Se a Democracia brasileira fosse uma pessoa, com certeza, hoje, ela seria uma mulher com experiência suficiente para saber de suas conquistas, mas, também, de onde sopram os ventos que podem desestruturá-la.
Nossa Democracia já teria vivenciado alegrias, tristezas e guardaria lembranças trágicas de um passado que insiste em não passar. Ela já teria consciência dos desafios que é continuar a viver de acordo com os seus princípios, amaria Caetano Veloso, Gal Costa e toda manifestação artística que prega a liberdade, igualdade, justiça social e uma visão de mundo que contemple a diversidade.
Como toda a mulher que vive no Brasil, a Democracia não tem paz. Para se proteger, é preciso estar sempre vigilante para os perigos que se avizinham. Imperfeita por natureza, pois não há nada 100% espetacular, carrega uma cicatriz profunda em seu corpo e sempre é pertinente rememorar os percalços da vida democrática para superá-los. Afinal, é preciso lembrar para nunca esquecer e não repetir os mesmos erros.
Em março de 1964, a Democracia sofreu um terrível e fatídico golpe de estado, que atingiu seus valores mais caros desde a Grécia antiga, retirando do povo (demo) seu governo (cracia) legitimamente eleito pelo voto.
Militares ficaram temerosos pelas promessas de um governo genuinamente popular com reformas estruturantes consideradas ‘radicais à esquerda’, por João Goulart, o vice-presidente empossado na presidência após a renúncia de Jânio Quadros. Com o apoio de setores da sociedade civil, como ‘cidadãos de bem’, empresários e imprensa, juntos conspiraram e depuseram o eleito a pretexto de conter ‘o avanço do comunismo’. O golpe de 64 obrigou Jango, como era conhecido, a se exilar no Uruguai e feriu quase de morte a Democracia.
Com todo o aparato do estado brasileiro a serviço da polícia política repressiva, o que se viu nos 21 anos da ditadura militar foi a vigilância ostensiva, perseguição, prisões arbitrárias, assassinatos e desaparecimentos de corpos de opositores ao regime por todo o país. A tortura passou a ser uma política pública de Estado para desmantelar os partidos de oposição e movimento sociais, atingindo a todos que se opunham ao autoritarismo dos generais no poder.
Para nos ajudar a entender as desventuras da Democracia nestes 60 anos pós-golpe, o Conexão Ciência – C² convidou o professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Reginaldo Benedito Dias. Com experiência na área da História do Brasil República, ele pesquisa, principalmente, temas como a história política, movimentos sociais e estudantis. É um especialista nos estudos da organização política de esquerda Ação Popular, criada em junho de 1962, a partir da atuação dos militantes estudantis da Juventude Universitária Católica (JUC) e de outras agremiações da Ação Católica Brasileira.
“Podemos dizer que, quando temos efemérides, ou ‘comemorações’ de datas simbólicas, elas podem ser de alegria e tristeza. No caso dos 60 anos do golpe, é de tristeza”, afirma Reginaldo na largada de sua análise.
Isto porque, quando olhamos em perspectiva, como bem preza a História, podemos nos distanciar dos fatos e, assim, compreender a dinâmica dos acontecimentos. O professor propõe relacionarmos os fatos a cada década do que acontecia no país, até porque a proposta é entender como a Democracia chega, neste 2024, a partir de 64.
Anos de chumbo
A primeira década do regime, completada em 1974, foi o auge da ditadura. Para além do fechamento do Congresso Nacional, cassações de mandatos legítimos e perseguição implacável aos ‘inimigos da pátria’, registra-se o Ato Institucional nº 5 em 13 de Dezembro de 1968, que impôs ao país tempos sombrios em que opositores ao regime eram barbaramente torturados e mortos nos porões.
“Nos dez anos do golpe, ainda havia condições políticas para a ditadura celebrar a si própria, com jograis nas escolas e desfiles cívicos em comemoração ao que chamavam ‘Revolução de 64’”, pontua.
Neste período dos anos de chumbo, o Brasil experimentou o que há de mais cruel em termos de terrorismo de estado, com amplo apoio intelectual dos Estados Unidos já devidamente comprovado por pesquisas em documentos da época, bem como de empresas nacionais que colaboraram com as atrocidades que ferem frontalmente os Direitos Humanos.
Também é preciso entender o papel dos meios de comunicação neste processo de sustentação ao regime de exceção, responsáveis por peças de propaganda pró-regime. A própria Globo reconheceu, em editorial publicado no jornal O Globo, 49 anos depois e pressionada pelas manifestações de junho de 2013, que o apoio ao golpe militar de 1964 e ao regime subsequente foi um “erro”.
Crise econômica
Quando se chega a 1984 ainda havia a ditadura, mas o país estava vivendo uma crise econômica aguda, com uma recessão agravada pela pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o pagamento da dívida externa, e o avanço da fome. Junto com falta de produtos essenciais e o encarecimento dos produtos, a chamada ‘carestia’, a crise política se aprofunda e eleva a tensão na sociedade.
“A despeito da repressão propagar nos meios de comunicação a ideia de que a ditadura tinha melhorado a vida das pessoas, o tal ‘milagre econômico’, a propaganda se revelou uma farsa”, explica o professor.
Nesta segunda década, é preciso lembrar que a pressão internacional condenando as torturas e desaparecimentos foi decisiva para a aprovação, em 28 de agosto de 1979, a Lei da Anistia, que trouxe de volta os militantes exilados e banidos. Prometida como uma anistia “geral, ampla e irrestrita” pelo regime, a lei só foi possível ser aprovada por isentar os militares dos crimes praticados nos 21 anos da ditadura, representando ‘uma página infeliz da nossa história’, como canta a música Vai passar, de Chico Buarque.
Neste clima de efervescência econômica, política e social, a década termina com o povo nas ruas, querendo votar para presidente.
Com a emenda das Diretas Já rejeitada pelo Congresso Nacional, o candidato da conciliação, Tancredo Neves, foi eleito Presidente da República, pelo Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985, recebendo 480 votos contra 180 dados a Paulo Maluf e 26 abstenções. Teorias da conspiração à parte, Tancredo morre antes de tomar posse e assume o vice-presidente, José Sarney.
Em 1985, a ditadura acaba com o governo do último general, João Baptista de Oliveira Figueiredo, e a reabertura política no país. Neste ano, é lançado o dossiê Brasil Nunca Mais, que trazia os primeiros relatos dos presos políticos sobre as sevícias, ou atos de crueldade ferina, de tortura física ou mental, sofridas quando estavam sob a custódia dos agentes públicos.
Em 1988, a Assembleia Nacional Constituinte aprova o texto da Constituição do Brasil. Definida como a ‘Constituição Cidadã’, em discurso do deputado federal Ulysses Guimarães, para quem a ditadura suscitava ‘ódio e nojo’. Havia um clima de reconstrução nacional e o resgate da Democracia.
Justiça de transição
Em 1994, o Brasil administrava a herança de três décadas de ditadura no plano econômico com a hiperinflação, a desigualdade social ainda registrando o que hoje chamamos de insegurança alimentar e o desemprego. Era ano de eleição presidencial, com dois candidatos polarizando a atenção dos votantes: Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O Brasil também convivia com a impunidade gerada pela lei que anistiou os agentes do Estado, o que gerou uma demanda urgente patrocinada por movimentos de defesa dos Direitos Humanos com o objetivo de reverter esse retrocesso. Era o começo de uma luta pela Justiça de Transição, já aplicada em diversos países para reparação histórica ao reivindicar o ‘Direito à Memória, Verdade e Justiça’.
“Os dois candidatos à presidência sofrem grande pressão das forças progressistas para a edição de uma lei que fosse investigar os crimes da ditadura, inclusive, com a instituição de uma comissão para reunir informações que ainda estavam dispersas”, relembra Benedito.
Ao vencer o pleito, Fernando Henrique aprova a Lei 9.140/95, que criou a Comissão dos Mortos e Desaparecidos pela ditadura, com o objetivo de atender ao apelo das famílias que ainda esperavam explicações sobre o paradeiro dos corpos. “Era uma legislação muito limitada por estar submetida à Lei da Anistia, de 79. E pior: somente as famílias podiam movimentar o Estado, e não a sociedade, e atribuía a elas o ônus da prova”, pontua o professor.
Investigar crimes
Reginaldo salienta que, de 1994 a 2004, os 40 anos da ditadura são marcados por uma maior clareza sobre a natureza do golpe. “Nessa década, se consolida uma visão mais complexa do golpe, que leva a enxergar uma movimentação dos militares com um largo envolvimento dos civis”, ressalta.
Desta feita, embora alguns historiadores, ainda hoje, se animem com essa discussão, não há divergências sobre o caráter civil-militar de 1964. É possível constatar também uma intensa movimentação acadêmica, quando houve uma expansão de pesquisas relativas ao período histórico político.
“Cresce consideravelmente a literatura acadêmica e a bibliografia se expande, somando-se à literatura memorialista, que já era possível consultar”, avalia Reginaldo.
Após três tentativas frustradas, 1989, 1994 e 1998, Lula chega à presidência da República, em 2002, para seu primeiro mandato. Institui a Comissão de Anistia, com a finalidade de analisar os requerimentos de anistia que tenham comprovação dos fatos relativos à perseguição sofrida, de caráter, exclusivamente, política.
Já nos 50 anos do golpe, de 2004 a 2014, o terreno está pavimentado para a consolidação dos resultados da Comissão dos Mortos e Desaparecidos (1995) e a publicação Livro Direito à Verdade e Memória (2007), pelo Ministério de Direitos Humanos (MDH), no segundo governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Memória e Verdade
A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída, em 16 de maio de 2012, pela presidente Dilma Rousseff (PT), ela mesma uma militante da resistência democrática, presa e torturada pelo Estado. A CNV teve por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.
Após dois anos de oitivas e registro de depoimentos, em dezembro de 2014 é publicado o relatório final da Comissão da Verdade, que mais uma vez não promoveu justiça para resistentes.
Em 2012, as Caravanas da Anistia continuam a percorrer o país, um projeto itinerante da Comissão da Anistia de 2002, com sessões para realização de julgamentos de processos de cidadãos e ou familiares atingidos pelos atos de exceção, no período de 1946 a 1988. No Paraná, a 72ª edição aconteceu no Colégio Estadual do Paraná, em Curitiba, e reuniu dezenas de ex-presos políticos e militantes da resistência democrática.
“Os 50 anos do golpe podem ser referenciados, com o trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o fato mais relevante. Era limitada, pois não podia promover a Justiça. Porém, avançou em termos de busca da verdade e deu oficialidade a essa ação”, diz o professor.
Graças à movimentação da sociedade civil, especialmente as entidades reunidas no Fórum Paranaense de Resgate da Memória, Verdade e Justiça, o Paraná foi um dos últimos estados a oficializar a Comissão Estadual da Verdade (CEV), no final de 2012. Batizada de Teresa Urban, jornalista e militante barbaramente torturada por agentes públicos paranaenses, a CEV teve o relatório final divulgado em 2017.
Temperatura alta
De 2014 até 2024, chegamos aos 60 anos do golpe de 64 com uma perspectiva completamente diferente do que as últimas décadas anunciavam.
Apesar de toda a pressão e esforços, o que vemos nesta década é que a história parece ter dado uma reviravolta. E se podemos localizar no tempo um momento em que houve, digamos, uma ruptura nessa caminhada rumo à consolidação da nossa Democracia, as manifestações de junho de 2013 podem nos dar um indicativo, quase um sintoma, de que algo grave iria acontecer. E aconteceu: um sentimento antipolítica, que vigora até hoje.
Com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, assistimos estarrecidos o voto do então deputado federal Jair Bolsonaro, que além de homenagear Brilhante Ustra, o torturador de Dilma, ainda deu voz aos adoradores da ditadura e tornou-se um mito para uma direita reacionária, que o levaria à presidência de 2019 a 2022.
Quando se esperava que houvesse uma pacificação, um esfriamento na temperatura das disputas políticas no campo democrático, eis que surge uma massa que nega as violações e crimes da ditadura e, principalmente, vai pra rua pedir ‘intervenção militar’ e AI-5.
Neste contexto, vale lembrar o início da operação Lava Jato, em 2014, que iria canalizar o ideário reacionário da extrema-direita e desaguar na prisão do ex-presidente Lula, que, em 10 de maio de 2017, foi preso pelo então juiz Sérgio Moro e impedido de concorrer contra Bolsonaro.
Como é possível, após décadas, um retrocesso dessa proporção?
A jornalista e doutoranda em História, pela Universidade Estadual de Maringá, Regina Daefiol, aposta numa justificativa. “É uma questão geracional. Aquela juventude que foi capaz de abrir mão da sua família, amigos e da própria identidade para aderir à resistência democrática tinha uma visão progressista e uma formação teórica consolidada de como a sociedade deveria ser constituída e que os orientava para a ação”.
Para ela, dificilmente, hoje, se vê esse tipo de militante orgânico, nem em parte da esquerda, e muito menos da direita. “Não há mais aquele sentido de urgência para a geração atual, que a levaria ao desprendimento de largar carreira e a vida para ação política de resistência como no passado”.
Isto sem contar que as pessoas que são capazes de embarcar na aventura golpista de afronta e desrespeito às instituições, especialmente o Supremo Tribunal Federal (STF), demonstram a ausência de uma verdadeira compreensão política da histórica, chegando ao cúmulo de usar a Democracia para destruir a Democracia. “É um deserto de ideias, em que apenas a lógica do ódio e da destruição prevalece, sem projeto de futuro de país e isento de qualquer ação que encare as mazelas históricas nacionais”, antevê a pós-graduanda.
Sem anistia
Regina estuda a resistência desde a graduação em História, mestrado e, agora, no doutorado. “A luta contra a ditadura trazia um otimismo que movia os resistentes, o que não vemos agora, mesmo sob a ameaça sistemática de um retrocesso”, projeta. Neste contexto, a pesquisadora atribui esse sentimento à transição incompleta da ditadura para a Democracia, especialmente no que se refere à Lei da Anistia que beneficiou com a impunidade os militares de 64.
Para pesquisadora, não faz o menor sentido permitirmos a anistia para os autores e financiadores dos crimes cometidos contra a nossa Democracia nos últimos anos, ainda mais no que se refere aos atos terroristas de 8 de janeiro de 2023. “Muito do que vivemos nesse presente está ligado ao passado inconcluso. Temos que nos mobilizar como sociedade para impedir mais essa impunidade, dentro da lei, claro, porque senão as consequências serão mais sérias para o país do que foi lá trás”.
Ano passado, o Conexão Ciência – C² fez uma longa matéria – 2023: O Brasil sem anistia, destacando momentos distintos sobre a anistia da ditadura e na Democracia.
60 anos depois da instalação da ditadura, estamos mais uma vez às voltas com uma tentativa de golpe. Fracassada é verdade, mas com os mesmos atores – militares, civis, empresários e imprensa hegemônica – e justificativas – combate ao comunismo, à corrupção, pela família, Deus e ‘liberdade’.
De tudo, o que fica é o perigo de termos que carregar novas correntes no futuro, juntando com as antigas, caso os golpistas de agora sigam impunes.
Resta saber como estará a saúde da nossa Democracia na próxima década diante de tantos desafios para superar e manter sua integridade. Precisamos resistir para protegê-la, assim como devemos priorizar para todas as mulheres deste Brasil.
Quem viver, verá!
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Texto: Silvia Calciolari
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Maysa Ribeiro
Arte: Mariana Muneratti
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
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