Há mais de um ano que a Universidade Estadual de Maringá (UEM) não vê a movimentação diária de milhares de alunos, professores e funcionários pelas ruas e blocos do campus principal. As bandejas do RU estão vazias e a clássica lanchonete O Pastel, da rua ao lado, não serve tantos PFs quanto antes. Até mesmo a pesquisa pelo Bloco H35, no Google, indica: “temporariamente fechado”. As medidas para conter a disseminação do coronavírus são responsáveis por essa quase hibernação.
Mas ainda existem algumas atividades por ali, sim. Basta descer a rua que dá continuidade ao caminho do Portão 2 para encontrar uma porta aberta no fim do H35, quase chegando no bloco G56. Lá dentro, no acervo do Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-história (LAEE), percebe-se uma movimentação silenciosa.
Pela aparente idade mais avançada e os cabelos brancos acinzentados, pressupõe-se que o sujeito de camisa cinza com pequenas plantas estampadas seja o professor. Ele logo se apresenta: “Está procurando o Lucio? Sou eu”. É Lucio Tadeu Mota, sociólogo, mestre em Ciências Sociais e doutor em História, um dos responsáveis pela criação do LAEE em 1996 e arqueologista dos indígenas de Maringá e região.
No centro dessa primeira sala, tem uma grande mesa. Do lado oposto ao professor, dois jovens estudantes de história: Marcio e Julia. Cercados por diversas estantes, dezenas e dezenas de caixas e milhares de pedras, organizadas e cuidadosamente guardadas pelas estantes que cobrem as paredes do cômodo, os três trabalham em harmonia com o silêncio do campus.
“Pedra” é como um leigo chamaria todo aquele porcelanato, material lítico e outras centenas de milhares de artefatos que chegam a datar de nove mil anos. São utensílios para cozinha, instrumentos de caça e coleta, vasos, jarros e tantos outros materiais retirados de terras paranaenses. Todos possuem muito valor para os estudos realizados no LAEE, um local de pesquisa, ensino e extensão de temas relacionados a populações indígenas presentes na região de Maringá e todo Paraná.
O número de materiais visíveis em cima da mesa e espalhados pelas caixas já impressionam, mas Lucio se apressa em mostrar onde, de fato, é armazenado o acervo. A sala ao fundo, climatizada e com armários enormes, é o dobro da primeira. Quando perguntado sobre a quantidade de material que há ali dentro, o professor ri. “Agora, de cabeça, é impossível dizer, mas seguramente temos centenas de milhares”, diz o arqueólogo.
De volta a sala de entrada, um jovem de boné que havia chegado há pouco contribui com a conversa. “Só essa caixa que eu trouxe tem cerca de cem peças, e já trabalhei em sítios com 10 mil peças”, acrescenta Felipe Glória. Ele é sócio proprietário da Tukum Serviços Arqueológicos, empresa especializada em consultoria e licenciamento arqueológico de Paranavaí (PR). “Pra você ter uma ideia, só o Sítio de Altônia tem na faixa de 60 mil fragmentos de cerâmica”, completa, do outro lado da mesa, o estudante Marcio.
Aquela caixa mencionada por Felipe, com cerca de cem artefatos, carrega o trabalho de horas e horas de serviço em um sítio com cinco hectares. Esse pode ser considerado o sinônimo de paciência e minúcia, cem artefatos de poucos centímetros retirados de uma área de cinco hectares (o equivalente a 50 mil metros quadrados). No laboratório, a minúcia e a organização continuam, com checagens de números e tipos de peças, número do protocolo do projeto etc.
Desde 2008, empresas como a de Felipe devem pedir liberação de Endossos Institucionais para o LAEE para realizar qualquer projeto de pesquisa arqueológica que tenha intervenções em campo. É também ao laboratório que a Tukum e outras empresas de consultoria e licenciamento arqueológico devem levar os artefatos encontrados durante qualquer projeto. Isso porque o laboratório foi habilitado como Instituição de Endosso pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), pois tem condições estruturais necessárias para receber e manter os achados. No Paraná, existem apenas dois locais como esse: o Museu Paranaense e o LAEE.
As origens
Ao falar sobre as atividades dentro do laboratório, Lucio revela que agora as pesquisas estão praticamente paradas por falta de verba e que os financiamentos estão diminuindo drasticamente, desde 2014. Atualmente, os compromissos dele e dos funcionários se restringem ao arquivamento e cuidado do acervo, e auxílio aos estudantes indígenas.
Quando chegou em Maringá, na década de 1980, o professor já era sociólogo, mas ainda não tinha mestrado ou doutorado. Naquele período, o interesse pelos povos indígenas surgiu enquanto estudava com mais profundidade a história do Paraná, para preparar aulas para seus alunos. Ao ouvir relatos e ver indígenas nas ruas da cidade, ele se deu conta que aquela história negligenciava, e ainda negligencia, a existência dos indígenas. As terras paranaenses não eram apenas uma “região que só tinha mato”, como costumam dizer.
“Comecei a me questionar sobre isso. Por que a história dos indígenas não era contada? Ensinavam a história do Estado sem a presença dos indígenas, mas eu sabia da existência deles, eles estavam ali na cidade”, explica o professor.
O mestrado em Ciências Sociais foi o início dos estudos dos povos indígenas paranaenses: Xetá, Kaingangs e Guarani. O laboratório surgiu como resultado desse trabalho e da vontade de contar e preservar a história de uma população totalmente negligenciada, que vem sendo exterminada ano a ano.
Dos três povos que habitam o Paraná, um já é considerado tecnicamente extinto, os Xetás. Atualmente, apenas alguns remanescentes dessa etnia são encontrados. Os Kaingang e Guarani que sobreviveram durante o período de colonização moram em cerca de 28 Territórios Indígenas espalhados pelo Estado. A extensão de todas essas terras corresponde a 0,62% da extensão total do Paraná.
Para Everton Cipriano, professor de história na Terra Indígena Ivaí, localizada na região de Manoel Ribas (PR), o trabalho do laboratório tem muita relevância. “Eles realizam uma ação efetiva do conhecimento indígena para o não indígena. Eles mostram que a nossa permanência é contínua aqui, sempre existiu.”
Everton, ou Ag Tar, como foi batizado na comunidade Kaingang, participa de uma linha de pesquisa diferente da pesquisa arqueológica de Lúcio. Realizada em parceria com pesquisadoras da área de educação da UEM, eles se preocupam com a educação escolar indígena. As professoras doutoras Maria Christine Berdusco Menezes, Rosângela Célia Faustino e Isabel Cristina Rodrigues são os nomes responsáveis por esse trabalho.
Ao proporcionar conhecimento às escolas não indígenas, para que a história desses povos seja contada de maneira adequada, e ao realizar interação e levar conhecimento científico para as escolas indígenas, essas pesquisadoras fazem da educação uma forma de existência e resistência dessa população.
“Os indígenas buscam o processo de alfabetização. Eles sabem que precisam aprender a língua portuguesa para estarem nas negociações, nas relações e interações da sociedade. A língua indígena, eles têm o domínio na forma oral, então eles também buscam a revitalização e apropriação, pois é uma identidade deles. A escola é o caminho para que os indígenas tenham autonomia, ampliem interações e conquistem ainda mais os seus espaços. Acredito que não tenha outro caminho que não seja a educação”, explica a pesquisadora Maria Christine.
A “arma” que os indígenas utilizam para existir e resistir é o assunto do áudio gravado pelas três pesquisadoras. Uma explicação sobre a autonomia e reapropriação da identidade indígena, luta, resistência, oportunidades e a importância e os problemas enfrentados por esses povos no processo educativo.
ÁUDIOS
Cunhã Mandawydju, ou “chuva de pedra”, em Guarani, é estudante de Pedagogia e mora na Terra Indígena Pinhalzinho, em Tomazina (PR). Adriane da Silva, como é conhecida por não indígenas, participa de reuniões e pesquisas do LAEE sobre educação escolar, populações e história indígena.
“É fundamental o trabalho deles. O professor Lucio, por exemplo, já me trouxe algumas partes da minha história, da história do meu povo, que eu mesmo não conhecia. Eles também ajudam a desmistificar a visão que os não indígenas têm dos indígenas. Infelizmente, ainda hoje, as pessoas ocupam nossas terras como se não tivesse nada ali. Eles não entendem que temos ancestrais que foram enterrados nessas terras, que a história do nosso povo está aqui”, desabafa Cunhã, que luta por zero vírgula e quase nada por cento de terras paranaenses que resta aos Guaranis.
Apesar desse atual período de dormência, o Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-história da UEM continua prestando um serviço valiosíssimo para a sociedade e para a história do Paraná, do Brasil e da região sul-americana. Manter o funcionamento do LAEE é tão importante quanto manter a existência dos indígenas em território brasileiro. Esses trabalhos não podem ser dizimados como já foram muitos dos seus objetos de estudo.
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Rafael Donadio
Edição de áudio: Lorena Dutra de Moura e Ana Paula Machado
Roteiro de vídeo: Rafael Donadio e Lorena Dutra de Moura
Edição de vídeo: Rafael Donadio e Lorena Dutra de Moura
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Imagens: Rafael Donadio, acervo LAEE e arquivo pessoal
Arte: John Vitor Makallister Zegobia Ferreira