Com o canto de calopsitas ao fundo, Viviani Guilherme Dourado atende à chamada de vídeo, em casa, no meio dos seus preciosos dias de férias, e se emociona logo nas primeiras palavras. “Eu estou muito emotiva essa semana. Eu marquei de conversarmos hoje, porque cheguei de viagem ontem, mas vamos lá”, explica. Porém, o ponto de interrogação continua na cabeça da pessoa do outro lado, eu… E ela, então, começa: “Eu nasci em Maringá e vivi toda minha vida aqui. Sou a mais velha de três irmãs”.
Viviani morou em uma casa na Zona 5, desde os primeiros dias de vida, na década de 1970, quando ainda não havia asfalto na região, até o dia em que se casou. Quando menina, as brincadeiras com as irmãs e os amigos se concentravam no amplo quintal, apesar do pequeno tamanho da casa. Isso porque, quase não haviam crianças na vizinhança. Ela descreve a infância como “muito boa e familiar”, apesar do pai estar, muitas vezes, ausente, por causa do trabalho: caminhoneiro. “Mas nos momentos em que ele estava com a gente, era muito bom, era gostoso”, lembra ela.
Com uma diferença de idade de quatro anos em relação à irmã do meio, Viviani estudou até o terceiro ano do ensino fundamental em escola particular. Assim que as outras duas atingiram a idade escolar, as três foram para uma escola pública, próxima de onde moravam, por questões financeiras e pela facilidade de transporte. Para elas, a mudança para a Escola Estadual Odete Ribaroli Gomes de Castro não poderia ter sido melhor. “Quando chegamos, tivemos uma surpresa enorme, positivamente. A escola tinha melhor qualidade, professores muito mais capacitados e atividades muito mais diversas que a anterior”, conta a primogênita.
Lá, Viviani terminou o ensino fundamental e foi para o Colégio Estadual Alberto J. Byington Jr., onde fez o primeiro ano do ensino médio. Durante o segundo ano, em 1990, os servidores entraram em greve e ela e as irmãs ficaram três meses sem aula, em casa. Os pais, então, se reuniram, ajustaram algumas despesas, fizeram ainda mais esforços e levaram as três para o ensino particular, no Colégio Santa Cruz.
“Foi uma realidade bem diferente. A gente era julgada, porque realmente a gente era simples, não tinha tênis e roupa de marca. Eu cheguei a ver colegas cochichando e apontando para o meu tênis. Mas não foi nada que a gente não tenha superado. A gente chegava em casa e tinha apoio”, descreve Viviani.
As calopsitas continuam tagarelando ao fundo, incansáveis, enquanto ela conta como conheceu Edilson, o namorado que, futuramente, seria seu marido e pai de suas duas filhas: Isadora e Heloisa. O cupido foi a irmã dele, amiga de Viviani, sim, xará dela. “Nos conhecemos e começamos a namorar em 1990, mas, a partir de 199,1 a gente teve uma lacuna, amadurecemos um pouco, nos afastamos e depois, em 1994, voltamos e estamos juntos até hoje”, conta.
No meio da história de amor, ela precisou escolher o curso que faria na graduação. Muito influenciada pela família do pai, com tios e primos médicos, dentistas e farmacêuticos, Viviani mirou a área da saúde. O pai dela queria muito que ela fizesse Farmácia. Inclusive, chegou a prestar e a passar no vestibular, mas, ainda indecisa, pediu um pouco de compreensão e tempo para fazer seis meses de cursinho e decidir a carreira com mais calma. Depois de algumas pesquisas, ela viu realmente que se encaixava mais na Enfermagem, curso que já “namorava” desde pequena. Aos 8 anos, fazia curativos e dava milhares de injeções em sua boneca.
A família ficou contrariada, mas ela sempre teve a liberdade de escolher. As únicas exigências eram: tinha que ser em Maringá e em instituição pública. Ou seja, na Universidade Estadual de Maringá (UEM). A vestibulanda tentou, então, mais uma vez. Passou em primeiro lugar e, em 1993, começou o curso de Enfermagem, na UEM. Ela aproveitou o máximo que pôde e tirou todo o conhecimento que foi possível nos quatro anos de faculdade. Fez parte de projetos de extensão, em que realizava plantões extracurriculares em hospitais, foi bolsista, participou de congressos e tantas outras coisas.
Ao se formar, Viviani não fechou as portas para nenhuma possibilidade de trabalho, mas tinha preferência por duas áreas específicas dentro da enfermagem: saúde pública e obstetrícia. Saiu da faculdade contratada em dois empregos, mas logo prestou concurso para o Hospital Universitário Regional de Maringá (HUM). Ficou em terceiro lugar geral e foi chamada em julho de 1997, junto às outras duas pessoas melhores colocadas, com quem ainda trabalha.
Ela começou no período noturno, mas logo foi transferida para o diurno, atendendo no pronto atendimento e no ambulatório. No ano seguinte, fez uma especialização na Universidade de Ribeirão Preto, em Administração dos Serviços de Saúde, em que analisou a caracterização das pessoas atendidas no Serviço de Planejamento Familiar do Hospital Universitário de Maringá.
Como servidora do HUM, começou a se encontrar na obstetrícia, principalmente, durante a participação voluntária em um projeto do próprio hospital, em que fazia o atendimento pré-natal de gestantes de baixo e alto risco. Várias portas foram abertas a partir desse momento, o que a levou à especialização em Enfermagem Obstétrica, no próprio Departamento de Enfermagem da UEM, ligada ao Ministério da Saúde, que foi realizada em 2002 e 2003. Apesar de já ser mãe de Isadora, Viviani contou com o apoio do marido durante os atendimentos que realizava fora da cidade durante a pós.
Logo em seguida, já no próximo ano, Viviani entrou para a primeira turma do mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, e defendeu a dissertação em 2005. “A gente tinha poucos profissionais com mestrado naquela época, então tinha muita oportunidade de trabalho e eu acabei voltando a ter dois empregos e a trabalhar muito. Eu tive a oportunidade de dar aula e fui. Mas, meses depois, acabei engravidando da minha segunda filha e eu digo que ela é meu doutorado, que está completando 15 anos em abril”, relata Viviani, bem humorada.
Apesar de levar o assunto de forma “leve”, ela reconhece as dificuldades que as mulheres enfrentam por serem mais responsáveis que os homens pelas obrigações da família. “Os compromissos das mães com as crianças e com a casa sempre é, de modo geral, maior que dos homens. Lá atrás, no século passado, quando nós [mulheres] começamos a exigir direitos iguais, o movimento foi apenas nosso e fizemos muito bem, mas o contrário não aconteceu, os homens não participaram. Então, está cada dia melhor, mas as mudanças acontecem MUITO gradativamente”, diz a mãe de Isadora e Heloisa.
Reconhecendo seus privilégios, ela lembra: “A gente está falando de uma casa como a minha, com pai, mãe e filhos. Mas sabemos que, na grande maioria, dependendo da realidade, as casas são compostas pela mãe e pelos filhos. A mãe tem assumido todas as obrigações”.
Viviani gestora
No hospital desde 1997 e com experiência e qualificações necessárias, Viviani tornou-se, em 2012, presidente do Comitê Hospitalar de Prevenção da Mortalidade Materna do HUM e representante do Hospital nas reuniões municipais e regionais. Ela recorda que ninguém queria participar, porque teria que lidar com assuntos delicados, como mortes prematuras de mães e recém-nascidos. Mas ela achou importante fazer parte e se dedicar ao Comitê, porque essas organizações são responsáveis por ajudar a entender o cenário e os fatores que levam a esses problemas, apontando caminhos possíveis para a prevenção. Dessa forma, explica a presidente, é possível que a equipe do Hospital Universitário evite que outras mulheres e outros bebês morram pelos mesmos motivos.
Viviani acredita que esse envolvimento deu maior visibilidade a ela dentro do hospital, no município de Maringá e, também, na 15ª Regional de Saúde. Diante disso, na gestão do Dr. Mauricio Chaves Junior, na Superintendência do Hospital Universitário Regional de Maringá, de 2014 a 2018, Viviani foi convidada a assumir um cargo de chefia. Na gestão atual, da doutora Elisabete Mitiko Kobayashi, de 2019 a 2022, Viviani passou a ocupar o cargo de Diretora de Enfermagem.
“Quando a Dra. Bete me fez o convite, eu tinha muito receio e muito medo, porque eu sentia que ia ser um período difícil, mas, eu decidi abraçar a causa e trabalhar com a equipe”, relata a diretora.
Pandemia
Viviani sabia que as propostas da futura superintendente eram boas, com melhorias para o hospital, com uma equipe muito bem preparada, então, era nesse sentido que ela sabia que enfrentaria muitos desafios. E realmente tem enfrentado, mas são desafios muito mais difíceis do que ela ou qualquer outra pessoa no mundo conseguiria imaginar. Em março 2020, no segundo ano de gestão, a pandemia chegou ao Brasil.
“A gente fez e está fazendo o melhor que conseguimos diante das adversidades, que eram completamente desconhecidas. E apesar de tudo isso, conseguimos evoluir e dar alguns passos a diante”, explica, otimista, mas ainda lembrando de algumas marcas que o período deixou em toda a equipe: “Até hoje, eu participei de velório e sepultamento de quatro servidores da Diretoria de Enfermagem, dois deles por Covid-19, e isso é apenas um item, entre tantos outros que a gente viveu”.
Apesar de ocupar um cargo de gestão, Viviani nunca se afastou do atendimento. Por isso, ela também viveu de perto as dificuldades da equipe do HUM e todos os outros profissionais da linha de frente. Pessoas que receberam agradecimentos incontáveis vezes de pessoas do mundo todo, com palmas da população nas janelas durante o lockdown; mensagens, comidas, mantimentos, doações de Equipamentos de Proteção Individual (EPI); cartazes com mensagens de amor e incentivo, parabenizando e agradecendo pessoalmente, quando possível. Essas pessoas trabalharam diariamente nos piores dias da pandemia, muitas vezes, precisando se afastar da família por dias, semanas e meses.
“Essa turma foi muito guerreira e lutou demais. Todos os profissionais se mantiveram firmes. Em quem ficou trabalhando durante a pandemia e enfrentou isso tudo, eu vejo a fortaleza, a resistência, o sentimento de vitória. Esses profissionais estão muito mais fortes, com certeza”, descreve a enfermeira e diretora Viviani. Ela e muitos outros precisaram de apoio emocional, mas também tiveram de ser apoio para funcionários, pacientes e familiares. Somado a tudo isso, temos ainda o simples fato (pelo menos, deveria ser simples) de ser mulher.
Viviani, pessoalmente, não diz sofrer muito com a desigualdade de gênero, por dois motivos principais, entre outros: a sua área profissional é predominantemente feminina e o seu cargo é público. Portanto, ela acredita que a questão de gênero fica à margem, diferentemente do que acontece na área privada. Mas mesmo assim, na gestão, ela sente que existe a necessidade de a mulher sempre mostrar que é capaz e que consegue assumir as responsabilidades do cargo.
“Eu vim de uma família muito feminina e cresci com a minha mãe dizendo que eu tinha que ter minha independência e que tinha que fazer acontecer por mim mesmo, independentemente de qualquer outra pessoa. Eu sinto que os caminhos que eu e minhas irmãs trilhamos foram muito parecidos, na questão da independência”, cita ela.
Viviani diz, também, que não consegue desvincular a mulher da ciência e da Enfermagem. Acredita que a mulher, a enfermeira, a pesquisadora e a profissional dentro dela estão arraigadas e se complementam. E conclui: “Sou forte porque sou mulher, enfermeira e profissional”. E, além disso, como mãe e esposa, ao chegar em casa, ela consegue repor a energia, porque é recebida com beijos e abraços do marido, das filhas e dos animais de estimação. Rotina que se repetiu, inclusive, nos períodos mais difíceis da pandemia, após todos os cuidados com as roupas e a higienização, obviamente.
Quando perguntada sobre o constante e lindo canto dos pássaros ao fundo durante toda a conversa, Viviani conta que sempre teve animais de estimação: peixes, cachorros, porquinho da Índia e canários. Mas agora, ficaram apenas as duas calopsitas e uma cachorra idosa, que, provavelmente, estava “dormindo em algum lugar da casa”. Novamente ela se emociona e explica que, a partir de agora, dariam um tempo com os pets, porque teriam uma nova rotina, com mais tempo fora de casa, porque Isadora, determinada como a mãe, resolveu cursar Medicina em outra cidade, apesar de todas as outras propostas de Viviani. A viagem dos dias anteriores foi, exatamente, para levar a filha mais velha para iniciar a vida longe de casa. É mesmo de emocionar qualquer mãe, não é?
Confira a quinta temporada do podcast “Donas da ciência”, e ouça a história da Viviane contada por ela mesma
Donas da Ciência – T5 E4 – Viviani Guilherme Dourado – Conexão Ciência C²
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Rafael Donadio
Arte: Murilo Mokwa
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior