Aproveitando e inovando: do espinhaço à pele do peixe

O aproveitamento correto de resíduos dos peixes ajuda na alimentação, no vestuário e na medicina

É muito provável que você conheça alguém que não gosta de comer peixe, isso se você mesmo não for essa pessoa. Eu mesma confesso que não sou muito fã das comidas que tem pescado, e olha que eu tenho descendência japonesa, então, esses alimentos sempre estiveram presentes na minha casa, desde a minha infância. Dependendo do modo de preparo eu até encaro, mas o sashimi, por exemplo, eu dispenso. E não é por falta de experimentar, já provei diversas vezes e nunca consigo entender por que algumas pessoas gostam tanto de comer peixe cru.

Mas eu não estou sozinha nessa. Não é raro encontrar pessoas que não gostam de comer peixe. Lembro que, logo que entrei na universidade, ainda caloura, já escutava muitos veteranos falando para evitar o restaurante universitário no dia do peixe, porque, segundo eles, o cheiro era tão forte que ficava impregnado nas pessoas pelo resto do dia. Seja pelo cheiro, sabor, textura e, até mesmo, por conta das espinhas, o peixe possui características que dividem opiniões, alguns amam e outros odeiam. Porém, existe uma coisa que é indiscutível, o quanto ele é importante na alimentação. 

Os peixes são ricos em proteína, vitaminas, minerais, gorduras boas em função dos ácidos graxos poliinsaturados, sendo o ômega 3 o mais falado quando se trata deste alimento. Esses elementos são super benéficos para a saúde, além de serem essenciais para a prevenção e combate de várias doenças. Por isso, muitos médicos e nutricionistas recomendam o consumo dos pescados de 2 a 3 vezes na semana.

Aí você me pergunta, como é que fica a vida daqueles que não gostam de peixe? A gente sabe que existe a possibilidade da suplementação desses nutrientes com medicamentos prontos ou manipulados, que são facilmente encontrados em farmácias. Mas, você já imaginou ingerir todos esses elementos fornecidos pelos peixes comendo outros alimentos que você gosta? Não? Então vem conhecer a pesquisa do Grupo de Estudos de Produtos de Origem Animal (Gepoa), do Departamento de Zootecnia (DZO), da Universidade Estadual de Maringá (UEM). 

Os peixes não são uma novidade para a professora do DZO da UEM e coordenadora do Gepoa, Dra. Maria Luiza Rodrigues de Souza. Ela trabalha com o tema desde os anos 90. O estudo começou com a pele dos peixes e, em 2000, ela estava com um projeto de doutorado do aproveitamento integral da tilápia, por meio do qual começou a desenvolver a farinha de peixe. Ao mesmo tempo que os estudos com a pele iam evoluindo, o grupo passou a avaliar todas as características de qualidade de espécies de peixes. Mas, foi em 2003 que todo esse trabalho realmente engrenou.

Professora Maria Luiza Rodrigues de Souza
Professora Maria Luiza Rodrigues de Souza (Foto/Milena Massako Ito)

O motivo foi o aprofundamento dos estudos da professora acerca do aproveitamento dos resíduos da tilápia como a pele e a farinha, que é feita com o espinhaço e a carne remanescente da filetagem. Mas, por que esse interesse? A professora conta que  apenas 30% da tilápia é destinada ao produto principal, ou seja, 70% é resíduo. “Em uma tonelada de peixe abatido, em torno de 700 quilos é resíduo. Desse total de 4% a 10% é pele, dependendo do método de filetagem aplicado”, explica a pesquisadora. 

Atualmente, boa parte desse material, além de não ser aproveitado, é descartado de forma incorreta. Muitos produtores acabam jogando os resíduos na própria água em que o peixe é cultivado, ou em buracos que depois são fechados, o que promove um enorme impacto ambiental. Uma alternativa adequada seria um sistema de compostagem, para aproveitar esse material na adubação de solo, por exemplo, o que, infelizmente, é pouco realizado. 

No entanto, a pesquisa realizada pelo Gepoa prova que existem condições de aproveitar todo esse resíduo de forma ainda mais satisfatória, resultando na farinha e no concentrado protéico de peixe, para uso na alimentação humana. Esses produtos podem ser utilizados como fonte de enriquecimento nutricional de alimentos com baixo índice de proteína, minerais e ácidos graxos, pois, o peixe de água salgada tem alta concentração de ômega 3 enquanto o de água doce de ômega 6, ambos importantes no consumo alimentar. 

“É possível aproveitar o esqueleto todo, ou seja, o espinhaço com as costelas e a carne remanescente da filetagem, pois, sempre fica carne na carcaça, e com isso você faz a farinha ou você pode passar essa carcaça em uma máquina de despolpar, em que é possível separar a carne das espinhas, conhecida como Carne Mecanicamente Separada (CMS), e com isso pode-se produzir o concentrado protéico, que nessa situação é muito mais rico em proteína do que a farinha de peixe, além de ter baixa concentração de matéria mineral”, explica a professora. 

Os produtos podem ser adicionados no preparo de vários alimentos, doces ou salgados, como biscoitos, bolos, massas, cereais, chips e outros. Tanto a farinha como o concentrado protéico agregam valor nutricional às receitas, sem interferir no sabor. “O acréscimo desses produtos vai elevar o teor de proteína e, principalmente, reduzir o carboidrato. Você vai ter um resultado excelente”, afirma a coordenadora do projeto. 

Mas e o gosto e o cheiro de peixe? Para a produção da farinha, o grupo já desenvolveu várias metodologias para moagem, sistema de lavagem, processo de cozimento, desodorização, aromatização e desidratação, das quais o objetivo principal é a obtenção de um produto de qualidade em termos de sabor e aroma, para remover ao máximo o gosto e cheiro de peixe. E os resultados são satisfatórios.

A professora Maria Luiza Rodrigues de Souza e os alunos integrantes do Gepoa expondo os produtos produzidos pelo grupo, na Expoingá 2022
A professora Maria Luiza e alunos do Gepoa expondo os produção do grupo, na Expoingá 2022 (Foto/Milena Massako Ito)

Além do peixe, o Gepoa também faz pesquisas com resíduos de outras espécies, como o jacaré, coelhos e aves. É claro, temos que destacar que não é qualquer resíduo que pode ser reaproveitado, é preciso avaliar a qualidade desse material, desde a sua extração. A professora fala sobre a aplicação de uma logística dentro da unidade de processamento para haver a possibilidade desse produto ser consumido, ou seja, é preciso cuidar de todas as etapas  de manuseio deste material, desde a filetagem até a manutenção da temperatura adequada, para evitar qualquer possibilidade de contaminação.

Da farinha de peixe, obteve-se a patente, sendo a terceira de todas as patentes concedidas na UEM. Mas, infelizmente, ela ainda não é comercializada. “Nós precisamos de divulgação para a venda dessa tecnologia e apresentação dela ao público, para que, assim, empresários comprem essa ideia. Nós somos pesquisadores, a gente ama o que faz, mas não temos o perfil para promover essa divulgação fora da universidade. Nós apresentamos os resultados, mas, muitas vezes, isso acaba ficando engavetado, por mais que a gente publique uma informação desse nível. Saber que é possível aproveitar muito desses 70% de resíduos é um potencial enorme e é triste você ir em um frigorífico e ver que isso está sendo descartado. Pior é saber que, hoje, a gente já necessita de fonte alimentícia de origem animal de qualidade, sabemos que tem muita gente passando fome e que a tendência é piorar, e a gente pode fazer uso desse resíduo, que possui baixo valor, uma vez que ele seria descartado, mas que tem alto valor nutricional”, declara a professora.

Couro de peixe

E tem mais: conforme o crescimento do projeto, o estudo com a pele dos peixes, aquele que a professora começou nos anos 90, também evoluiu. O grupo começou a fazer os testes de resistência para avaliar a qualidade do couro de peixe na aplicação em vestuário e calçados. O interessante é que, se analisado com o couro bovino na mesma espessura, o couro de peixe apresenta maior resistência à tração e rasgamento progressivo. Isso acontece por conta da disposição e orientação das fibras de colágeno, que são entrelaçadas e intercaladas em camadas sobrepostas. Há um sistema de angulação mais aberta na região da cabeça e vai diminuindo em direção a cauda do peixe.

Hoje, já existem vários produtos feitos com a pele de peixe, no entanto, encontrar produtos deste material não é uma tarefa fácil. Mesmo que algumas marcas de grife já utilizem a pele do pirarucu, que é o couro de peixe mais atraente para se curtir e comercializar atualmente, a venda em lojas ainda não ocorre com frequência. Isso porque a fabricação ainda é muita baixa, o que é uma pena, já que mesmo após o curtimento da pele, o couro de peixe permanece flexível, macio e, o mais importante, essa matéria-prima é algo que antes seria descartado, o que a torna uma opção sustentável e ecológica.

Na produção do couro de peixe, a professora explica o que ela chama de “dança do pH”, a atividade é chamada assim devido às variações nos valores de pH que ocorrem durante todo o processo de curtimento, esse que transforma a pele do peixe em couro. Saiba mais sobre o assunto no artigo “Qualidade de resistência de peles de Tilápia do Nilo submetidas ao curtimento com tanino vegetal“, publicado pela professora em conjunto com outros pesquisadores. No final desse procedimento, o couro de peixe se torna um produto macio, flexível e elástico. Outra característica interessante são as cores, essas podem variar de acordo com a técnica de tingimento utilizada, podendo ser natural ou artificial, o que possibilita uma grande variedade delas. Muito legal, né? 

Colágeno

Alimento, vestuário… o que mais os resíduos do peixe tem a oferecer? A pele do peixe é uma fonte rica de colágeno, uma proteína que ajuda na regeneração da pele humana. Por conta disto, o material é utilizado para o tratamento de queimaduras, auxiliando na cicatrização. Para o seu uso, primeiro é preciso esterilizar o local para evitar qualquer tipo de contaminação, e, depois, colocar a pele no local queimado, e aí é só deixar as fibras colágenas presentes agirem.

No entanto, a utilização da pele de peixe nestes procedimentos faz com que as características da pele (desenho das lamélulas de proteção e inserção das escamas) permaneçam temporariamente nos indivíduos, o que pode gerar inseguranças e problemas de autoestima. Em busca de melhorar este aspecto, o projeto recente da tese de mestrado da aluna Gislaine de Oliveira, integrante do Gepoa, propôs a utilização do colágeno do peixe em forma de biofilme. Os produtos são feitos a base de colágeno e extrato de própolis, que também tem ação cicatrizante, além de estimular a produção de fibroblastos. Ademais, o biofilme e a própolis evitam a contaminação e criam uma segunda camada de pele nas áreas queimadas ou feridas abertas, que estão em processo de cicatrização. O estudo ainda está em andamento. 

Todos os trabalhos de pesquisa citados neste texto são realizados na Fazenda Experimental de Iguatemi (FEI/UEM). Lá, o Gepoa tem acesso a um laboratório completo de processamento de peles, com fulões, cabines de pintura, prensa, secador, dinamômetro, equipamento usado para avaliar a resistência do couro, e muito mais. Acesse o texto “FEI: lugar de pesquisa e conhecimento”, e conheça mais sobre esse espaço da Universidade.

Para realização de todos esses estudos, o grupo de pesquisa Gepoa é formado pelos alunos de iniciação científica, orientados pela professora Maria Luiza Rodrigues de Souza, estagiários, professores do Departamento de Zootecnia, da Engenharia de Alimentos, da Química e da Biologia. No áudio abaixo, a professora explica a importância de se fazer um trabalho multidisciplinar:  

🎧 A professora Maria Luiza Rodrigues de Souza explica a importância da produção de um trabalho multidisciplinar

O Paraná é o maior produtor de tilápias do Brasil. E com toda essa produção de peixes, principalmente agora em época de quaresma, já pensou o tanto de resíduos que poderiam ser aproveitados? Pois é. Por isso é preciso incentivo nas pesquisas realizadas dentro das universidades, para que esses resultados deixem de ser apenas estatísticas e se tornem realidade, com o potencial de mudar a vida de muitas pessoas. 

Glossário

Biofilme de colágeno: uma espécie de película protetora, elaborada a partir do colágeno de pele, para cobertura, proteção e estimulação no processo de cicatrização

Fibroblastos: são as células que estão envolvidas na cicatrização, sua função principal é fabricar e manter o tecido conjuntivo

Fulões: equipamento fabricado em madeira, com formato cilíndrico, que agita o couro na presença de substâncias químicas

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Andressa Andrade de Souza e Milena Massako Ito
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Milena Massako Ito
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS: