Nossos amigos, os peixes do Rio Paraná

Às vésperas da Páscoa, pensamos e vamos mostrar aqui que esses animais são mais do que comida saborosa nos nossos pratos

Sempre me pergunto se coincidências existem ou se informações que se cruzam surgem para mexer com a curiosidade da gente. Uma bióloga que conheço há mais de 25 anos me mandou um e-mail sobre um artigo que ela junto com colegas de diversas universidades publicaram falando sobre o serviço que os peixes “prestam” para gente. Isso mesmo… a simples existência de algumas espécies e o equilíbrio delas em uma determinada localidade, um determinado ambiente beneficiam outras espécies como nós… seres humanos. 

São os serviços ecossistêmicos que os peixes nos oferecem. É essa história que vai ser o ponto de partida da reportagem de hoje. Mas, não é só isso que vamos ver. Porque, quando fui apurar este cenário todo, vi que tem gente que passa a vida tomando conta de peixes (e outros animais e vegetais) para registrar a história dos peixes nos ambientes naturais, incluindo um ambiente único do Paraná, que garante a vida e o lazer de muita gente por aí: a planície de inundação do Rio Paraná.

Mas, calma. Vou contar tudo direitinho com a ajuda, é claro, da doutora em Ecologia, Carla Pavanelli, aquela minha amiga de mais de 25 anos que me mandou o artigo, lembra? Ela faz parte da equipe do Núcleo de Pesquisas em Limnologia, Ictiologia e Aquicultura (Nupélia), da Universidade Estadual de Maringá (UEM), uma cidade localizada no noroeste  paranaense. Ela e outros colegas, alguns do Núcleo dela, publicaram o resultado de pesquisas com o título Ecosystem services generated by Neotropical freshwater fishes, traduzindo… Serviços ecossistêmicos gerados por peixes de água doce da região Neotropical.

Eu, a Maysa, minha parceira nesta reportagem, e a professora Carla conversamos sobre o conteúdo do texto e chegamos à conclusão que, quando o assunto é a importância dos peixes, logo vem à mente seu valor alimentar. Pensamos em um dourado assado, piapara recheada, caldo de piranha, traíra assada, lambari frito ou um tradicional pirarucu de casaca. Só que os peixes cumprem muitos outros papéis fundamentais para a sociedade que, geralmente, são ignorados. 

O artigo dos pesquisadores publicado na revista internacional Hydrobiologia, em 13 de setembro de 2022, vem para combater essa visão limitada. Pesquisadores de várias regiões do Brasil elaboram um apanhado dos serviços ecossistêmicos prestados por peixes de água doce de uma região que se estende desde o México até os confins da Argentina, caracterizada por abrigar a maior diversidade de peixes de água doce do planeta.

O trabalho avaliou os peixes à luz do conceito de serviços ecossistêmicos. Esse conceito considera como as espécies e ecossistemas prestam serviços à Humanidade. Como, por exemplo, prover recursos como alimentos, material e medicamentos, regular processos ecológicos como o controle de pragas ou o transporte de sementes, sustentar ecossistemas por meio da disponibilização de nutrientes e alteração física dos habitats, e inspirar a cultura por meio do lazer e tradições. Peixes são fundamentais em todos esses aspectos.

A mensagem do estudo é que “peixes de água doce provêm muito mais do que alimento. Por exemplo, a economia do município de Barcelos, no Amazonas, é movida pelo comércio de peixes ornamentais. Princípios ativos de drogas foram descobertos no ferrão de arraias e produtos usados na medicina popular são obtidos da traíra e do pirarucu. Piaus, bagres e diversos outros peixes servem de indicadores de poluição da água. Tambaquis e pacus fornecem material genético para linhagens híbridas economicamente interessantes à piscicultura”, explica um dos autores do Nupélia e respeitado pesquisador internacional, o professor Ângelo Agostinho.

  • Tucunaré
  • Curimbata
  • Piraputanga

Esses animais também sustentam processos ambientais fundamentais. Piraputangas e lambaris dispersam sementes das matas que cercam os rios. Curimbas e cascudos processam detritos e controlam explosões de algas, reciclando nutrientes como o fósforo e o potássio. Carás e bagres pequenos alimentam-se de larvas de mosquitos. Carás constroem ninhos e curimbas revolvem o fundo dos rios atuando como engenheiros ecossistêmicos. Até a formação de solos de terra preta na Amazônia pode se dever à adubação proporcionada pelos peixes mortos ali depositados nas secas. Na verdade, a lista de serviços prestados é muito diversa.

“Nosso estudo tem grande potencial de ser uma referência importante na indicação dos papéis sociais, econômicos e ambientais que os peixes de água doce neotropicais realizam. O que reflete sua relevância para a sociedade e a necessidade de medidas de conservação. Conseguimos reunir uma forte equipe de ictiólogos brasileiros, cada um contribuindo com alguns aspectos da enorme diversidade de funções que os peixes exercem. Isso foi fundamental para montar um quadro bem completo sobre os serviços prestados pelos peixes”, declarou Fernando Pelicice, professor do programa de pós-graduação em Biodiversidade, Ecologia e Conservação da Universidade Federal de Tocantins e autor principal do trabalho.

Nupélia 

Esse aspecto de atuação em conjunto e de longa duração levou nossa discussão a refletir sobre a importância do Núcleo ao qual a bióloga Carla faz parte. Há 40 anos, inúmeras vezes, um enorme grupo de pessoas se desloca para Porto Rico, cidade a 172 km de Maringá, e despende horas coletando peixes e outros organismos de diferentes locais da região. Esse ritual transformou esse grupo em verdadeiro protetor das espécies que vivem na planície de inundação do único trecho livre de barragens do alto rio Paraná. É um trabalho riquíssimo que precisa ser registrado, já que dá conta de reunir informações fundamentais sobre um ecossistema único, importante para o equilíbrio ecológico da bacia hidrográfica e para a economia da região; isto é, fundamental para garantir alguns dos serviços ecossistêmicos citados no estudo publicado acima.

Carla Pavanelli conta que é importante manter uma lupa neste ambiente, porque ele é fundamental para a reprodução de inúmeras espécies de peixes. Ela lembra que as espécies que têm mais importância comercial são as de grande porte. Estas, geralmente, são grandes migradoras, ou seja, precisam percorrer grandes distâncias para se reproduzir e realizar a piracema. Essa longa migração precisa contar com trechos de rio livres de barragens. A planície de inundação do rio Paraná tem essa importância, porque está em uma área sem barragens. No vídeo abaixo, conheça como ocorre o processo da piracema:

Lugares como o Rio Iguaçu, também no Estado do Paraná, por exemplo, apresentam um cenário bem diferente. Este é um rio encaixado, ele não tem planície de inundação, então o que acontece se você vai ao rio iguaçu para cima das cataratas… não tem jaú, pintado, dourado, porque o sistema não permite, o ecossistema não é feito para elas. No Rio Paraná, de Itaipu para cima, há poucas regiões curtas que não estão represadas por hidrelétricas.

“Desde Goiás, passando por Minas, São Paulo e aqui no Paraná é tudo uma cascata de reservatórios. Tanto o Rio Paraná como os afluentes. Poucos cursos são livres de barragem. Esse trecho em que atuamos é fundamental para fazer com que os ovos e larvas do dourado, do jaú, do pintado sejam levados pelas correntes dos rios e seus tributários e cheguem à planície para eclodir ou crescer. Se não tiver a planície, eles caem direto no Paranazão e não sobrevivem. Os peixes grandes comem, porque eles são pequenos e não têm capacidade de natação. A planície é o berçário deles. Precisa ter um determinado volume de água para ela alagar o máximo possível, assim como uma certa duração da água ali até que elas possam crescer e virar alevininhos. Aí, quando eles voltarem, também deve ser junto com a água que vem na vazante, quando a cheia diminui e traz os filhotinhos. É um processo complexo que nós conhecemos, registramos e procuramos preservar”, explica Carla. 

A bióloga acrescenta que o Nupélia é um Núcleo multidisciplinar. A equipe que atua na planície procura descrever a distribuição das espécies de todos os organismos aquáticos na região. Eles coletam juntos, nos mesmos locais e ao mesmo tempo. Por exemplo, para saber o que determinada espécie de peixe come, precisam ver o que tem no estômago, mas, é difícil saber se ela escolheu o “menu” porque tinha muita oferta… por opção, ou porque só tinha aquilo. Para Pavanelli, quando se trabalha em conjunto, tem como saber. Se for uma espécie, por exemplo, que se alimenta de inseto aquático, quem for responsável por analisar o estômago vai entrar em contato com o laboratório de inseto aquático e vão fazer pesquisas juntos. O mesmo vale para qualquer tipo de alimentação e outros aspectos da fauna e da flora. 

“Enfim, estudamos muito nesses 40 anos para poder entender esse processo, para saber como funciona, porque aí sabemos quais rios os peixes sobem para se reproduzir, que período que eles sobem. A gente sabe quanto tempo leva para as larvinhas chegarem ali, quando tempo a planície precisa ficar cheia para que elas possam crescer. Tudo isso não se faz com o estudo de uma coleta, nem de um ou dois anos de coleta. Porque os anos não são iguais, mas existem padrões sazonais que se repetem. Para isso é preciso estudar vários anos. Então, todo esse estudo proporcionou a gente ter esse conhecimento, e esse conhecimento é utilizado para determinar o período de defeso, durante a piracema, o tamanho mínimo de malha de captura, o tamanho mínimo de peixe que pode pegar na época de pesca, porque pode variar de acordo com a espécie. Preservamos os peixes. Quantas pessoas não dependem disso, o pescador, as pessoas que comem, a comunidade ribeirinha, o pessoal do turismo, as peixarias. E mais importante: a gente já conseguiu evitar que fosse construída uma barragem na nossa área de atuação, porque já tentaram muito. Lutamos nas instâncias públicas para que deixassem esse trecho livre”, detalha Pavanelli. 

Coleção

Por todos os motivos acima, Carla participa ativamente na proteção dos peixes. Atua em avaliações de espécies ameaçadas de extinção junto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), tanto em nível nacional, quanto em projetos específicos em vários estados. Também participa de Planos de Ação Nacional para conservação das espécies ameaçadas, junto ao mesmo órgão federal. 

Mas também é conhecida internacionalmente pela coleção de peixes que ela “formou” lá no Núcleo. Ela é quem toma conta da “Coleção Ictiológica do Nupélia”. O acervo reúne  mais de 20.000 lotes, cada um podendo conter de um a mais de 100 exemplares de peixes de diferentes localidades, principalmente das bacias dos rios Paraná e Paraguai, mas também de diversas outras bacias brasileiras e de outros países americanos. A maior representatividade do material inclui os estados brasileiros de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo e sobretudo o Paraná, dentre outros menos representados, totalizando mais de 600 espécies. 

Todo material está disponível para a comunidade científica. Empréstimos, intercâmbios e outras transações têm sido efetuadas com diferentes instituições do Brasil e outros países há mais de três décadas.  Ao abrir as portas do ambiente onde está a coleção para a gente, Carla Pavanelli mostrou muita emoção. Comentou sobre a história e a importância de uma iniciativa como essa para os pesquisadores atuais e futuros.

Carla Pavanelli – curadora da Coleção Ictiológica (Foto/Heitor Marcon)
🎧 A Coleção Ictiológica do Nupélia – A bióloga Carla Pavanelli fala da Coleção Ictiológica do Nupélia

Essa é a Carla que por anos junto com dezenas de alunos vem preservando espécies e, mais importante, uma área do Paraná que não tem igual por aí. O grupo, inclusive, coordena o Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação – NAPI Taxonline, que trabalha com conservação de biodiversidade, e o NAPI Biodiversidade, que transita pela Inovação em estratégias biotecnológicas. 

Enfim, tenho certeza que quando estiver saboreando seu peixinho na Páscoa, que vai chegar em breve, você vai se lembrar dessa reportagem. E, se quiser conhecer mais do trabalho da equipe do Nupélia, acesse o site do Núcleo. Em breve, comemorações vão “pipocar” por aí para marcar seus 40 anos. Parabéns, Nupélia!

EQUIPE DESTA PÁGINA
Texto: Ana Paula Machado Velho e Maysa Ribeiro Macedo
Roteiro de vídeo: Gabrielli Ferreira e Isadora Monteiro
Edição de vídeo: Luiza da Costa
Roteiro e edição de áudio: Maysa Ribeiro Macedo
Revisão: Silvia Calciolari
Arte: Hellen Vieira
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes objetivos ODS:

Igualdade de Gênero