Arte de John Zegobia

Antropoceno: o poder destrutivo da espécie humana

A capacidade de alteração da natureza chegou em um nível em que a sociedade caminha para um ponto de irreversibilidade da situação climática

Um dos assuntos mais comentados recentemente no Brasil é o aumento recorrente da conta de luz. Desde o início do ano, a cada mês que passa, a energia fica mais cara. Com a crise hídrica que o país enfrenta, que, segundo os dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), é a pior seca dos últimos 91 anos, o governo precisou adotar medidas como acionar o uso das usinas termoelétricas, mais caras e poluentes, e também recorrer ao aumento da importação de energia da Argentina e do Uruguai, que acabam por aumentar mais ainda os custos no Brasil. 

Essa alta nos preços preocupa toda população brasileira, e com a minha supervisora, Ana Paula Machado Velho, não é diferente. Desde o início da pandemia, ela tem trabalhado em casa e, por esse motivo, está utilizando com mais frequência vários aparelhos eletrônicos que demandam energia elétrica. Além disso, Ana lembra que o verão está chegando e, com as temperaturas cada vez mais elevadas que temos vivido nos últimos tempos, vem também a necessidade do uso de aparelhos que refrigeram o ambiente, e esses são um dos que mais consomem energia.

E o problema não se restringe somente ao aumento da conta de luz, visto que, por conta da crise hídrica, a população também corre o risco de sofrer com o racionamento da energia, caso não haja produção suficiente dela. Ainda, com o momento atual em que muitas pessoas estão no estudo/trabalho remoto e passando mais tempo em casa, falar de racionamento e da falta energia já causa, de certa forma, bastante apreensão, porque a sociedade baseia toda a sua vida em torno da matriz energética. 

Em meio à pandemia da Covid-19, um outro grande problema que o mundo enfrenta é a crise climática. Com o recorde de temperaturas altas registradas no verão do hemisfério norte e sul, enchentes violentas ocorrendo na Europa e na China, incêndios resultando em cenários apocalípticos ao redor do mundo, e a própria crise hídrica no Brasil, o tema vem alertando ainda mais os pesquisadores que discutem as mudanças climáticas e o conceito de antropoceno.

  • Incêndio na ilha grega de Eubeia (Angelos Tzortzinis/AFP)
  • Enchente na Alemanha (Sebastian Schmitt/picture alliance via Getty Images)
  • Nível de água na represa de Marimbondo (Joel Silva / Fotoarena / Estadão Conteúdo)

Quem explica melhor esse cenário para nós é o professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Roger Domenech Colacios. Ele trabalha com história ambiental desde 2004, desenvolvendo pesquisas nessa área que é mais ou menos recente, se formos pensar na tradição historiográfica brasileira. Nos últimos 15 anos, a história ambiental tem ganhado mais força e, com isso, conquistado uma presença maior dentro das universidades do país. De acordo com o professor, a crise climática é um tema fundamental hoje em dia, que precisa ser muito divulgado e discutido, pois não se trata apenas de um problema ambiental, mas também econômico, político e social, que nós teremos que enfrentar nos próximos anos.

Roger conta que, atualmente, tem centrado a maior parte das suas pesquisas nas discussões acerca do termo antropoceno, uma palavra que surgiu no meio científico há mais ou menos 10 ou 12 anos atrás. “Ela veio do cientista neerlandês Paul Crutzen, quando ele estava no meio de uma palestra tentando definir como a gente poderia conceituar a era geológica atual e usou o termo antropoceno, que não foi criado por ele, já tinha sido utilizado por outros autores, mas foi crutzen que popularizou essa ideia e criou toda uma discussão em torno dele”, explica o professor.

E o que é antropoceno? O termo é usado para falar sobre a era geológica do ser-humano, na qual nós, enquanto espécie, atingimos um grau de desenvolvimento das nossas tecnologias e forças produtivas a ponto de nos tornarmos uma força da natureza, capaz de alterar os ciclos naturais, ecossistemas e o bioma planetário, algo que é completamente inédito na história do planeta. Nenhuma outra espécie, dentro dos estudos científicos conhecidos, foi capaz de atingir um grau de alteração do planeta, incluindo todos seus ecossistemas, a biodiversidade e, principalmente, o clima. “Nossa capacidade de alteração da natureza chegou em um nível em que  estamos caminhando para um ponto de não retorno da situação climática global”, alerta Roger.

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A situação climática é um tema discutido desde o final do século 19, segundo alguns indícios deixados por autores, mas, naquela época, ainda não havia estudos pormenorizados quanto ao assunto. É a partir dos anos 70 que uma série de cientistas vai se dedicar a pensar, perceber e estudar a relação entre a extrema industrialização e a produção em larga escala e como isso tudo vai afetar o clima do planeta, especialmente, as emissões de gás carbônico (CO2). Com essas pesquisas, os cientistas foram percebendo, por meio de estudos geológicos, históricos e climatológicos, da revolução industrial em diante, a quantidade de gases emitidos pelo ser humano tem atingido um ponto em que eles vão se tornando perigosos para a manutenção da vida na Terra. Acumulados na atmosfera, criam o chamado efeito estufa, uma camada que envolve o planeta e ajuda a elevar a temperatura por aqui.

Apesar dessas descobertas, a discussão política sobre esse assunto não existiu de forma tão grande assim nos anos 70 e nem na década seguinte, quando os cientistas enfrentavam outros problemas climáticos. É a partir dos anos 90 que o tema passa a ser mais abordado e, por isso, vai acontecer uma virada ecológica, em que a maioria dos países e seus representantes vão passar a se ocupar de uma agenda ambiental, principalmente, a partir de 1992, ano que ocorreu uma reunião no Rio de Janeiro, com a participação de mais de 170 países e seus mandatários, presidentes, reis e primeiros ministros, para a definição dos rumos globais em torno do meio ambiente, a chamada ECO-92.

Nessa reunião, acontecem duas coisas importantes, a primeira é o direcionamento do IPCC (Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas), o painel climático criado pela ONU, em 1988, para resolver, principalmente, o problema do buraco na camada de ozônio. Porém, já em 1991, a entidade passa a se preocupar com o aquecimento global. Com a ECO-92, o IPCC inicia uma atuação científica maior, atuando com cientistas e especialistas, e produzindo relatórios a cada 3 ou 4 anos, enquanto a ONU atua de forma política, com burocratas, diplomatas e políticos, que tentam se reunir a cada dois anos.

O segundo ponto importante que saiu dessa reunião foi a Agenda 21, um documento produzido como resultado desse encontro de 1992, em que foram definidas metas e objetivos, com uma proposta para mudança nas formas de crescimento econômico, social e político global para o século 21. Esse plano foi desenvolvido a partir da ideia de desenvolvimento sustentável, que já vinha sendo discutida desde os anos 70, e foi firmada nesta Agenda, que, entre outras coisas, previa também uma forma de diminuir as mudanças climáticas.

Em 1997, ocorre um encontro específico do IPCC, em Quioto, no Japão, onde foi discutido um dos primeiros relatórios do painel, que mostrou que as mudanças climáticas eram um fenômeno real e antropogênico, ou seja, os seres humanos estavam realmente causando alterações no clima, algo que, até então, muitos tinham dúvidas se era um movimento natural do planeta. 

“Mas, com esses estudos, ficou comprovado que era a ação humana que estava provocando essa modificação. Portanto, foi determinado que algo precisava ser feito. Por isso, no mesmo ano, se estabelece o Protocolo de Quioto, que visava uma diminuição nas quantidades de CO2 nas emissões de fábricas, indústrias e afins, organizar um mercado do carbono, e desenhar uma tentativa de uma economia verde. Porém, nada disso funcionou, o mercado de carbono, por exemplo, se tornou um grande negócio, com bancos e grandes indústrias envolvidas, e a emissão de carbono tampouco diminuiu”, explica Colacios.

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De acordo com o docente, após a vigência do Protocolo de Quioto, foram surgindo vários grupos que se posicionavam contra as informações de embasamento científico, os chamados negacionistas. Eles não atuavam pensando cientificamente, mas sim, politicamente, influenciando governos e a sociedade, em geral. No que se refere à propagação das ideias negacionistas sobre o aquecimento global, quem compactuava com tal compreensão se empenhava em divulgar nas mídias a ideia adversa de que as mudanças climáticas estavam acontecendo por outros motivos, que não possuíam relação com as ações dos seres humanos.

Os governos são imprescindíveis para a adoção de medidas que colaboram para a redução dos danos ao meio ambiente e para a conscientização coletiva a respeito disso. No entanto, alguns governantes que assumem posições-chave para decisões sobre o clima, acabaram desempenhando, também, um papel negacionista e promoveram pautas anti ambientais. Tais pautas estão sendo fatais para a questão climática, porque, além do aumento acima do esperado da temperatura planetária, há uma redução drástica no que os cientistas consideravam como o momento limite para a irreversibilidade das alterações do clima. 

“Antes, se acreditava que poderíamos chegar até 2050 e que desse período em diante nós teríamos uma não-reversão com a temperatura aumentada. Só que agora já se trabalha com o ano de 2030 como limite, ou seja, caso ultrapassemos ele sem nenhum tipo de ação, a gente vai ter uma situação irreversível pelos próximos 100, 200 anos. Tudo o que for feito depois disso não vai ter tanto efeito quanto o esperado”, informa o professor Roger. 

A partir dessas contradições e em meio à diminuição da preocupação ecológica por parte de governos e autoridades, a própria ONU promoveu eventos durante os anos 2000, tentando resgatar o clima ecológico da década anterior. A Agenda 2030 é um exemplo disso, sendo um plano de ação da Organização, que estabeleceu 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) e 169 metas. Esses objetivos deverão ser alcançados até 2030, com o intuito de orientar as escolhas dos governos e da sociedade como um todo em prol da melhoria da vida das pessoas, no momento e no futuro, bem como incentivar condutas que visem à proteção do planeta. No áudio abaixo, Débora Sant’Ana, professora da UEM, explica o que são e qual a importância dos ODS:

🎧 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU

Além dos problemas ambientais já conhecidos, como o aumento da altura dos oceanos, a desertificação, o desflorestamento, o derretimento das camadas polares, a questão climática vai acarretar, ainda, a intensificação das desigualdades ambientais. Isto é, existem pessoas que moram em lugares de risco ou em áreas em que despertam o interesse de grandes indústrias pelos recursos naturais do local. Dessa forma, o que acontece é a pressão territorial que se tem sobre essas populações, as quais precisam se submeter a trabalhos prejudiciais a elas, como em minas de carvão, ou viver em ambientes de muita poluição gerada em torno delas. A desigualdade ambiental já é real e é causada pela desigualdade social, mas irá piorar com o fator climático.

  • Tsunami em Iwate, Japão - 2011 (Mainichi)
  • Derretimento das geleiras ameaça ursos polares (Reprodução da Internet)
  • Desflorestamento na Amazônia (47º Batalhão Infantaria/Operação Verde Brasil 2)

Nesse sentido, é importante destacar que a questão do clima não é só um problema ecológico por si só, é também um grande problema social. Por exemplo, os chamados refugiados climáticos promovem um fluxo migratório motivado pelas alterações no clima da região que habitavam e que acabaram ficando impróprias para o ser humano viver. Com esses deslocamentos, ocorre o inchaço dos grandes centros, causando um aumento demográfico e isso se torna cíclico.  

“Dois pontos que precisam ser colocados é a emergência da gente se dar conta da nossa capacidade de intervenção nos ciclos naturais, mas, também, da nossa capacidade de não fazer nada para reverter isso. O antropoceno serve como um alerta para esse perigo ambiental, social e tecnológico que estamos vivendo hoje em dia, e que enfrentaremos de uma forma muito pior no futuro”, avisa Colacios. 

O professor explica que as ações de cada indivíduo em relação à preservação do meio ambiente são importantes. Contudo, a sociedade vive em uma situação na qual a indústria, o agronegócio, as tecnologias em si têm um consumo do meio ambiente que é tão forte, que mesmo que todo o planeta, todas as pessoas tivessem atitudes ambientalmente saudáveis, o que essas indústrias provocam de dano ambiental continuaria sendo bem maior. 

“A gente tem que lutar não só para que o nosso vizinho e nós mesmos tenhamos uma atitude ambiental consciente, nós temos que lutar para que o sistema produtivo também tenha uma consciência ambiental nunca tomada antes”, declara Roger. 

As sociedades modernas, para viverem de maneira confortável, ao passo que fazem o uso de tudo o que o desenvolvimento tecnológico proporciona, assumem riscos, os quais culminam no prejuízo, inclusive, do meio ambiente. Isso evidencia, ainda mais, a necessidade de uma luta coletiva, tendo em vista o aval dado ao sistema capitalista por conta do consumo e da busca por um “bem-estar” geral. 

Dessa maneira, ocorre um grande contra fluxo tanto no sentido ambiental quanto no social, já que atende aos interesses de determinados grupos da sociedade. A ONU já assumiu que a população entrará em um novo regime climático. O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 13 evidencia isso, ao estabelecer o seguinte ponto: “Adotar medidas urgentes para combater as alterações climáticas e os seus impactos”. Além do combate às mudanças do clima, a Organização ainda reitera a capacidade de resiliência e adaptação ao novo regime, assim ela não está pensando somente em como enfrentá-lo, mas sim em o que fazer quando isso acontecer. 

Tudo isso só confirma que a Ana Paula, citada no início do texto, tem razão em estar preocupada com o aumento da conta de luz e com a crise hídrica enfrentada pelo país. De acordo com o último relatório divulgado pelo IPCC, em agosto deste ano, os eventos climáticos que vêm afetando o mundo nos últimos tempos serão cada vez mais comuns e ocorrerão com ainda mais intensidade. Além disso, o estudo realizado pelo painel também prevê que o aumento da temperatura global pode chegar a 1,5 grau Celsius já na próxima década, algo que era previsto, anteriormente, para ocorrer no final do século. E assim como já alertou o professor Roger, essas alterações caminham para um ponto de irreversibilidade da situação climática e as ações que forem tomadas depois disso não terão o efeito esperado, o que ampliará ainda mais os problemas ambientais, econômicos, políticos e sociais, vividos pelas sociedades.

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Maria Eduarda de Souza e Milena Massako Ito
Edição de texto: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Milena Massako Ito
Roteiro de vídeo: Milena Massako Ito
Edição de vídeo: Thamiris Saito
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: John Zegobia
Supervisão de Arte: Thiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:


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