Hoje vamos falar de um assunto pouco discutido, mas que é crucial para as nossas vidas. Para isso, vamos fazer uma dinâmica um pouco diferente para que você possa entender, de forma prática, cada detalhe. Abaixo, segue um vídeo. Analise-o e enumere os primeiros elementos visuais que vierem à sua mente.
É bem provável que você tenha listado, em primeiro lugar, qualquer coisa, menos as plantas. Mas isso tem um porquê, e é sobre isso que vamos tratar, nesta importante Semana do Meio Ambiente, aqui no Conexão Ciência. Vamos falar sobre Cegueira Botânica, um conceito proposto ainda no século passado pelos pesquisadores James H. Wandersee e Elisabeth E. Schussler.
O termo foi cunhado pelos cientistas em 1998, mas foi somente em 1999 que os estudiosos trouxeram o assunto no artigo “Preventing Plant Blindness”, publicado no periódico norte-americano The American Biology Teacher, para designar a nossa incapacidade de perceber as plantas ao nosso redor.
Foi pensando nisso que a nossa equipe em Londrina, a fim de discutir o assunto, entrou em contato com o professor doutor em botânica Weliton José da Silva, coordenador do curso de Ciências Biológicas, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), para falar sobre esse tema tão problemático que, embora não seja discutido de forma efetiva, se faz necessário.
O doutor em botânica explica que a Cegueira Botânica não é uma doença, mas sim um fenômeno que é resultado tanto de fatores biológicos quanto sociais. Ele ainda destacou que este é um problema que nos acompanha há muito tempo e que, devido aos nossos comportamentos sociais, foi potencializado no decorrer dos séculos.
Instinto traiçoeiro
O professor conta que, por uma questão instintiva, fator esse decisivo para a nossa sobrevivência, nós e outros animais estamos a todo momento analisando o ambiente à nossa volta. E que, movimentos e cores chamativas, por exemplo, são alguns dos aspectos que nos ajudam a concluir se estamos ou não numa circunstância de perigo. Logo, esse estado nos condiciona a naturalmente enxergar e a considerar algo como “mais importante” em relação a outras coisas, como é o caso dos animais em relação às plantas.
As plantas, algas e algumas bactérias que possuem clorofila, por serem seres vivos que, em sua maioria, possuem uma mesma coloração (verde) e que, a olho nu, não apresentam – ao menos não na maior parte dos casos – nenhum tipo de movimento, acabam, por exemplo, quando compartilhando um mesmo espaço com os animais, sendo compreendidas erroneamente por nosso cérebro como indignas de atenção, e, portanto, inferiores aos ‘bichos’. Isso pelo motivo de que os animais, por apresentarem uma variedade e intensidade de cores, por se movimentarem e terem tamanhos e formas diversas, acabam se sobrepondo na nossa visão como merecedores de atenção, enquanto, por exemplo, as plantas e algas, acabam ocupando num segundo ou terceiro plano apenas o papel de paisagem e sendo consideradas “tudo uma mesma coisa”.
No entanto, existe um grande problema nisso tudo. Quando reduzimos esses organismos a uma única ‘coisa’, acabamos não nos preocupando, por exemplo, em evitar a destruição de determinada vegetação ou bioma, justamente porque acreditamos, falsamente, que “existe mais daquilo por aí”, e, portanto, desprezamos a biodiversidade. Um reflexo claro deste problema é o atual estado da Mata Atlântica brasileira, que hoje conta com apenas 12,4% da sua vegetação nativa.
O especialista em botânica ainda ressaltou que “inicialmente, os estudos atribuíam o fenômeno da cegueira botânica somente à uma mudança comportamental do ser humano. Ou seja, em algum momento da história nós havíamos deixado de perceber e de reconhecer a importância desses seres vivos”.
As plantas e outros organismos fotossintetizantes, como as algas, por exemplo, são fundamentais para a perpetuação da vida em nosso planeta. Além de constituírem a base da cadeia alimentar, eles, em conjunto, são responsáveis quase que pela totalidade da produção do oxigênio que respiramos. Só para se ter uma ideia, de acordo com o Instituto Brasileiro de Florestas (IBF), somente as algas marinhas são responsáveis por 54% da produção de oxigênio do mundo. Esses organismos, também, regulam a temperatura do globo terrestre a um nível tão cirúrgico que nós – e outras formas de vida – “simplesmente” podemos viver. Enfim, poderíamos ficar horas e horas aqui elencando o quão importante essas criaturas são para as nossas vidas e o quão dependente somos delas, mas uma coisa é clara: sem elas não estaríamos perambulando por aí.
Negligência
De acordo com o professor Weliton, no século XVIII, as pessoas tinham um maior interesse pelos organismos vegetais devido a dois motivos: o primeiro, em virtude das suas propriedades medicinais – visto que não havia à época remédios como existem hoje. Isso fez com que, até meados do século XX, a botânica fosse chamada de Scientia amabilis, ou seja, de ciência amada. O segundo, que estudá-la era considerado um ato de nobreza, isso porque nobres e grandes estudiosos da ciência dedicavam parte do seu tempo a esse tipo de estudo com o propósito de melhorarem a sua qualidade de vida e obter status.
No entanto, no início do século XX, a botânica começou a ser negligenciada, o que fez com que os cientistas da época analisassem o fenômeno levando em consideração o contexto da Revolução Industrial. Eles teriam observado que, com a chegada e o desenrolar desse evento histórico, no século XVIII e nos séculos seguintes – mas, principalmente, no século XX –, as plantas teriam deixado de ser o foco dos cientistas, que cobiçavam não mais em aprender sobre elas em sua essência, isto é, de entender de fato qual seria sua importância como um todo, mas sim em compreender quais seriam os seus usos do ponto de vista tecnológico, fazendo com que a botânica perdesse, aos poucos, o seu reconhecimento pelas pessoas.
Teria sido esse o momento, conta o professor da UEL, que as pessoas teriam deixado ou diminuído drasticamente o contato com as plantas, isso porque, com a produção em massa das fábricas, não eram mais necessários o manuseio e a manipulação direta desses seres, visto que já existiam produtos processados e prontos para o uso.
Educação defasada
Por se tratar de um fenômeno e não propriamente de uma doença, não existe uma “cura” para a cegueira botânica, mas sim formas de combatê-la. No entanto, mesmo ciente disso, ainda temos muita dificuldade em lidar com essa situação tendo em vista que o problema é muito mais ‘embaixo’ do que parece.
Um dos motivos é a baixa repercussão do assunto. Determinados temas só são discutidos quando algo está em alta, fazendo com que ganhe uma maior notoriedade e apelo social em detrimento de outros e se torne um assunto de “maior relevância”, como é o caso da mudança climática e da conservação de algumas espécies de animais. Consequentemente, políticas públicas voltadas à conservação e à reposição de determinadas espécies de plantas acabam sendo pouco discutidas – isso quando são pautadas – tanto no âmbito político quanto no da opinião pública, carecendo, portanto, de medidas efetivas no enfrentamento a esse fenômeno.
Outra questão é que, entre 2020 e 2021, Weliton orientava Isadora Cernach Carneiro da Fontoura, no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), voltado à educação ambiental. À época, ela era aluna do curso de Ensino de Ciências, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas, da UEL. O trabalho tinha o objetivo de avaliar o ensino da Ficologia (estudo das algas) na Educação Básica do Paraná. O professor conta que, durante a pesquisa, Cernach havia observado que os livros do ensino fundamental apresentavam uma defasagem nos conteúdos de botânica, sobretudo os de algas. Uma das evidências encontradas era de que, por exemplo, eles abordavam pouco ou de forma superficial os conteúdos de ficologia.
Questionado sobre como poderíamos lidar com essa problemática, Weliton disse que a solução mais viável para tratarmos desse fenômeno se iniciaria na reformulação dos conteúdos de livros assim como nos métodos de ensino da biologia no que diz respeito à educação em botânica. Isso porque apenas intensificar a educação ambiental nas instituições de ensino, levando em consideração essa estrutura educacional ainda defasada, não seria eficiente. “É necessário que haja uma revisão das formas e materiais de ensino da botânica e uma formação eficiente de professores para que eles possam ministrar essas aulas, senão de nada adianta. Precisa ser dinâmico e estimulante, do aluno ao professor”, alerta Silva.
No entanto, toda essa defasagem educacional nos leva a um verdadeiro efeito dominó. Isso porque o único conhecimento que a maioria das pessoas têm sobre biologia se limita ao Ensino Fundamental e Médio. Logo, aqueles que optarem por chegar ao Ensino Técnico ou Superior se depararão com conteúdos cada vez mais específicos, resultando que outros, considerados não essenciais para a sua grade curricular, caiam no esquecimento dessas pessoas, incluindo o conhecimento sobre botânica.
O problema é que, consequentemente, atividades e cargos de extrema importância serão ocupados por essas mesmas pessoas com pouco ou nenhum conhecimento sobre botânica, isto é, advogados, políticos, arquitetos, engenheiros, empresários, dentre vários outros, que levarão em consideração, isso caso ainda se lembrem, de um conhecimento totalmente deficitário sobre botânica na hora de exercerem suas funções. Logo, temos um resultado catastrófico: construção de edifícios e casas em locais que deveriam ser reservados à natureza, que mais tarde se transformarão em problemas urbanos, provocando enchentes e a contaminação de lagos, rios e mares; a constituição de leis ineficientes voltadas ao meio ambiente; a destruição exacerbada de habitats e biomas em virtude da produção agropecuária e a expansão das cidades; dentre incontáveis outros problemas.
Experiência na Feira das Profissões da UEL
Em 2019, durante a Feira das Profissões da UEL, Weliton promoveu um trabalho experimental que abordava o fenômeno da cegueira botânica. Para a realização dessa dinâmica, ele contou com ajuda do projeto Sala Verde Sibipiruna, da professora doutora em Ensino de Ciências e Educação Matemática, Patricia de Oliveira Rosa da Silva, e dos dois alunos extensionistas do programa, Leonardo Terziotti e Ana Paula Lucas Ribeiro.
A Sala Verde Sibipiruna é um projeto integrado entre pesquisa, ensino e extensão, que nasceu em 2017, após ser aprovado na chamada do edital Nº 1/2017, das Salas Verdes, proposta pelo Ministério do Meio Ambiente. De acordo com o órgão, esses espaços servem como um “incentivo à implantação de espaços socioambientais para atuarem como potenciais Centros de informação e Formação ambiental.”
A coordenadora do programa na instituição explica que “cada professor integrante do projeto trabalha com sua temática e afinidade na sala verde”, e que, portanto, naquele momento Weliton, especialista em criptógamas (plantas que não produzem flores nem sementes, como algas, musgos e samambaias) havia optado por trabalhar o fenômeno da cegueira botânica com os visitantes da feira a partir do uso das samambaias.
Todo esse experimento ganhou corpo e mais tarde deu vida ao artigo “O desvendar da cegueira botânica na VIII Feira de Profissões da UEL: relato de uma experiência“. Nele, foi concluído, por meio da coleta de relatos e experiência dos visitantes, “a dificuldade das pessoas em reconhecerem quais seriam aquelas plantas que estavam nos espaços e a dificuldade em perceberem a sua importância, o que poderia estar sendo mediado pelo fenômeno da cegueira botânica”.
Esse trabalho, entretanto, não só serviu para expor o problema da cegueira botânica aos alunos do ensino médio – que eram naquele momento o público-alvo do evento –, mas também de tentar contorná-la conscientizando os professores desses estudantes para que eles possam aperfeiçoar seus métodos de ensino e trabalhar de forma mais atrativa os conteúdos de botânica em sala de aula.
À época, toda a dinâmica do projeto aconteceu em dois espaços, na sala de Instrumentação em Ensino de Ciências e Biologia e no Jardim de Samambaias, ambos localizados no Centro de Ciências Biológicas da UEL (CCB), e dividiu espaço com outro trabalho sobre resíduos.
Para refletir
É notório que o fenômeno da Cegueira Botânica tem nos causado uma série de problemas que estão nos levando, dia após dia, rumo a um estado cataclísmico. Por isso, precisamos, mais do que depressa, repensar nossa relação com as plantas, adotar práticas mais conscientes e promover, por meio de uma reorganização nos conteúdos e formas de ensino, uma educação ambiental efetiva para que tenhamos uma compreensão mais ampla e profunda desse tema tão importante. O processo é longo e árduo, mas ainda é passível de mudança.
Que as plantas estão no nosso cotidiano mais simples e são agentes vitais para a nossa existência isso já está claro. Mas será que, ainda assim, devemos continuar negligenciando e tratando elas com tanto desdém assim? Bem, a equação é muito simples: se esses organismos deixarem de existir, nós também deixaremos.
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Texto: Leonardo de Jesus Dias e Rodolfo Rorato Londero
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Leonardo de Jesus Dias
Arte: Leonardo Rasmussen
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: