Hoje vamos explorar um pouco de um tema amplo que, sem dúvida, renderia uma infinidade de outras pautas superinteressantes ao C². Vamos falar sobre coleções biológicas, repositórios científicos dedicados a preservar e documentar a história da biodiversidade do nosso planeta. Além disso, destacaremos como o NAPI Taxonline, um dos Novos Arranjos de Pesquisa e Inovação do Paraná, vem fortalecendo ainda mais esse trabalho, facilitando a integração entre pesquisadores paranaenses e garantindo o financiamento necessário para suas atividades.
Mas, antes de começarmos, é importante que você compreenda primeiro o que são e para que servem esses acervos científicos. Assim, poderemos mergulhar um pouquinho na vastidão do universo de possibilidades que as coleções biológicas oferecem. E, para isso, vamos exigir um pouco da sua imaginação. Vamos lá?
Pense em um mamute. Talvez, em sua mente, você tenha imaginado um animal de grande porte, robusto, com presas de marfim, tromba e pelos. Já se perguntou como conhecemos tanto sobre esse animal, mesmo sua espécie tendo sido extinta há milhares de anos?
O Mamute-lanoso, ou Mammuthus primigenius, por exemplo, foi a última espécie de mamutes a existir no planeta. Talvez você não o conheça por esses nomes, mas é possível que já tenha ouvido falar ou visto este animal ilustrado em algum desenho ou filme, como o personagem “Manny”, o mamute do filme “A Era do Gelo”.
Embora ainda não tenhamos precisão de como esses mamíferos foram inicialmente descobertos, é inegável que uma grande parte do nosso conhecimento sobre eles só foi possível graças aos materiais genéticos encontrados pelos seres humanos milhares de anos depois, congelados e preservados pela própria natureza.
Quando encontrados, esses espécimes antigos são coletados cuidadosamente por especialistas que seguem rigorosos protocolos, os quais variam de acordo com a substância encontrada. A partir da sua identificação, se constatado de fato ser um mamute, eles são destinados para um acervo científico conhecido como coleção paleontológica, um tipo de coleção biológica responsável por armazenar fósseis e outros vestígios de organismos do passado. No entanto, essa é apenas uma das muitas coleções existentes no Brasil e no mundo, e é aí onde queremos chegar.
Uma coleção biológica é um repositório organizado de espécimes de organismos, que podem ou não estar vivos, e está concentrada, em sua maioria, em universidades, museus e instituições de pesquisa em todo o mundo. Esses espaços abrigam coleções dos mais diversos tipos, que podem variar desde um simples microrganismo, como um vírus ou bactéria, até algo grande, como um animal fossilizado. Tudo isso pode ser utilizado para fins de pesquisa e/ou didáticos.
Mas, afinal, por que é tão relevante estudar tudo isso, inclusive espécies que já não existem há muito tempo?
Como mencionado, as coleções biológicas guardam a documentação da diversidade da vida, abrangendo tanto o espaço quanto o tempo. Esses registros e dados fornecem uma ferramenta importante para que possamos entender os espécimes e os ecossistemas em que foram coletados, mesmo aqueles que, devido a alguma alteração natural ou humana, não existem mais.
A partir disso, podemos monitorar, por exemplo, se uma espécie está aumentando ou diminuindo em um determinado espaço, descobrir novas espécies e até mesmo fazer previsões climáticas. Tudo isso utilizando dados de exemplares coletados e documentados anteriormente como base para esse acompanhamento.
A Universidade Estadual de Londrina (UEL), por exemplo, destaca-se por possuir um dos maiores acervos de peixes do Brasil em seu Museu de Zoologia (MZUEL), com cerca de 23 mil exemplares. O espaço, que também conta com espécies de outros animais, é destinado tanto à pesquisa quanto à visitação de escolas e da comunidade em geral, e tem sido palco de descobertas incríveis. É o caso do professor Oscar Akio Shibatta, um dos responsáveis pela coleção que, junto à época dos pesquisadores do Museu de Zoologia da USP (MZUSP), os professores Janice Muriel e Mario de Pinna, em 2007, descobriram uma nova espécie de peixe.
Na ocasião, Shibatta foi contatado por um ex-aluno, Reginaldo Machado, hoje, biólogo e professor na Universidade Federal do Acre (Ufac), que queria encaminhar alguns exemplares de um peixe encontrado em um poço em Porto Velho-RO, na região amazônica. Em princípio, Machado havia sido acionado por uma enfermeira que acreditava ter encontrado vermes no poço, mas constatou-se que, na verdade, eram peixes.
Por conhecer o trabalho dos pesquisadores do Museu da UEL, Machado encaminhou alguns exemplares para serem analisados por Shibatta. A surpresa veio logo depois: o animal encontrado era, na verdade, uma nova espécie do gênero Phreatobius, o Phreatobius dracunculus.
Para se ter uma noção, o professor conta que a única espécie parecida com a encontrada vivia há cerca de 1800 km daquele local, na Ilha do Marajó-PA. Tratava-se do Phreatobius cisternarum, descrito há mais de um século, em 1905, pelo zoólogo suíço Emílio Augusto Goeldi.
O pesquisador conta que, até então, esse havia sido o segundo registro do gênero a ser descrito e que essa foi uma de suas descobertas mais inusitadas, e que as “informações contidas nas coleções biológicas foram cruciais para a identificação da nova espécie”.
O professor José Luis Olivan Birindelli, que compartilha das responsabilidades do museu, também foi responsável por duas descobertas mais recentes, em 2017: a do peixe brasileiro Leporinus villasboasorum, encontrado no Rio Xingu, no Mato Grosso, e uma espécie da Venezuela, Leporinus enyae. Ambas as descobertas foram realizadas em conjunto com o professor norte-americano Brian Sidlauskas, que atualmente está na UEL como professor visitante financiado pelo Programa Fulbright.
NAPI Taxonline: coleções biológicas em rede para todos
E falando do Museu de Zoologia da UEL, você sabia que ele faz parte de um projeto muito importante para a ciência envolvendo coleções biológicas?
Na ativa desde 1980, o museu foi um dos primeiros repositórios convidados, em 2005, a fazer parte do grupo de coleções da Rede Paranaense de Coleções Biológicas, o projeto Taxonline. Nos últimos 20 anos, essa iniciativa tem potencializado diversas pesquisas importantes em todo o Estado.
Com o propósito de tornar as informações contidas nos acervos biológicos do Paraná acessíveis a todos, o programa surge em 2005 com a missão de integrar os acervos científicos e aproximar os pesquisadores do estado, com o objetivo final de disponibilizar gratuitamente todas essas informações, por meio de um banco de dados digital, para qualquer um que tenha interesse em acessá-las.
O projeto foi idealizado há 20 anos, ainda em 2004, pela professora Luciane Marinoni, docente na Universidade Federal do Paraná (UFPR), que, na época, atuava como curadora da Coleção Entomológica Padre Jesus Santiago Moure. Atualmente, esse acervo é o terceiro maior do Brasil em número de exemplares e o melhor do mundo em muitos grupos taxonômicos das ordens Coleoptera, Diptera, Lepidoptera, Hymenoptera e Hemiptera.
Ao trabalhar com a coleção, ela percebeu de imediato a importância das informações depositadas nos acervos do Paraná, e a necessidade de democratizar esses dados. “Aqui no estado do Paraná, existem coleções de mais de 100 anos de idade. São informações que estão ali, acumuladas, e que precisam ser passadas para comunidade”, conta Marinoni.
No entanto, a rede, que abriga exemplares brasileiros e estrangeiros, e que, hoje, reúne mais de 50 coleções biológicas de 18 instituições conveniadas à Fundação Araucária, entre públicas e privadas em nível municipal, estadual e federal, nem sempre foi assim. Em 2005, o Taxonline estabeleceu-se oficialmente quando o programa passou a receber um auxílio concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq, por meio do Edital CT-BIOTEC/MCT/CNPq nº 021/2005, voltado especificamente para coleções biológicas.
Naquele momento, eram somente nove coleções, formadas por espécies botânicas e zoológicas, com apenas três instituições públicas envolvidas: Universidade Estadual de Londrina, Museu Botânico Municipal de Curitiba e Universidade Federal do Paraná.
Oito anos depois, com a chegada do primeiro Centro de Coleções de Culturas Biológicas do Estado do Paraná em 2013 (CMRP-Taxonline), o programa passou a incluir em sua rede também as coleções de culturas microbianas. E quem diria: anos mais tarde, com o surgimento da pandemia da Covid-19, o centro foi uma peça importante no combate ao vírus em Curitiba e no mundo.
Ao longo dos anos desenvolvendo trabalhos em cooperação e com excelência, o projeto Taxonline passou a adquirir cada vez mais influência e, em 2020, foi convidado pela Fundação Araucária, instituição de fomento à pesquisa científica do Paraná, junto a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti), a ser o primeiro Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação (NAPI) devido a sua estrutura já consolidada.
Atualmente, mais de 1.200.000 de dados de exemplares estão armazenados digitalmente e distribuídos gratuitamente em todo o mundo. Todas as informações podem ser acessadas no Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira (SiBBr), speciesLink ou Repositório Renato Contin Marinoni, todos de origem nacional, e o Global Biodiversity Information Facility (GBIF), de iniciativa internacional.
Parcerias
Sob a liderança da professora Vânia Aparecida Vicente, que também é docente na UFPR, o CMRP estabeleceu uma parceria com o Projeto da Rede Nacional Covid e Esgoto, iniciativa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), com o objetivo de identificar e quantificar amostras do vírus da Covid-19 nos sistemas de esgoto de Curitiba para descobrir, através do sequenciamento desses microrganismos, as linhagens que circularam desde o início da pandemia, em 2020.
Todo esse trabalho, assim como as espécies de peixe descobertas pelo MZUEL e MZUSP, só foi possível aos dados contidos nos acervos microbiológicos, os quais também puderam ser alimentados e ampliados nesse período.
O NAPI também estabeleceu uma parceria com a Petrobras. Reconhecendo a necessidade de profissionais capazes de identificar e preservar o espaço e o material biológico coletado em locais apropriados, a empresa percebeu a importância de apoiar os taxonomistas e os acervos de coleções biológicas, o que os levou a trabalharem juntos para preservar esses espaços.
“O objetivo é fortalecer o papel estratégico do Paraná no avanço científico e tecnológico para a conservação e uso sustentável da biodiversidade, bem como o acesso ao patrimônio genético”, afirma a Dra. Sibelle Trevisan Disaró, curadora da coleção de foraminíferos da Universidade Federal do Paraná.
Reconhecimento
De lá para cá, o reconhecimento expressivo do projeto pôde potencializar as pesquisas desenvolvidas a partir desses repositórios, beneficiando diretamente os acervos do Estado. Segundo a coordenadora geral do NAPI, Luciane Marinoni, o Taxonline deve receber, nos próximos três anos, mais de R$ 8 milhões para serem aplicados nas coleções, sendo R$ 7,5 milhões da Fundação Araucária.
O reconhecimento também possibilitou que a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), campus Campo Mourão, pudesse ampliar o espaço das suas coleções botânicas em até três vezes com a construção de um novo prédio, e não é pra menos. O curador do herbário da instituição, o professor Marcelo Galeazzi Caxambú, tem realizado um trabalho expressivo por lá envolvendo municípios da região.
Há cerca de 10 anos, o professor descobriu uma oportunidade pouco explorada por outras coleções do Paraná: o Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços (ICMS) voltado à preservação do meio ambiente, o ICMS Ecológico.
O imposto, que surgiu em 1990 como uma ideia no Paraná, tem o propósito de incentivar a preservação ambiental, oferecendo recursos financeiros aos municípios que mantêm unidades de conservação, áreas protegidas, mananciais e outros elementos que contribuam para esse trabalho. Nesse sentido, uma parcela de 5% do total do imposto arrecadado pelo estado é direcionada aos municípios registrados no Instituto Água e Terra (IAT), variando de acordo com o nível de investimento nessas áreas.
Caxambú ainda explica que, naquele período, ocorreu uma “tempestade perfeita” quando, durante uma conversa com Rubens Lei Pereira, que então era servidor do IAT, perceberam que o trabalho de levantamento de dados da flora realizado pelo herbário da UTFPR estava relacionado aos critérios de avaliação estabelecidos pelo imposto, e que isso poderia beneficiar tanto os municípios quanto a universidade.
A partir desse momento, a Instituição estabeleceu uma parceria com o IAT e as prefeituras interessadas em receber os benefícios, e começaram a buscar pelo trabalho da Universidade. O interesse dessas cidades existe porque, de acordo com o professor, muitas delas possuem um baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), ou seja, municípios que não possuem uma arrecadação expressiva do ICMS. Por isso, elas optam por contratar os serviços da universidade, que são mais acessíveis e oferecem maior confiabilidade em relação a um terceirizado. Dessa forma dão mais um passo para disputarem o imposto e obterem outra fonte de renda, que será revertida, principalmente, para a saúde e educação, visando à melhoria das condições de vida da população.
“Quando nós começamos a trabalhar com o município de Reserva de Iguaçu [no Paraná], ele tinha em 2015 uma arrecadação em torno de R$ 251 mil. Nós tivemos um contrato até 2018 ou 2019. Em 2023, saiu a tábua de avaliação para a Reserva de Iguaçu e está em R$ 7 milhões por causa do ICMS Ecológico”, conta Caxambú.
Em troca disso, a UTFPR solicita bolsas para os estudantes, docentes e servidores envolvidos, o que também não deixa de favorecer as prefeituras, já que fomentar esse tipo de trabalho conta para os critérios de recebimento do imposto.
No futuro, o NAPI Taxonline almeja, com a ajuda de Caxambú e outros pesquisadores, tornar esse conhecimento acessível a todos, permitindo que instituições que possuam coleções biológicas possam replicar essa prática em prol da preservação da biodiversidade, estabelecendo uma parceria proveitosa entre universidades, municípios e meio ambiente.
A Universidade Estadual de Maringá (UEM) é outra instituição que faz parte do NAPI Taxonline. Ela é dona de uma coleção biológica riquíssima! Confira no texto “Nossos amigos, os peixes do Rio Paraná”.
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Texto: Leonardo de Jesus e Sabrina Heck
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Arte: Mariana Muneratti
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
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A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:
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