Você já enviou uma carta? Ou recebeu uma postagem vinda dos correios? Já sentiu aquela ansiedade pela chegada de algo que pediu, comprou ou ganhou? Ah, não vale a emoção de quando chegam ‘as blusinhas’ ou ‘recebidinhos’.
É outro tipo de sensação. O ato de se fazer uma zine carrega consigo todo esse sentimento: descobrir novos mundos além do que estamos acostumados. Vai desde sentir a textura de um papel com gramatura1 diferente da sulfite comum, até sujar os dedos com a tinta da impressora, porque a tiragem2 da zine foi feita de maneira barata, quase no improviso.
A ilustração que você vê na capa dessa matéria é um exemplo de zine visual, composta pela coletânea da ânsia de criar e colocar no mundo a arte de se fazer uma publicação neste formato. Esses livretos chamados zines carregam a urgência de transmitir uma mensagem, seja ela qual for. As pessoas produzem, recebem ou compram e trocam essa publicação, porque é uma produção humana, que carrega e valoriza o pensamento e o trabalho humano.
O professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR), do campus Londrina, Guilherme Lima Bruno e Silveira, que pesquisa poéticas visuais ligadas à história em quadrinhos (HQs), leva a proposta das zines para as salas de aula do ensino médio, em um movimento para estimular um trabalho único dos jovens.
Em um ambiente de ensino em que se está discutindo a indústria cultural3 e a contracultura, por exemplo, a maneira que o professor encontrou para ensinar de forma didática e, ao mesmo tempo, estimular o pensamento criativo dos alunos, foi a de que eles elaborassem zines sobre as temática. Sempre ao fim de cada atividade, o objetivo é criar um diálogo com movimentos que não estão englobados na indústria cultural. Os livretos são produzidos pelas turmas, com a utilização de diversos materiais e formatos, desde o lápis grafite, até com ilustrações coloridas, ou em formatos diferentes como um zine jogo de tabuleiro, que vem com um saquinho com dados.
Silveira contou ao Conexão Ciência como as zines são uma opção para que o aluno se expresse da forma como preferir, por exemplo, em uma pesquisa antes de escrever realmente o texto acadêmico. “Entendo que isso vai impulsionar essa escrita só que de uma forma mais livre, mais solta, que pode flertar com um diário, ou com diferentes formatos. Bem diferente, às vezes, de um texto acadêmico ou de um relatório, que você tem certas regras para seguir. As zines podem, de início, destravar você do medo daquela seriedade e te impulsionar”, explica.
O empurrão de motivação que o professor citou que acontece com os alunos do ensino médio é o que acontece também com escritores que têm o sonho de publicar uma obra autoral, no campo editorial. As zines em quadrinhos são a porta de entrada para ilustradores; tal como as aquelas que têm contos em seu interior são o meio em que os poetas e escritores encontram para divulgar os seus trabalhos.
O pesquisador Guilherme Silveira define as zines como esse suporte de liberdade de experimentação de absorver e reinterpretar o que você acha que tem que ser, e depois produzir algo. “Às vezes, comento que o zine é meio anti-espetáculo, onde você olha e fala; pô, é uma obra de arte, mas é um papel rasgado na mão. É isso que eu acho bonito no zine, porque ele vem para ser esse espaço de ideias mesmo”, ressalta.
Mais do que buscar entender o que são as zines, o professor produz as suas próprias publicações, carregadas de ilustrações e com o caráter de conectar e entender as relações que há entre quadrinhos e narrativas. É a vontade de compreender o sistema que é a zine e o espaço de experimentação livre que o fascinou.
Antes Silveira era leitor assíduo de zines que falavam sobre músicas como punk, rock e metal, logo que começou a conhecer bandas e resenhas em Barretos, interior de São Paulo. Já na universidade, na primeira graduação em Educação Artística, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), ele se reuniu, em 2007, com um grupo de amigos para produzir zines em quadrinhos. O primeiro exemplar elaborado foi intitulado “Miaral”, que é uma gíria para ‘vacilar’.
O grupo acabou se desfazendo, mas Guilherme continuou e, em 2009, lançou a sua primeira zine de HQs. Você pode conferir alguns exemplos de suas produções na galeria acima.
Novo, mas antigo na essência
Na árvore genealógica das zines, temos na origem o fanzine, abreviação para ‘fanatic magazine’, uma espécie de revista feita por fãs dos mais variados assuntos e temas. Para entender a história, é preciso voltar ao início do século XX, quando surgiu um dos primeiros fanzines sobre ficção científica feito por Jerry Siegel, batizado Cosmic Stories, em 1929.
Somente os iniciados no universo dos fanzines sabem que o personagem Batman fez sua primeira aparição para o mundo terreno na publicação da Editora Nacional Detective Comics, número #27, com apenas duas páginas, publicada em maio de 1939. Sabem também que o Batman foi criado para dar continuidade ao sucesso do Super-Homem, que havia sido lançado alguns meses antes, naquela linha de uma personagem que luta contra as injustiças.

O sucesso foi tanto que, logo depois, Bob Kane, criador e detentor dos direitos autorais por toda a vida, assinou um contrato de dez anos de produção de histórias do Batman, renovado por mais cinco anos. Embora o caso do Batman seja uma exceção neste universo, a ideia dos fanzines como uma publicação original, autoral, independente e urgente, permeada por uma crítica ácida, permanece na essência. O resto é história.
No Brasil, a produção de fanzines ganhou relevância no final dos anos 1980, com auge na próxima década, muito em função do grande poder de disseminação de conhecimento. A ideia era simples: observar o mundo, criar uma história e divulgar.
Totalmente marginal à mídia hegemônica e independente das grandes editoras, os fanzines preenchiam aquele vazio de crítica, contestação e até de poesia que faltava no mundo literário tradicional. E mais: possibilitava o empoderamento de pessoas que encontram neste formato um espaço para mostrar o seu olhar sobre o mundo, sempre com arte, urgência e originalidade.
De certa forma, esta tem sido a essência das zines, que ganham novos suportes e formatos, além do mundo virtual. E tais credenciais chegam e inspiram uma diversidade de pessoas, em todos os lugares.
Objeto de estudo
Natural de Mandaguari, cidade próxima à Maringá, na região Noroeste do Paraná, Rebeca Izabella Plaza Marques Stuani conta que começou a estudar as zines ainda na faculdade, quando cursava Propaganda e Publicidade, na UniCesumar. Em 2017, decidiu fazer o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre essas publicações.
“Minha proposta era resgatar a história dos fanzines em meados da década de 1930, com as histórias em quadrinhos que atraíram a atenção dos fãs.”, relembra. Para situar a análise, Rebeca decide tratar da resiliência4 das zines, por meio de um estudo sobre a cultura zineira5, em Maringá, que traz os mais diversos temas como questões políticas, econômicas e sociais, música, poesias, dentro de um movimento que priorizava a escrita, mais que as imagens.
Pesquisadora e artista Rebeca Stuani (Foto/Arquivo pessoal) Zines feitas pela artista Rebeca Stuani (Foto/Arquivo pessoal) Zines feitas pela artista Rebeca Stuani (Foto/Arquivo pessoal) Biblioteca de Zines chamada Zinei (Foto/Arquivo pessoal) Zines feitas pela artista Rebeca Stuani (Foto/Arquivo pessoal)
“Ao manter a cultura contra-hegemônica, sem a marca do padrão do mercado editorial, as zines trazem aquela camada estética ‘não acabada’, uma herança do movimento hippie e punk que persiste, por meio de xerox ou materiais alternativos e mais baratos”, acrescenta.
Após a apresentação do TCC, Rebeca abraça o universo zineiro e, além de produzir suas obras, cria em 2022 a biblioteca de zines, chamada de Zinei, que é uma zineteca6 online. “Entrei em contato com outros produtores de fanzine e disponibilizei 44 zines que foram digitalizadas, todas produzidas em Maringá de 2015 até 2022”, afirma. O projeto foi viabilizado pela lei de incentivo de Maringá, Aldir Blanc.
Mas o que faz uma zine ser uma zine?
Rebeca dá as dicas: é uma obra autoral, com senso de urgência, de baixo custo e linguagem acessível, e, principalmente, de pequena tiragem. É para consumo imediato, quase instantâneo, gratuitamente em sua maioria. E para isso deve ser feito e distribuído rapidamente, ser efêmero7.
“O verdadeiro fanzineiro entende que o mercado editorial não engole a publicação independente. Então, ele faz as zines de uma página só, de um papel aquele mais lazarento possível, para ele ser efêmero e para se desfazer”, enfatiza.

A sorte é que o conteúdo das zines são tão originais e criativos que outro mercado, o mercado de arte, guarda as obras e começa a leiloar por milhões.
Coletivos e coleções
Mas claro que não é o dinheiro e a fama que movem os apaixonados pelas zines. Nunca foi, aliás. Ana Favorin é uma zineira que há uma década habita este universo, desde os tempos da graduação em Letras, na Universidade Estadual de Maringá (UEM).
“Eu era bolsista de iniciação científica e precisava de uma grana. Eu já era poeta na época e aí conheci o zine nos bares perto da universidade. Pensei que isso me permitiria mostrar meus escritos e daria um dinheiro”, relembra Ana.
Entusiasmada, ela fez algumas pesquisas para entender como eram as dobras, como se fazia uma zine, quais materiais poderia usar, e como distribuir. “Eu tive que buscar até como se chamava a forma da publicação, o fanzine ou o zine. E foi assim que eu comecei, desde então nunca mais parei”.
Na sua concepção, zine é uma forma de publicação independente e democrática para difundir uma ideia, seja sob a visão de artes autorais, fotografia, literatura e ilustração. “São infinitas as formas e conteúdos das zines e tem um monte de artistas de diferentes linguagens para fazer sua arte chegar ao público”.
Após vender em bares seus escritos, Ana foi aumentando o campo de pesquisa e acumulou muitas informações. “No final do curso de Letras, eu comecei a administrar uma oficina de escrita no Calma (Centro Acadêmico Machado de Assis). E aí a gente começou a produzir zines, depois viramos o coletivo Palavrão, depois veio o Slam8, coletivo Pé Vermelho. Enfim, continuo fazendo zine até hoje”, completa.
Como estudiosa e produtora de zines, Ana Favorin mantém a sua própria zineteca com os mais variados temas, formatos, materiais e propostas de conteúdos. Sua última publicação no formato é a ‘Aspereza’, que traz palavras que representam sua obsessão com a textura da cidade e do concreto. “A capa é uma lixa d’água, aquela usada nas paredes, super barata e que traz a textura que eu observo no espaço social”, explica.
Zines colaborativas
Além das zines tradicionais que abordam o universo particular de quem as produz, há ainda uma variante que rompe com o formato que as consagrou. São as colaborativas, nas quais o processo criativo de cada, sobre um tema comum faz surgir uma nova publicação, mas que guarda os sentimentos originais de urgência, resistência e independência.
“Quando a gente faz zine colaborativa, a gente senta cinco poetas e faz o conteúdo. Todo mundo se editou, todo mundo se revisou. Porém, o mais importante é que ninguém pagou pelas impressões para nós”, reforça Ana. É esse caráter experimental que reforça a essência das publicações. Isto porque, no final das contas, é a circulação de ideias que importa para os produtores de conteúdo das zines, assim como no princípio.

Para potencializar ainda mais o trabalho e divulgação da comunidade, Ana e o grupo organizaram em maringá, em junho de 2024, a Zine Inga, uma espécie de Feira de zines com debates sobre a editoração destas criações e suas poéticas, bem como a exposição de zines confeccionados por artistas locais e nacionais.
Além do destaque à literatura maringaense, a Feira promoveu o diálogo com zineiros de renome nacional, por meio de oficinas e roda de conversa. A próxima edição em 2025 já está sendo pensada.
Mas cuidado, nem tudo que parece zine, zine é!
Uma verdadeira especialista das zines, Ana alerta que nos últimos anos, houve um novo boom de publicações do formato, quando alguns materiais publicitários começaram a se apropriar dos formatos.
“Nos últimos anos, quando a gente tira o ‘fã’ do ‘fanzine’ e toma o zine pra falar de autoria, fica muito ligado com esse caráter autoral mesmo do artista. Então, se eu uso esse formato pra fazer publicidade, naturalmente eu perco o caráter marginal da fanzine”, enfatiza.
As editoras têm se apropriado do nome zine para vender livros mais finos com autores iniciantes, feitos de papéis muito caros e impressos como revistas. “Isto faz com que a gente perca o caráter e a cultura fanzineira, transformando num negócio o que para nós é imprescindível”, lamenta.
No final, o que é preciso ter em mente é que mesmo tendo se ressignificado ao longo das décadas, fanzines ou fines continuam sendo um espaço de resistência, contestação e liberdade. Não importa o material, o tamanho, se vai ficar na estante ou no bolso, as zines vieram para revolucionar o pensamento e mostrar que, mesmo em tempos de inteligência artificial, o humano ainda é relevante e vital.
Mesmo que o mercado as carregue e comercialize obras literárias e visuais com bordas de ouro e lombadas texturizadas, as zines de agora mostram que o seu conteúdo apresentado em detalhes feitos manualmente também são preciosos e um verdadeiro anti-espetáculo.
Agora que você sabe tudo para fazer uma zine, não perca tempo! Corra!
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Texto: Maysa Ribeiro Macedo e Silvia Calciolari
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de vídeo: Sabrina Mendes Heck
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
Glossário
- Gramatura – De papel se refere à massa do papel, medida em gramas por metro quadrado (g/m²). ↩︎
- Tiragem – Quantidade total de cópias ou unidades produzidas em um único trabalho de impressão, ou ciclo de produção. ↩︎
- Indústria Cultural – Conceito que se refere à produção em série de bens culturais, como ocorre com filmes, programas de TV, telenovelas, campeonatos esportivos, shows musicais, programas de rádio, livros, discos entre outros. ↩︎
- Resiliente – Que tem a capacidade de recuperar após um revés ou de superar situações de crise, adversidade ou infortúnio; que demonstra resiliência. ↩︎
- Zineira/o – Aquela/e que produz Zines. ↩︎
- Zineteca – Acervos particulares organizados pelos próprios zineiros. ↩︎
- Efêmero – Aquilo que é temporário; passageiro, transitório. ↩︎
- Slam – É uma competição de poesia falada que envolve performances e disputas de poesia. ↩︎
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

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