Clima caótico: humanidade entre a cruz e o caldeirão

Brasil irá sediar, em 2025, a Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 30) em plena floresta amazônica, hoje, castigada por seca histórica

Na maioria dos filmes-catástrofe produzidos por Hollywood, a cena inicial é sempre a mesma: cientistas alertam os governantes para o perigo de um cataclisma sem precedentes na história humana na Terra e, independente das evidências apresentadas, são os primeiros a serem desacreditados. 

O negacionismo da ciência vai até a metade do filme, quando a extensão da destruição e mortes atinge níveis globais. Nessa parte, aquele cientista lá do começo, escorraçado, difamado e, até, preso em alguns roteiros, torna-se a única esperança da humanidade e é convocado pelas autoridades para colocar seu conhecimento em prática e salvar o planeta num final apoteótico. E um detalhe que muitos telespectadores nem sempre se atentam: além de ajudar a humanidade, a ciência ainda salva o filme.

Dizem que a arte imita a vida. E, no caso dos filmes que trazem os dilemas das mudanças climáticas, parece até que a vida está imitando a arte.

Mas não deveria ser assim. Vejamos o roteiro da vida real. 

A trama começa nas décadas de 1970-80, quando James Hansen, um pioneiro da Climatologia, a ciência do clima, anuncia numa palestra no Congresso Americano que, em um estudo de 1981, foi previsto um aquecimento de 3,0º C a 4,5º C na temperatura média da atmosfera até o ano de 2100. 

Ali surgiram os primeiros esboços do que, hoje, os pesquisadores do clima classificam como Antropoceno, a Era em que ação humana na exploração e queima dos combustíveis fósseis como petróleo, carvão e gás, principalmente o metano, é capaz de mudar o clima do planeta. Em tempo: o Conexão Ciência já produziu uma matéria sobre o Antropoceno, suas causas e impactos.

Com base nas tendências de desenvolvimento econômico e emissão de gases estufa derivados de atividades humanas apontadas pelos estudos conduzidos pelo pesquisador norte-americano, o futuro, naquele longínquo 1988, não era nada promissor.

“Se a humanidade quiser preservar um planeta parecido com aquele no qual a civilização se desenvolveu e com o qual a vida na Terra está adaptada, evidências paleoclimáticas e as mudanças climáticas em curso sugerem que o CO2 (dióxido de carbono) precisa ser reduzido dos níveis atuais a um máximo de 350 ppm (partes por milhão)”, alertou.

Naquela época, a capacidade de processamento dos computadores não era como hoje e os modelos climáticos desenvolvidos ainda geravam muitas controvérsias e desconfianças. E, claro, proliferaram as piadinhas negacionistas como aquelas em que pessoas no inverno rigoroso perguntam, de forma sarcástica: ‘ué, cadê o aquecimento global’?

Mesmo diante de tamanho desdém das autoridades com suas previsões, Hansen se transformou em um homem da ciência com forte ativismo ambiental e inspirou diversos outros cientistas e movimentos climáticos, que passaram a propagar a sua tese. Hoje, aos 82 anos, o ex-pesquisador da NASA1 já foi preso diversas vezes por não fugir do debate e se manter intransigente na sua missão em divulgar a ciência do clima e os impactos que a ação humana pode provocar a todos os seres vivos. 

E aqui chegamos à segunda parte do nosso roteiro, quando a ciência e os cientistas passam a ser desacreditados pelos governantes e toda a cadeia da indústria dos combustíveis fósseis. Basta lembrar os fracassos das duas mais importantes tentativas para conter as emissões dos gases de efeito estufa como o Protocolo de Kyoto (1997) e o Acordo de Paris (2015), que se deve a não adesão dos principais países responsáveis pelas maiores emissões e seus impactos.

Das Mudanças Climáticas para a Emergência 

A partir de agora, o roteiro do filme da nossa era está inacabado e o que virá nas próximas décadas fará parte de um final que formos capazes de construir. 

No melodrama do Antropoceno, vemos uma alteração sutil, porém, importante. Superamos a ideia das Mudanças Climáticas para chegarmos à Emergência Climática. Em maio deste ano, medições dos níveis de concentração de CO2 na atmosfera atingiram impressionantes 424 ppm, que representam mais de 50% superior ao início da era industrial. Foram 3 ppm a mais do que registrado em 2022. 

Não é por menos que já estamos assistindo ao vivo e sentindo na pele as consequências do efeito estufa: quebras sucessivas de recordes de calor, calotas polares derretendo e o consequente aumento do nível do mar, chuvas muito acima da média histórica com enchentes devastadoras e mortais e, claro, a seca severa que castiga, por exemplo, alguns dos mais importantes rios da Amazônia. 

Isto porque, longe de ser uma ficção da sétima arte, na vida real, as populações de todo o mundo experimentam, neste momento, os severos impactos da Emergência Climática em tempo real, como num reality show de proporções planetárias. Dos problemas de saúde à segurança alimentar, passando pela crise hídrica e de energia que se anuncia neste cenário, a humanidade parece caminhar para o seu trágico final. 

Protagonismo dos cientistas paranaenses

Mas calma! Como nos filmes, a ciência poderá nos salvar a todos.

Para quem está cético de que o apocalipse climático é inexorável, sem chances de ser evitado, bastam 15 minutos de conversa com o professor Francisco de Assis Mendonça para perceber que nem tudo está perdido. O pesquisador da Universidade Federal do Paraná (UFPR), com doutorado em Climatologia e Planejamento Urbano, mantém-se ao longo de décadas um otimista.

“Seremos inteligentes suficientes para conduzir a mudança, apesar do momento catártico no plano social, político e cultural profundo. Estamos nessa passagem, onde a questão de existência no planeta não se mostra fácil, nem pacífica. Mas é a passagem e, por isso, precisamos desenvolver no país ações com maior sustentabilidade da vida humana no planeta”, pondera .

Pesquisador do clima desde os anos 80, Francisco de Assis Mendonça atua como coordenador do Napi Emergência Climática (Foto/Arquivo Pessoal)
🎧Ouça o bate-papo com Francisco Mendonça

Mendonça explica que, se olharmos somente para o lado catastrófico, negativo, e pensar que realmente chegamos, em termos ecológicos, numa situação de encruzilhada, tal mentalidade poderia nos paralisar.

“Se for assim, o passo seguinte é o passo para a morte e o fim da espécie humana. Mas acho que temos muitas construções com certo ar positivo e que não são hegemônicos ainda, mas que tendem a vir a ser, uma vez que os limites estão sendo mostrados em termos de emergência”, ressalta.

E tanto otimismo não é para menos. 

É com esse espírito de que há uma luz (fria) no final do túnel que o professor coordena os trabalhos de um grupo de pesquisadores no Paraná que integra o Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação em Emergência Climática (Napi-EC). Iniciado em 2022, o programa é vinculado à Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti), com financiamento da Fundação Araucária, e sistematiza pesquisas sobre o clima e seus impactos para os paranaenses e a biodiversidade.

São oito instituições de ensino superior, federais e estaduais, para desenvolver pesquisas interdisciplinares, programas de educação e ferramentas tecnológicas e computacionais capazes de gerar e manter grandes volumes de dados a respeito dos eventos climáticos. 

“Essas informações combinadas com os resultados das pesquisas desenvolvidas serão utilizadas para embasar planos que atenuem e mitiguem os efeitos dessas mudanças no estado do Paraná”, explica o coordenador do Napi-EC. 

Além da UFPR, a qual Mendonça é vinculado e que reúne a maior parte dos pesquisadores envolvidos, participam do Napi-EC a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), a Universidade Estadual do Centro Oeste (Unicentro), a Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), a Universidade Estadual de Londrina (UEL), a Universidade Estadual de Maringá (UEM) e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Já o Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR-PR), o Sistema Meteorológico do Paraná (Simepar), Universidade Estadual do Paraná (Unespar), Faculdade Unopar e Centro de Educação A Distância (Ceped) atuam como entidades colaboradoras do projeto.

Assim como em outras partes do mundo, os cientistas paranaenses estão organizados em rede para produzir pesquisas interdisciplinares, gerenciando grandes volumes de dados sobre eventos climáticos e, assim, contribuir para a definição das políticas públicas que enfrentem os impactos. E mais: é objetivo, também, promover uma ampla conscientização junto à população para o enfrentamento às emergências climáticas, no futuro.

COP 30: momento de conscientização

O professor Francisco de Assis Mendonça lembra que, nos últimos anos, experimentamos o desmonte das políticas públicas na proteção da biodiversidade, recordes de desmatamento e garimpo ilegais, impactando severamente as nações indígenas, que são responsáveis pela riqueza da floresta. 

“Foi um grave período de quatro a seis anos de negacionismo, em que grassou2 a destruição dos sistemas ecológicos e ceifou vidas, sobretudo dos povos originários. São eles que historicamente fizeram e produziram a riqueza das matas como as da Amazônia e precisam ser mais respeitados e tratados com dignidade e civilidade para continuarem existindo”, defende Mendonça.

Por tudo isso e muito mais, é emblemático que o Brasil seja a sede, em 2025, da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 30), que acontecerá em Belém, capital do estado do Pará. Afinal, as políticas públicas, seja no Brasil e no plano internacional, dependem de decisões que acontecem após negociações em câmaras como a de Mudanças Climáticas, pela ONU.

Localizada ao Norte do país, em plena floresta amazônica brasileira, a cidade portuária é a  entrada para a região do Baixo Amazonas, rio que sofre com uma seca histórica muito em função da intensificação do fenômeno El Niño, este ano.

As expectativas são altas para os pesquisadores do clima para que a COP 30 no Brasil cumpra esse papel que exerce em todos os lugares onde ela acontece. É um momento em que se reúnem mais de 160 líderes mundiais e dirigentes, movimentos sociais, instituições e pesquisadores do mundo todo e do país-sede.

“O evento intensifica a sensibilização dos participantes e da população, deixando marcas indeléveis3 que acabam, de uma maneira ou outra, levando que as instâncias políticas tomem decisões mais representativas daquelas que acontecem fora desse cenário”, explica o professor.

Para Mendonça, “estamos agora num momento de resgate de cidadania, de condições ambientais mais saudáveis e 2025 é, sim, esse cenário de que a gente poderá ter mais forças nesse país, alimentadas por outros líderes mundiais, para fazer que essa luta efetiva tenha mais resultados que o presente”.

Seria fundamental que a COP 30 representasse no Brasil um conjunto de oportunidades que sensibilizasse um pouco mais a sociedade brasileira e também a América Latina como um todo. “A aposta é criar um ambiente para tomarmos decisões como país no sentido da redução de emissão de gases, seja no consumo urbano quanto no rural; a gente possa trabalhar mais no país para o desenvolvimento de ações com maior sustentabilidade no planeta, que tem tudo a ver com a sustentabilidade da vida humana”.

Esperança e ousadia

O clima entre os pesquisadores é de verdadeiro otimismo para a COP 30, diante dos projetos e pesquisas que estão sendo desenvolvidos nas universidades federais e estaduais. Algumas das expectativas giram em torno da apresentação de propostas mais rígidas em relação a emissões e com metas com maior rigor, além de financiamento de pesquisas e projetos em países que não emitem tanto. Isto porque as últimas edições das Conferências do Clima deixaram muito a desejar em termos de compromisso com o combate à Emergência Climática.

Em termos gerais, é o que pensa Dayani Bailly Fernandes, professora do Departamento de Biologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná, e pesquisadora do Napi Emergência Climática. Durante palestra no Paraná Faz Ciência 2023, evento de divulgação científica realizado no campus da Universidade Estadual de Londrina, também em terras paranaenses, agora, em novembro, Dayane apresentou os eixos temáticos que orientam a participação e produção dos pesquisadores. 

Dayani Bailly Fernandes é pesquisadora do Nupelia/UEM e integra o Napi Emergência Climática (Foto/Arquivo Pessoal)
🎧 Ouça o bate-papo com Dayani

Sensível a questões climáticas desde a graduação, a professora desenvolve pesquisas sobre o impacto do clima entre espécies naturais de peixes desde a participação no Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais (PEA/UEM). Atualmente é pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Limnologia, Ictiologia e Aquicultura (Nupelia/UEM). 

Como mulher da Ciência, Dayani acredita no esforço e compromisso do governo federal no combate ao caos climático, já que não é possível dissociar a política do caos climático que estamos experimentando.

“A gente tem esperança pelo compromisso do atual governo, muito bem representado pela Marina Silva [Ministra do Meio Ambiente], para termos acordos mais incisivos e alguma colaboração mútua dos países maiores causadores dos fenômenos das mudanças climáticas”, afirma. 

Segundo ela, “a ciência é aliada ao poder público e ao setor econômico para produzir com menor impacto. É preciso ousadia. Temos uma série de boas práticas e condutas dentro do setor produtivo para diminuir as emissões. Mas tem que ser uma governança comprometida e que a população apoie numa escala global”.

Antropoceno não poupa ninguém 

Dayane, por sua vez, chama atenção ainda para um fato cada vez mais nítido no cenário de emergência climática e que deveria preocupar a todos.

“Estamos vivendo as consequências do Antropoceno e os que mais poluem não serão atingidos. Os mais vulneráveis serão os mais impactados”, alerta. É o que os especialistas definem como racismo ambiental, em que as populações mais vulneráveis são as primeiras a sofrer com os extremos do clima, insegurança alimentar, problemas de saúde e, em muitos casos, têm que deixar a sua terra natal, sua cultura para se transformarem em refugiados climáticos.

A pesquisadora usa o exemplo das espécies naturais para fazer o contraponto com a humanidade. Os peixes são diretamente impactados pelas alterações no clima da sua região ou bacia hidrográfica, o que interfere na distribuição e reprodução das espécies. 

Já uma parte da humanidade consegue, com suas habilidades e racionalidade, contornar o calor com ar-condicionado, ou frio com aquecimento. E é exatamente por isso que muitos acreditam que não sofrerão com os efeitos do clima. 

“A humanidade precisa entender que os sistemas sociais e econômicos são totalmente dependentes dos sistemas naturais para a alimentação, produção de bens de consumo, inúmeros medicamentos, especialmente, as populações ribeirinhas amazônicas”, enfatiza Dayane.

Para as populações ribeirinhas, a vulnerabilidade em relação à emergência climática já é uma realidade que pode ser constatada com a escassez de peixes, fonte primordial de proteína animal. Também sofrem com a contaminação do mercúrio pelo garimpo ilegal e uso de agrotóxicos pela pecuária e agricultura extensivas. 

“Em 2025, deve estar um pouco pior pelo acúmulo de processos de destruição, além da questão climática, com a mineração e o uso do mercúrio. Já há estudos que mostram a diminuição nos estoques pesqueiros na amazônica, o que representa uma catástrofe sem precedentes e que precisa de ações imediatas das autoridades”, completa a professora.

Este é o cenário que a COP 30 poderá apresentar para os líderes mundiais que virão ao evento.

Já nas cidades, pessoas que vivem nas periferias e em situação de rua foram as primeiras a serem impactadas. Hoje, com o volume recorde de chuva em centros urbanos, todas as camadas sociais contabilizam prejuízos materiais e vidas que são tragadas pelas enchentes, além de perdas na agropecuária e redução na produção de alimentos. Os gestores públicos precisam destinar recursos e incluir no planejamento urbano adaptações para enfrentarem o calor extremo, as chuvas e enchentes e o frio, que também promete ser severo. Sem essas medidas, especialistas alertam que muitas doenças e mortes poderão ser causadas pelos impactos climáticos.

Neste sentido, no roteiro do nosso filme-catástrofe climático, a COP-30 no Brasil pode representar um plot twist4 espetacular, uma revolta espetacular, seja para o bem ou para o fim. Até porque, as expectativas não são nada animadoras. 

Antes que a gente chegue na “era da ebulição global”, como chamou o secretário-geral da ONU, António Guterres, diante da expectativa de que a temperatura média global aumentará até o final deste século entre 2,1º C e 3,5º C em comparação com a era pré-industrial, somente um apelo moral pode nos livrar do cataclisma.

A mão que destrói é a mesma que conserta. É nosso dever lutar para impedir a extinção de todos os seres vivos que habitam a Terra. Assim, caberá à humanidade escolher o The End.

O título a gente já tem: Não existe Planeta B!

Para saber como você pode contribuir, desde já, para o combate ao caos climático, o C² preparou o podcast Conexão Emergência Climática. Dê um play!

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Texto:
Silvia Calciolari
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Mariana Muneratti
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:

Glossário

  1. NASA: Sigla do inglês National Aeronautics and Space Administration (Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço) para designar a Agência Espacial Norte Americana. ↩︎
  2. Grassou: Conjugação do verbo ‘grassar’, que significa  propagar-se ou difundir-se através da reprodução. ↩︎
  3. Indeléveis: Adjetivo que define o que é durável, permanente, que não se pode destruir, suprimir ou fazer desaparecer totalmente. ↩︎
  4. Plot twist: No audiovisual brasileiro, usa-se o termo para uma reviravolta no enredo, o ponto de virada, que designa momentos que mudam completamente os rumos da história. ↩︎