Tudo é uma questão de gene

A genética está na essência da nossa identidade, define o que somos e pode ser o caminho para mudar os rumos da nossa existência

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Foram duas semanas de muito sofrimento. Mesmo. Com quase 60 anos de vida nunca me senti tão abatida depois de contrair uma doença provocada por um vírus. Olha que já tive H1N1, Covid-19… Mas, a dengue me derrubou, literalmente. Minha morada por quase 15 dias foi minha cama. Passado o susto, uma notícia que me alegrou muito… uma vacina está sendo disponibilizada. Saí correndo para ver quando poderia tomar, porque não quero mais passar por essa experiência dengosa… nunca mais na vida! 

Nesta pesquisa, me deparei com várias informações. Descobri, aliás, que são duas vacinas. “Qdenga” é a primeira aprovada no Brasil para um público mais amplo, de 4 a 60 anos de idade. Há outra, aprovada anteriormente, a “Dengvaxia”, que só pode ser utilizada por quem já teve dengue. Sensacional, de olho na chegada de qualquer uma delas ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Ainda deitada em casa, na recuperação, fiquei pensando em quanto tempo torcemos para que surgisse uma vacina contra a Covid-19, lembra? Demorou, mas chegou. E, agora, é a vez de nos “defendermos” da dengue. Não poderíamos esperar mais, porque, segundo o telejornal Bom Dia Brasil, os casos da doença aumentaram 46% entre janeiro e fevereiro de 2023. Reportagem publicada no dia 10 de março aponta que quase 160 mil casos de dengue estavam sendo investigados no país nos primeiros três meses do ano e que os médicos vêm alertando para a disparada da doença.

Me perguntei… veio rápido? Não sei, mas foi desenvolvida pelos mesmos processos que nos salvaram do coronavírus: as vacinas da dengue são produzidas por meio de engenharia genética. Os imunizantes são fruto de uma técnica do DNA (ácido desoxirribonucleico) recombinante, de vírus da dengue atenuado, que fazem nosso organismo produzir resposta imunológica, isto é, anticorpos contra os invasores, porém não há o desenvolvimento da doença, porque o vírus está enfraquecido, com a sua atividade diminuída. 

Daí me lembrei de um trabalho bem legal que foi feito por um grupo que atua em divulgação científica, vinculado ao Departamento de Biotecnologia, Genética e Biologia Celular (DBC) e ao Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia Ambiental (PBA), da Universidade Estadual de Maringá (UEM). O nome é Dr. Genética. Por meio de diferentes produtos midiáticos desta equipe, pude compreender um monte de coisas sobre o desenvolvimento de vacinas e até de como funcionavam os testes de detecção do Sars Cov-2, o vírus que, ao infectar humanos, causa a Covid-19. Podemos resumir essa informação como conhecimento genético da Humanidade.

O grupo produziu, inclusive, um artigo científico sobre a impressão da população em relação às vacinas e outros detalhes que fazem parte do universo da Covid-19. “A gente consultou vários dos nossos leitores e a população em geral, por meio de um formulário on-line. Queríamos saber o que a população entendia sobre as vacinas, quais tipos de preconceitos estavam ligados a elas, se as pessoas tinham se vacinado, se conheciam quem não tinha se vacinado. E a partir daí relacionar os dados. Neste processo descobrimos várias dificuldades das pessoas em relação a temas ligados à genética”, explicou a graduanda em biotecnologia Luana Aragão dos Santos, colaboradora do projeto. 

Prato cheio para o grupo que tem como objetivo tirar dúvidas sobre o mundo do conhecimento genético. Os mal entendidos e tabus levantados pelos formulários aplicados on-line viraram temas de postagens nos canais de comunicação do Dr. Genética. “Por exemplo, mostramos que o PCR [Reação em Cadeia da Polimerase], na verdade, já existia para muitos outros testes. É um exame no qual você amplifica, faz visível, torna detectável uma parte de um gene. Ele passou a ser conhecido por conta da Covid-19, mas conseguimos ampliar o conhecimento sobre esses testes, falando como eles detectam os vírus; lembrando que já era usado para a H1N1 e para a determinar o sexo dos fetos. Passamos, depois, a discutir porque foi tão importante o sequenciamento do genoma do coronavírus, realizado por uma cientista brasileira. Enfim, fizemos uma edição do Dr. Genética só sobre o PCR”, explicou a professora Eliane Ambrósio Papa, coordenadora do projeto.

🎧A professora Eliane Albuquerque explica o que é o exame PCR, e como funciona todo o processo de identificação do vírus

Genética, o que é isso?

Foi no período da pandemia que a equipe do Dr. Genética viu que tem muita gente interessada no que eles estudam, mas nem sabe disso. Aliás, poucos sabem definir o que é genética. Mesmo a equipe da professora Eliane parou para pensar alguns instantes antes de falar comigo e com a Maysa Ribeiro, minha companheira de reportagem. Afinal, como divulgadores científicos, precisavam dar uma explicação que pudesse ser compreendida facilmente por nós e por você, que está lendo este texto.

O graduando de biologia Gregório Nogueira de Sá disse que entende a genética como o estudo do código da vida. Segundo ele, os computadores têm seus códigos para fazer uma programação funcionar. “E a vida também tem outros, os seus códigos próprios para fazer a sua programação funcionar. Aprendemos tudo sobre esse código da vida para responder o que forma uma vida e do que pode ser formada uma vida também”, destacou.

A professora dos cursos de Biologia, Farmácia e Odontologia, da UEM, Fernanda Freitas de Oliveira, reconheceu que essa é uma pergunta difícil de responder assim, de forma direta. Ela lembrou que costuma falar na primeira aula de “Introdução à genética” que a gente se torna geneticista muito antes de saber o que é essa ciência. “Muitos anos atrás, a gente entendia que se cruzasse uma planta muito fértil ou que tivesse grãos maiores com outra planta que tivesse grãos grandes, a chance, a probabilidade era alta de ela ser boa. De alguma forma, a gente conseguia ver também, por exemplo, que os filhos se pareciam com os pais e, então, percebíamos que tinha alguma coisa ali. Por isso, quando me arrisco a definir genética em uma palavra, opto pelo termo hereditariedade. Todo mundo sabe, entende que tal coisa é genética, que tal coisa foi herdada, parece com a mãe, parece com o pai. Então, se fosse definir genética seria pelo termo hereditariedade”. 

Professora Fernanda de Oliveira localizada no lado esquerdo da imagem com outras duas professoras, expondo o Dr. Genética no Parque de Exposições (Foto/Arquivo Pessoal)

Para a professora Eliane, a união das declarações do Gregório e da Fernanda compõem a visão dela para definir genética. Ela lembra que essa ciência nos propõe pensar que somos compostos pelas mesmas moléculas que uma planta, que um peixe, que qualquer outro ser vivo. “O que faz a gente ser pessoa, ser peixe ou a planta é a informação genética. Então, a genética ajuda a entender quem somos, o que transmitimos aos nossos descendentes e como isso se dá”, resumiu Ambrósio. 

Mas o grupo coordenado pela professora sabe que essas informações não são fáceis de serem assimiladas pelo cidadão comum, apesar de serem importantes para o dia a dia das pessoas. E daí, como é ser um geneticista e ser responsável por levar essas informações para as pessoas?

Divulgação científica

A professora Eliane sabe que não é simples o público em geral entender certos conceitos. Ela lembra que os próprios alunos e cientistas têm que estudar muito para se formar e se manterem atualizados. Mas é um desafio enorme e prazeroso levar conhecimentos úteis às pessoas por meio de ações de divulgação científica como o Dr. Genética. Ela diz que mede a eficiência do trabalho assim… Se você está falando uma coisa e a pessoa está achando fácil compreender, é porque está fazendo o seu trabalho direito, está conseguindo explicar uma coisa difícil. Se você está explicando de forma acessível ao mundo de quem está te escutando, você vai ser ouvida (o). A pessoa entendeu? Então, está indo bem. 

“No Dr. Genética, a gente não aprofunda as técnicas, definições, ao nível acadêmico, levamos informações que ajudam as pessoas a entenderem, por exemplo, a diferença entre determinadas doenças. Há aqueles que nascem com um problema e outros que a gente adquire durante a vida, porque tem uma predisposição genética. Você não nasce com pressão alta, por exemplo. Sabe que se fizer exercício físico, controlar o consumo de sal a vida inteira, você evita que isso apareça. Agora, quando você nasce com um dedo a menos é uma malformação congênita, você não pode fazer nada, vem da sua informação genética”, detalha a professora.

Luana acrescenta que o objetivo do Dr. Genética é tornar acessível esse tipo de conhecimento para ultrapassar a barreira dos muros acadêmicos, porque, às vezes, a linguagem acadêmica não chega a todos. Divulgar a genética, não é só apresentar teorias, é explicar coisas com as quais as pessoas convivem. “Todo mundo tem algum parente ou algum conhecido que tem alguma doença que pode ser genética. Às vezes, a falta de conhecimento sobre elas provoca preconceitos. O conhecimento que a gente compartilha pode ajudar até nisso, criar mais igualdade, além de acrescentar informações na vida das pessoas”. Importante dizer que Luana é de Salvador, na Bahia. Conheceu o Dr. Genética pelo Instagram, se interessou em participar e colabora com o projeto de forma on-line.

História

O Dr. Genética é fruto de um outro grande projeto de extensão da UEM, como conta a professora Eliane. Segundo ela, até 2015, a universidade tinha um serviço de Aconselhamento Genético presencial, coordenado por dois professores: o biomédico Valter Della Rosa e a médica geneticista Ana Maria Silveira Machado de Moraes. Por mais de 25 anos, a dupla deu suporte à comunidade. Em princípio, pelo SUS. Depois cobraram só os custos de laboratório. 

“Eu trabalhei com eles quando era aluna. A gente discutia muitas coisas, via a necessidade da população, que vinha presencialmente até a UEM. Com a aposentadoria deles, o serviço fechou. Quando entrei para os quadros da Universidade, pensei que a gente poderia abrir um canal para esclarecer dúvidas na área de genética. No início, não tinha redes sociais, usávamos um e-mail e um site para esclarecer dúvidas das pessoas que ficaram órfãs dos serviços de aconselhamento. Mas a gente não poderia fazer exames, porque não tinha o local físico nem os médicos. Então, passamos a oferecer esclarecimentos. Isso foi em 2016, um ano depois do serviço fechar. Eu comecei com alunos de biomedicina bem interessados, a gente fez até um workshop de genética e acabamos montando o site do Dr. Genética. Foi, inclusive, o TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] de uma aluna, a Natália Mestre Braz, de biomedicina”, lembrou a professora Eliane. 

Atualmente, além do site e do e-mail, o Dr. Genética está nas redes sociais (@drgenetica) e também tem o Dr. genética news. O grupo pensa um perfil no Tik Tok em um futuro breve. Um produto que chama bastante atenção é o Sexta Básica, que é informação sobre curiosidades toda sexta-feira, no Instragram. São vídeos curtos e postagens acerca de conscientização sobre doenças. Em março, por exemplo, foi o mês da Síndrome de Down.

Segundo a professora Fernanda, o grupo tem observado, principalmente em resposta à Sexta Básica, que as pessoas se interessam muito por curiosidades relacionadas à genética. “Todo mundo tem alguma coisa que gostaria de saber e a gente percebe e repercute essas curiosidades. Por meio da explicação, conseguimos também chamar atenção para algum conceito mais difícil para as pessoas entenderem um pouco melhor sobre o tema. A gente fez, por exemplo, uma série de curiosidades natalinas sobre genética. A gente falou do sexo das renas, a gente falou do sequenciamento da árvore-de-natal, quantos nucleotídeos, quantas letrinhas tinha no genoma, eram cinco curiosidades. São dois minutinhos cada post, muito interessantes”, lembra a geneticista.

Mas a preocupação do grupo vai além das curiosidades, com certeza. “A ideia é que com essa divulgação científica as pessoas tomem consciência de como ocorrem os processos e busquem se cuidar, por exemplo, se vacinar, fazer exames, a gente estimula isso”, alerta a baiana Luana, que hoje atua no projeto ao lado das professoras Eliane, Fernanda e mais 11 estudantes voluntários. Eles se reúnem no final de cada mês para definirem as ações e avisam que o processo seletivo para se unir à equipe acontece todo início de ano.

O Dr. Genética também participa de amostras externa como no Parque de Exposições, durante a Expoingá

Quem quiser entrar em contato com o grupo pode fazer por e-mail. O pessoal pode tirar dúvidas sobre doenças e exames genéticos, por exemplo. Mas o futuro biólogo Gregório lembra que a abrangência da genética vai muito além destes temas ligados ao corpo e à saúde. Está na nossa alimentação, na composição das raças dos animais que temos, os nossos pets, por exemplo. “Muitos dos nossos cachorros são fruto de seleções artificiais. E isso tudo é abordado na genética. Ela está bem arraigada na história se mencionarmos a questão de como o nazismo usou a genética para defender a eliminação de certos tipos de raças e grupos étnicos. Então, a genética está em tudo. Toda a nossa interação com a vida e o próprio conhecimento para transformar a vida tem haver com genética. Mostrar isso para as pessoas é o nosso compromisso”, concluiu o geneticista.

Glossário

DNA (ácido desoxirribonucleico) – é um composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos e alguns vírus, e que transmitem as características hereditárias de cada ser vivo.

Gene – um segmento de uma molécula de DNA responsável pelas características herdadas geneticamente.

H1N1 – é um tipo de vírus que também pode ser chamado de influenza H1N1. Essa é a variação responsável por causar a gripe suína.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Maysa Ribeiro
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS:

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