiam um percurso colocando as sinalizações do trânsito. Além disso, tinham que justificar porque escolheram aquele trajeto e cada um dos elementos de sinalização. 

A doutoranda verificou que as crianças não conseguem compreender os riscos do espaço que elas estão. Isso significa que não possuem competências cognitivas necessárias para estarem em um ambiente arriscado como trânsito.

A pesquisa mostrou que, além das crianças não fazerem escolhas boas no trânsito, a situação do entorno escolar estava em péssimas condições, com falta de sinalização apropriada e calçadas cheias de obstáculos, o que leva os pedestres a desviarem, caminhando na rua. “Juntou o ruim com o horroroso. Elas não sabem compreender o sistema de trânsito de maneira adequada e estão em um ambiente que, ao invés de protegê-las, acrescenta mais risco. E, apesar da minha pesquisa ter sido feita em Curitiba, posso afirmar que isso é uma realidade do Brasil de maneira estendida”, detalha Letícia Weis. 

O espanto com as condições encontradas no estudo do espaço acabou desencadeando a pesquisa de doutorado da Letícia. Ela está desenvolvendo um protocolo de avaliação de ambientes de caminhada, para que os cidadãos possam avaliar seus trajetos. “O estudo analisa o que nós chamamos de caminhabilidade, que são os aspectos de segurança, pertencimento ao lugar, sensação de conforto, agradabilidade, e tudo aquilo que favorece com que a pessoa escolha caminhar, ao invés de escolher um meio de transporte. Tudo passa por essa questão de como o ambiente está preparado para receber os pedestres”, explica a doutoranda. 

A psicologia do trânsito e órgãos de trânsito

O trânsito é mais uma das muitas áreas que podem ser beneficiadas com a pesquisa realizada dentro das universidades. Para isso acontecer, é preciso de mais diálogo. No Brasil, ainda não observamos os órgãos de trânsito caminhando junto com a psicologia. Porém,  segundo a professora, dados indicam que os países que possuem índices muito baixos de mortalidade no trânsito são justamente aqueles em que as organizações de trânsito e a pesquisa andam lado a lado. 

Para Alessandra Bianchi, o problema no país é político. “No Brasil, nós temos uma coisa meio histórica de que órgãos de gestão, os governos, não conversam com as universidades. É muito difícil isso acontecer, porque não existe uma posição política de acreditar no conhecimento que é desenvolvido dentro da universidade. Prender as pessoas e caçar as carteiras não dá voto. O nosso problema é que a gente precisa da vontade política de mudar isso. Dizer: nós vamos ser um país que não tolera mais perder 30 mil brasileiros por ano”, conclui a professora. 

Ficou interessado em saber mais sobre a psicologia do trânsito? Acesse o nosso podcast “Conexão Trânsito” e conheça mais sobre o assunto!

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Joana Giacomassa e Milena Massako Ito
Supervisão de Texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Camila Lozeckyi e Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

Glossário

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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