Uma pedagogia para chamar de nossa!

Indígenas realizam sonho de estudar, tornarem-se professores e ensinar as tradições e cultura ancestral na escola da sua aldeia

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Você já se imaginou vivendo num país estrangeiro, estudando com pessoas que possuem uma cultura diferente da sua e falando uma língua que você não entende?  Complicado. Já imaginou os perrengues que você teria que administrar? 

Vamos além: e se o país fosse o seu e você não conhecesse a língua e cultura da maioria da população? Mais complicado ainda, né?

Então, senta que lá vem história!

Em uma movimentada tarde de sexta-feira na universidade, o jovem João Victor Retahn Jeca, da etnia kayngang, encontra num corredor a professora Maranúbia Pereira Barbosa Doiron aguardando seus alunos para mais um dia de aula de Francês. 

João Victor Retahn Jeca é acadêmico do curso de Pedagogia Indígena da Unicentro (Arquivo/Unicentro)

Curioso, ele se aproximou e abordou a professora perguntando que disciplina ela lecionava. Então, ela perguntou “como vai?” na língua nativa de João Victor, que no reflexo corrigiu sua fonética de forma muito didática, explicando como era e confirmando depois que estava correto. 

A conversa continuou e na sequência Maranúbia perguntou sobre a palavra ‘nér krókré’ (gambá) e, novamente, João Victor disse que a pronúncia não era aquela e, mais uma vez, explicou como deveria ser. 

Mas o que mais chamou a atenção de João Victor foi a entonação da professora ao chamar pelo seu nome: “você não me chama como os outros”, ele disse. Isso porque Maranúbia é docente de Francês e, às sextas-feiras, leciona na Universidade Estadual do Centro-Oeste, a UNICENTRO no campus de Guarapuava, para senhoras atendidas pela Universidade Aberta à Terceira Idade, Unati, por meio do Programa Multicultural de Línguas e, ao chamar João Victor, fez sua entonação como fariam os francófonos – ‘Joau Victór’. 

E essa é a história de um jovem acadêmico indígena com uma generosa professora de Francês, que, ao final da convers,a presenteou o jovem com uma cópia da unidade do livro de Francês utilizado em suas aulas, para instigá-lo em sua curiosidade. Depois de muito hesitar, João pegou sua cópia e a levou consigo. Antes de se despedir, o acadêmico contou para a professora que segue um canal que dá dicas de Francês e que se espanta porque eles não falam como se fala o português. 

Pedagogia indígena

Aqui mesmo em nossa terra brasilis há mais de um milhão e 600 mil brasileiros que se declararam pertencentes a povos indígenas ou originários, segundo o Censo 2022, que conservam língua e cultura ancestral próprias em seus territórios.

Muitos estão saindo de suas aldeias para estudarem nas cidades, conquistar um diploma de nível superior para retornarem aos territórios e colocarem em prática seus conhecimentos. E isso tem sido frequente com várias profissões.

Mas esse caminho para a formação profissional da comunidade indígena é feito de obstáculos que vão desde a língua com fonemas e estruturas completamente diversas, como dos costumes nas cidades dos não indígenas.

Maranúbia Pereira Barbosa Doiron é docente no Programa Multicultural de Línguas, PROMUL, na UNICENTRO (Acervo pessoal/Maranúbia P.B. Doiron)
🎧 Maranúbia nos conta alguns detalhes da conversa com João Victor e da troca de impressões sobre a linguagem de cada um

Naquele encontro improvável narrado acima, João Victor aproveitou a oportunidade para tirar uma dúvida, quase angústia: “Professora, será que eu poderia ensinar a língua Kaingang para “brancos” (foi o termo que usou)?”. Prontamente, Maranúbia disse que sim. “Ele me ensinou a fonética de algumas expressões e palavras da sua língua nativa. Por que não poderia ensinar a outras pessoas?”, pontuou a professora. 

João Victor, assim como outros 18 acadêmicos, está cursando o terceiro ano de Pedagogia para Povos Indígenas da UNICENTRO, o primeiro curso voltado para indígenas do estado do Paraná. Vindos de várias localidades do Estado, atualmente a turma agrega indígenas das etnias Kaigang, Guarani e Xetá.

E nesta semana em que se comemora o Dia dos Povos Indígenas, nada mais pertinente do que falarmos sobre os desafios que esses povos enfrentam no Brasil, que vão desde as garantias mais simples de seus direitos, preservação de sua cultura, proteção de seus territórios, até a educação, que é (ou deveria ser) um direito de todos. 

Proposta inédita

Desde 2019, a Universidade Estadual do Centro-Oeste tem uma unidade avançada dentro das terras indígenas do Rio das Cobras, no município de Nova Laranjeiras, porém o seu surgimento não partiu da universidade, mas das próprias lideranças indígenas. 

Os integrantes da comunidade demonstraram o desejo de se capacitar ao cacique Ângelo Kavigtanh Rufin, sua principal liderança, e a partir daí foi criada uma comissão composta por moradores da terra indígena e por representantes do Departamento de Pedagogia da UNICENTRO, que juntos entraram em contato com o reitor Fábio Hernandes. 

Um dos principais desafios para os povos indígenas é que, muitas vezes, as escolas não estão localizadas em seus territórios ou, quando estão, não levam em conta a cultura e língua dos povos indígenas, tornando a educação difícil de ser acessada. Quando o assunto é a educação superior esses desafios se tornam ainda maiores, pois esse acesso é bastante limitado e, em geral, faltam políticas públicas adequadas para esse público que oportunizem o acesso e a permanência desses povos na Universidade. 

Apesar dessas dificuldades, existem iniciativas que visam melhorar o acesso e a permanência dos estudantes indígenas na educação superior no Brasil, como é o caso da Comissão Universidade para os Índios (Cuia), que é constituída por representantes das sete universidades estaduais paranaenses UEL, UEM, UEPG, UNICENTRO, UNIOESTE, UENP E UNESPAR e da UFPR. 

No curso, a oferta se dá em regime de alternância, em que os alunos possuem atividades concentradas no tempo universidade, que se localiza na escola Rio das Cobras, ficando alojados nas suas dependências. e no tempo comunidade, quando vão para as suas comunidades relacionando conhecimento teórico e prático.

Recomendamos o mini documentário “Estudantes Indígenas” produzido pela Universidade Estadual de Maringá, a UEM, onde você vai conhecer o papel da CUIA – Comissão Universidade para os índios, que organiza o vestibular indígena e é responsável por acompanhar a permanência desses estudantes na universidade (Ver documentário📺)

O formato do curso auxilia na queda de muitas das barreiras que povos indígenas enfrentam quando buscam uma formação superior. Vale lembrar que no vestibular, o conteúdo é formulado especificamente para eles. Quando são aprovados, a dinâmica das aulas em regime de alternância facilita a ambientação no mundo acadêmico, que é bastante diferente de suas comunidades de origem e oportuniza acesso a políticas afirmativas específicas para eles, como é o caso do PIBID, Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, do qual todos os acadêmicos fazem parte.  

Para a coordenadora do curso de Pedagogia Indígena, professora Mariulce Leineker, é uma oportunidade de, ainda na graduação, inseri-los nas rotinas da escola e, ao mesmo tempo, fazer com que o ambiente escolar quebre a barreira da língua, por exemplo. 

“Quando estão na aldeia ficam três dias nas escolas trabalhando no PIBID junto aos professores. Isto porque havia essa necessidade de professores indígenas por conta das crianças não entenderem o português”, explica Mariulce.

A partir da constatação de que a comunicação não estava favorecendo o aprendizado, uma nova estratégia foi viabilizada. Como os universitários têm essa capacidade por saberem o português e a língua materna da etnia, a presença deles é muito importante para o professor não indígena que não conhece a língua originária daquela aldeia. “Sem essa pedagogia, fica mais difícil para os alunos quando não há essa interlocução dos acadêmicos”, enfatiza.

Em 2022, o curso passou pelo processo de reconhecimento do Governo do Estado, com nota 4.7, sendo a máxima 5, levando em conta os seguintes critérios: metodologia pedagógica, corpo docente e estrutura. Além disso, vale ressaltar uma importante parceria realizada juntamente com a Universidade Aberta do Brasil (UAB), a construção de um Laboratório de Informática criado com o intuito de atender as necessidades dos formandos que precisam dos equipamentos e do acesso à internet para o desenvolvimento dos seus Trabalhos de Conclusão de Curso (TCCs).

Motivos para lembrar 

O Dia dos Povos Indígenas, sempre no dia 19 de abril, é uma data importante para reforçar a relevância dos povos originários na história e cultura do nosso país. A celebração tem como objetivo não só colocar os indígenas em evidência, mas reconhecer a história de luta desses povos pela preservação de suas culturas, tradições e direitos territoriais, além da importância de suas contribuições para a diversidade cultural do país.

Além disso, a data também serve como um lembrete para a necessidade de se respeitar e proteger os direitos dos povos indígenas, incluindo o direito à terra, à autodeterminação, à preservação de suas línguas e culturas e à participação plena na vida política e social do país.

O acadêmico Zair Fakrig Bandeira comenta que na semana de comemorações os professores da aldeia têm que organizar um festival que seja dos indígenas, como jogos, comidas típicas e principalmente jogos antigos, da tradição indígena que estão sendo esquecidos: arco e flecha, corrida da tora, caça, cabo de guerra, entre outras atividades. Danças e pinturas corporais também fazem parte da festa. 

E é justamente nesse tipo de movimento que deve acontecer dentro do ambiente escolar que Zair vê uma oportunidade para acrescentar suas vivências culturais enquanto indígena atrelado ao conhecimento que adquire em sua trajetória acadêmica.

“Em 2024, quando me vejo como pedagogo formado, quero que a escola tenha a cultura indígena mais forte, preservada. Quero ensinar as crianças como eram feitas as comidas antigamente, levar esse tipo de vivência para dentro das salas de aula. Quero que dentro da escola a cultura mais forte seja a cultura Kaigang. Esse é meu sonho”, ressalta.

Para o futuro pedagogo, “hoje, como os professores não indígenas não conhecem essa nossa realidade, principalmente a de antigamente, não conseguem trabalhar isso em sala e acaba que a cultura que mais se trabalha é a de fora, e não a Kaigang”.

Já para o acadêmico do curso de Pedagogia Indígena, Dorival Gremag ernardo, a experiência tem sido fantástica. “Pudemos observar que a universidade é para todos. É para qualquer um, a universidade está livre para nós indígenas, negros. A diversidade tem que estar presente em todas as Universidades do Brasil. Todos somos seres humanos e todos devem ser respeitados”, pontuou. 

Zair sonha em atuar em sala de aula para assegurar a preservação cultural indígena no ambiente escolar
Turma do terceiro ano de Pedagogia Indígena conhecendo a estrutura da Universidade. Na foto, em visita ao laboratório de telejornalismo, em pé (da esquerda para a direita): Professora Vanessa Domingos Toledo, vice-coordenadora do curso de Pedagogia Indígena, Ariane Carla Pereira, professora do curso de Jornalismo da Unicentro, Adriana Rugte da Luz de Freitas, Daniel Fakrig Correia, Josicleia Samsanhkag Pereira, Dorival Gremag Bernardo, Clarice Nekaj Lourenço, Joanice Note Pires de Lima, professora Layse Nascimento, chefe do Departamento de Comunicação Social, professora Mariulce Leineker, coordenadora do curso de Pedagogia Indígena. Abaixados (da esquerda para a direita): Zair Fagfy Bandeira, Guilherme Norigso Tavares, Silvana Venra Fernandes, Mauro Gasag Luiz, Marisandra Vanka Bernardo, Jocélia Jerá Pires de Lima, Sandra Yva Faustino, João Victor Retanh Jeca (Acervo pessoal/Mariulce Leineker)
🎧  Assim como seus companheiros de curso, Dorival explica o desejo de permanecer na aldeia para aplicar seus conhecimentos como professor

A vice-coordenadora, Vanessa Domingos Toledo, também reforçou o quão desafiador é para os indígenas esse deslocamento de sua realidade para um mundo completamente novo e diferente para eles. Vanessa conta que, pela experiência do curso já na oferta anterior, “essa vinda para Guarapuava é muito difícil para eles, sentem falta da família, estão acostumados a estarem com as famílias todos os dias. E para eles, família é a configuração toda da família, para além de casal e filhos, inclui avós, irmãos, pais, mães, filhos”. 

Outro fator de bastante impacto é a comida. Os hábitos alimentares são muito diferentes e como nesse período no campus em Guarapuava eles almoçam no RU, muitos sentem como se a comida pesasse porque têm outros hábitos gastronômicos. Há ainda a questão do ambiente em si, segundo a professora Vanessa: “a organização da estadia deles aqui também é uma dificuldade grande de adaptação. Lá eles são livres, vão para onde quiserem, não têm medo de sair de casa. Então, são todas questões que pesam porque é uma realidade na cidade completamente diferente para eles”. 

Muitos deles, ao serem indagados sobre como se veem depois de formados e quanto à importância do curso que estão fazendo, indicam a necessidade de preservação de suas culturas, tradições e, sobretudo, da língua. Em parceria com a prefeitura municipal de Novas Laranjeiras, a aldeia em Rio das Cobras tem nove escolas e os professores, em sua maioria, são não indígenas. 

Antigo mundo novo

Para o acadêmico Guilherme Norigso Tavares, o objetivo é formar cada vez mais indígenas para serem professores nestas escolas. “Para não esquecermos a nossa cultura e a nossa língua materna, é preciso formar mais indígenas para nossas escolas. Não queremos que nossos filhos esqueçam a nossa cultura, nossa língua”, destaca.

Outra aluna, Clarice, também vê na filha Camile de nove anos sua motivação para concluir o curso. “Pra mim vai ser um sonho me formar em Pedagogia. Me interessei nesse curso por causa da Camile, para poder ser professora da minha filha e também ensinar as crianças”. 

Nessa experiência de vinda até o ambiente universitário, Josicleia Samsanhkag Pereira era acometida de insegurança e medo. Ela diz que tinha muito receio com relação aos não indígenas, porque ela e os seus sofrem muito preconceito. “Sofremos muito preconceito por sermos indígenas em muitos lugares e esse medo veio muito forte em mim, porque foi a primeira vez que eu vim para a universidade”. Hoje, Jô, como gosta de ser chamada, sente um ambiente mais acolhedor e amistoso, bem ao contrário do que tinha imaginado. 

‘Jô’, como gosta de ser chamada, está realizando o sonho de se tornar professora (Arquivo/UNICENTRO)
🎧 Apesar das dificuldades iniciais de adaptação no ambiente universitário, hoje Jô já está sonhando com a formatura

E para ela, estar cursando uma graduação mudou toda sua perspectiva, até mesmo quanto as suas habilidades. “Eu não acreditava na minha capacidade de passar no vestibular. Eu nunca tinha tentado e não confiava muito em mim. Quando soube que tinha passado não acreditei”, relembra. 

Confiante, Jô já faz planos para a formatura. “Ahh, eu me imagino linda, com um vestidão e vou querer a beca, porque a gente imagina muita coisa e conversamos entre nós e ficamos combinando sobre como será a formatura. Espero que todos cheguem lá juntos! Todos”, espera nossa promissora pedagoga.

Nós também estamos na torcida, JÔ!

Enfim, depois de ler e ouvir várias histórias e vivências, temos que ter em mente que o verdadeiro desejo é que esse curso venha a continuar se perpetuando. 

E que cada vez mais contribua para o desenvolvimento do conhecimento, com a perspectiva de ofertar novas oportunidades para a população indígena e, principalmente, que esse seja o exemplo para que outras universidades estejam cada vez mais atentas na busca de uma educação mais participativa e inclusiva.

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Andressa Rickli e Wilma Vieira
Edição: Silvia Calciolari
Edição de áudio: Gabrielli Ferreira
Arte: Leonardo Rasmussen
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS:

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