Vamos falar sobre a saúde sexual de lésbicas?

Inferiorização do corpo das mulheres e o preconceito impedem que esse grupo receba o tratamento adequado em termos de saúde

Vermelho, laranja, amarelo, verde, azul e roxo. Nesse mês de junho, aposto que você já viu muitas embalagens, propagandas e publicações nas redes sociais, que utilizaram essas cores juntas. Sabe por quê? Essas são as cores da bandeira do orgulho LGBTQIAPN+ e junho é voltado, justamente, para a celebração desse movimento. 

Além das comemorações, com passeatas e campanhas, durante o mês de junho, muitas instituições e o próprio governo, também focam em conscientizar a população sobre a importância do combate à crimes contra a comunidade LGBTQIAPN+, a garantia de seus direitos e a promoção de uma sociedade sem preconceitos.

Bandeira do orgulho LGBTQIAPN+ (Foto/Pexels)
Bandeira do orgulho LGBTQIAPN+ (Foto/Pexels)

No vídeo abaixo, você vai conhecer o episódio que fez junho ser considerado como o mês do orgulho LGBTQIAPN+.

Na sigla LGBTQIAPN+, a letra L, de lésbicas, ou seja, mulheres que sentem atração, seja ela sexual ou romântica, por outras mulheres, é a que vem primeiro. Porém, em muitas situações, parece que esse grupo está invisibilizado.

Quando o tema é a saúde sexual desse público, o tabu, a falta de informação e a ausência de preparo no atendimento médico, são alguns dos fatores que impedem as mulheres lésbicas de receberem orientações adequadas para se prevenirem de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).

Falta de informação

Você sabia que existe um mito que o sexo lésbico, entre mulheres e demais pessoas com vulva não transmite doenças? Pois é. Isso é só a ponta do icebergue para termos uma ideia do perigo da desinformação nesse meio. Essa noção está muito longe da verdade, mas o que fez isso ser espalhado e tantas pessoas acreditarem? 

A professora do Departamento de Teoria e Prática de Ensino e do Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Dayana Brunetto, é a atual coordenadora-geral de Promoção dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Ela conta que a saúde sexual de lésbicas e demais pessoas com vulva não ser um assunto tão discutido se deve a vários fatores. “Nossa sociedade foi produzida a partir de sistemas de opressão. A desqualificação e subalternização1 dos corpos com vulva e vagina é histórica e está relacionada ao patriarcado2, ao machismo, ao sexismo e à misoginia.”

Professora Dayana Brunetto (Foto/Arquivo Pessoal)
Professora Dayana Brunetto (Foto/Arquivo Pessoal)

No que se refere às lésbicas, além dessas questões, o sistema de opressão da heterossexualidade compulsória3 também é um fator que pesa. “São corpos que lutam pelo acesso digno à saúde desde a década de 1970 no Brasil, por meio dos movimentos sociais, principalmente de lésbicas feministas. No entanto, o mecanismo que opera para conferir sustentação a esse padrão excludente é o de anulação, uma vez que há décadas as lésbicas bradam por acesso digno à saúde. A estratégia de anulação é não ouvir”, explica a professora. 

Falando sobre a existencia da falsa noção de que o sexo entre lésbicas e pessoas com vulva não transmite ISTs, Dayana Brunetto reforça a questão da inferiorização desses corpos e a difusão da concepção da superioridade masculina, branca e cisgênera, em que, apenas o sexo que envolve, obrigatoriamente, um pênis e escroto e uma vulva e vagina em corpos cis heterossexuais é legítimo.  

“É como se a sexualidade se resumisse à prática sexual e, com isso, somente a relação heterossexual definida como ideal regulatório, com pênis e penetração na vulva, fosse legítima e considerada como passível de uma preocupação em relação a saúde”, acrescenta.

Apagamento

A falta de dados sobre a população lésbica no Brasil também é uma questão preocupante. No censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por exemplo, não há nenhuma questão sobre a orientação sexual. Na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) realizada em 2019, foi inserida essa questão. 

“Entretanto, os dados coletados são subnotificados, ou podem inclusive ser questionáveis, uma vez que é a pessoa responsável pelo domicílio que responde e, se for um pai, uma mãe ou responsável lesbofóbico, não irá relatar a lesbianidade da filha, por exemplo. Sem esse levantamento, fica difícil saber quais as dificuldades enfrentadas por esse grupo nos diferentes territórios, suas prioridades e ainda criar políticas públicas assertivas para suprir essas demandas”, explica a professora. 

A partir desta realidade e considerando um primeiro exercício de mapeamento local das experiências lésbicas, realizado pela Associação Lésbica Feminista Coturno de Vênus de Brasília – DF, em 2019, foi criado o I LesboCenso Nacional. Uma iniciativa do movimento lésbico feminista brasileiro, Liga Brasileira de Lésbicas e Mulheres Bissexuais (LBL) em parceria com a Coturno de Vênus, na primeira etapa. Nas etapas seguintes, a LBL chamou outras redes nacionais de lésbicas feministas e redes com representatividade de mulheres trans e travestis. 

A pesquisa possui o intuito de fazer o mapeamento sobre lésbicas e sapatão do Brasil, de diferentes gerações, raça/cor, etnias, corporalidades e classes sociais. A primeira etapa aconteceu entre 29 de agosto de 2021 e 30 de maio de 2022. Foram levantados os dados de mais de 21 mil lésbicas e sapatão que responderam o questionário e se identificavam como lésbicas ou outros termos referentes a mulheres que se relacionam afetivamente e/ou sexualmente com outras mulheres. 

No eixo Saúde, os dados do I LesboCenso Nacional (2022) demonstram o fato de muitas lésbicas e sapatão realmente ainda acreditarem que o sexo entre mulheres não transmite doenças. Em meio as informações levantadas, em relação às ISTs, Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), 14.86% afirmaram que já tiveram alguma IST, enquanto, 37.26% nunca realizou o teste para HIV. Dentre essas que nunca fizeram o teste, 39.79% não sabiam onde fazer e 34.65% acreditavam que, por serem lésbicas/sapatão, seria pouco provável terem sido expostas ao vírus. Assim, esse grupo acaba negligenciando a própria saúde. 

  • Dados do I LesboCenso Nacional (2022) no eixo saúde (Reprodução)

A professora Dayana Brunetto também é uma das autoras do I LesboCenso Nacional. Ela conta que outro ponto levantado é sobre a falta de preparo das/os profissionais de saúde. “De maneira geral, as equipes não oferecem um atendimento ético e de qualidade para as lésbicas e sapatão. Isso se deve ao acionamento das crenças pessoais, em geral religiosas, ligadas a uma moral judaico-cristã, de que lésbicas e sapatão são pecadoras, sujas, aberrações, dentre outras adjetivações pejorativas”, afirma.

Desse modo, muitas lésbicas e sapatão possuem receio de falar sobre sua sexualidade, na hora do atendimento de saúde. “É muito difícil que em uma primeira consulta a/o médica/o ginecologista se atente de que não necessariamente a paciente se reconhece como heterossexual. E aí, todo o atendimento é orientado por essa percepção heteronormativa4 de que, com certeza, a pessoa é heterossexual. Isto prejudica muito o acesso digno, qualificado, humanizado e ético dessas pessoas à saúde”, acrescenta a professora.

Destruindo mitos

A verdade é que muitas doenças podem ser transmitidas pelo sexo entre lésbicas e pessoas com vulva. As mais comuns são: a gonorreia, a clamídia, o papilomavírus humano (HPV), sífilis, herpes, HIV, tricomoníase, hepatite, entre outras. Para se proteger, as opções oferecidas são limitadas, pois, de acordo com Dayana Brunetto, “o mercado se baseia nas concepções sociais para investir no que mais vai render lucro, ou seja, camisinhas masculinas e outros meios de prevenção para relações sexuais com pênis/escroto e vulva/vagina, dentro da cisheteronormatividade”.

Dentre os métodos mais comuns para a segurança no sexo entre mulheres e pessoas com vulva, estão o uso de camisinha masculina e feminina, que podem ser cortadas, luvas, dedeiras, dental dam, um material odontológico que pode ser usado como barreira para evitar contato direto entre as mucosas, que serve tanto para o sexo oral-vaginal e vaginal-vaginal, e calcinha de látex. 

A falta de diálogo sobre sexo seguro para mulheres lésbicas e bissexuais é algo que incomoda a recém formada em Comunicação e Multimeios, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Emilly Saragioto. Como parte da comunidade LGBTQIAPN+, ela acredita que seja importante que essa população “lute pelos seus direitos e pela sua saúde, se apoiando e criando movimentos que fortaleçam sua existência e qualidade de vida”.

Por isso, no último ano de sua graduação, quando teve oportunidade de realizar o projeto final na disciplina de Planejamento e Produção em Multimeios, Emilly produziu a Campanha Tesourada Segura, que resultou em no “Manual de Prevenção Sexual para Mulheres Lésbicas e Bissexuais”.

Capa do Manual de Prevenção Sexual para Mulheres Lésbicas e Bissexuais (Reprodução)
Capa do Manual de Prevenção Sexual para Mulheres Lésbicas e Bissexuais (Reprodução)

Nele é possível encontrar as formas de transmissão de ISTs pelo sexo entre pessoas com vulva, principais sintomas das infecções, entre outras informações valiosas. O objetivo da comunicóloga é “trazer informações sobre prevenção a fim de minimizar, ao menos um pouquinho, a problemática da lacuna informacional presente em nossa comunidade LGBTQIAPN+ a respeito do sexo seguro entre vulvas”, conclui. 

Esse tipo de iniciativa é essencial, segundo Dayana Brunetto. Para ela, é fundamental debater sobre as questões que envolvem a saúde sexual de lésbicas e pessoas com vulva. “Precisamos produzir pesquisas e dialogar com os movimentos sociais para que se possa produzir políticas públicas assertivas que garantam um atendimento público ético e de qualidade para todas as pessoas”, afirma a professora.

Como plataforma de divulgação científica, o C² se une à luta de trazer mais informações sobre esse tema e de outros assuntos tão importantes para a população, mas que não recebem a devida atenção. Nesta edição, além dessa matéria, nós preparamos o podcast “Conexão LGBTQIAPN+”, explicando o que significa cada letra na sigla LGBTQIAPN+. Ouça e se informe!

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto:
Milena Massako Ito
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de vídeo: Yumi Santos Aoki
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

Glossário

  1. Subalternização – Sujeito tido como inferior. ↩︎
  2. Patriarcado – Sistema social em que os homens estão no centro e as mulheres são subordinadas a eles. ↩︎
  3. Heterossexualidade compulsória – Pressão social e cultural para que homens e mulheres mantenham apenas relações heterossexuais. ↩︎
  4. Heteronormativa – Ideia de que apenas relacionamentos heterossexuais/corpos cisgêneros são considerados corretos ou legítimos. ↩︎

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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