Produção agrícola segura e sustentável?

Estudos realizados na UEM investigam a ligação entre o uso de agrotóxicos e o desenvolvimento de câncer e outras doenças

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Na cidade em que você vive existem hortas comunitárias? Elas são espaços coletivos destinados à produção de alimentos, por meio do trabalho voluntário de pessoas de uma certa comunidade ou região. Normalmente a iniciativa é da prefeitura de cada município, que, em alguns casos, destina terrenos abandonados para esse fim, ajudando a solucionar problemas ambientais e sanitários, além de trazer mais vida a certas áreas. 

Maringá, no Paraná, conta com 39 hortas comunitárias distribuídas em diferentes bairros da cidade, beneficiando muitas famílias e produzindo toneladas de alimentos orgânicos por ano. No município, os participantes do projeto podem separar parte da produção para o consumo próprio e vender o restante dos produtos para complementar a renda familiar. Os preços das verduras e legumes costumam ser mais baratos que no comércio em geral, o que beneficia também os consumidores, que podem ter acesso a alimentos de qualidade por um preço acessível.

As hortas comunitárias são coordenadas pelos próprios moradores. Aqueles que tiverem interesse em participar do projeto devem procurar a horta mais próxima e verificar se existe disponibilidade de espaço. Caso não haja vaga no momento, a pessoa fica em uma lista de espera e assim que alguém abrir mão de seu canteiro, ela poderá assumir a produção daquele local. Pessoas em situação de vulnerabilidade possuem prioridade na lista. Ajudando na manutenção do espaço, a prefeitura da cidade fornece mudas e composto orgânico, além de assistência técnica e vistorias para verificar o trabalho.

A técnica em enfermagem Juventina Fatima Thomaz, também conhecida como Tina, é uma das moradoras de Maringá que participa ativamente do projeto das hortas comunitárias. A paixão por mexer com a terra a fez buscar um canteiro na horta de seu bairro para cultivar hortaliças, legumes e algumas frutas, como morangos. Com a ajuda da filha, Juliana Thomaz Neves, ela cuida do espaço e ainda garante alimentos frescos e de qualidade em suas refeições.

Para que o projeto funcione, Tina conta que existem algumas regras a serem seguidas para manter o seu espaço nas hortas comunitárias. “Cada um precisa cuidar do seu canteiro, não pode mexer no local dos outros. Além disso, não pode deixar a caixa d’água aberta, por conta do mosquito da dengue e também precisa manter essa caixa limpa. Não pode deixar o canteiro abandonado, sem regar e com mato grande, caso isso aconteça, o morador pode perder seu espaço na horta. Ademais, é necessário cuidar do recinto como um todo, por exemplo, carpir os lados que servem de passagem. É proibido plantar vegetações que cresçam acima de um metro e meio, pois elas fazem sombra no outro canteiro, o que prejudica outras plantas. Tem que ser tudo baixinho”, explica ela. 

Uma das regras mais importantes do projeto é que não se pode usar agrotóxicos. Todos os produtos utilizados, químicos ou não, precisam passar pela supervisão do administrador da horta, que diz se você tem ou não a permissão de utilizar certas substâncias em seu canteiro. Alguns elementos com ação de pesticida podem ser usados na eliminação de lesmas e outras pragas, porém são indicados produtos naturais que também cumprem esse papel, como babosa, mamona, entre outros. Se o participante usar algum agrotóxico ou veneno, ele perde o direito ao seu canteiro. 

Com essas regras, Tina destaca os benefícios de saber a procedência dos alimentos que estão sendo consumidos por ela. “É muito bom para a saúde. Eu senti que o meu organismo apresentou grande melhora, já que é outra coisa comer verduras todos os dias, ainda mais essas que eu planto lá na horta. É uma bênção porque você sabe que não tem nada de agrotóxicos”, declara. 

Estudos dentro da universidade

As hortas comunitárias são um ótimo exemplo de agricultura sustentável e que não coloca em risco os produtores e consumidores pelo uso de agrotóxicos. Porém, isso nem sempre é possível. A farmacêutica com doutorado em Ciências Biológicas, professora Simone Aparecida Galerani Mossini, do Departamento de Ciências Básicas da Saúde (DBS) da Universidade Estadual de Maringá (UEM), é coordenadora do projeto “Monitoramento da Exposição Ocupacional”, que estuda os riscos que os trabalhadores rurais, principalmente os da agricultura familiar, estão expostos durante o trabalho por conta das substâncias químicas.

Professora Simone Aparecida Galerani Mossini (com a bolsa na mão), parte da equipe do Laboratório de Toxicologia e técnicos do Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR-Paraná) no evento de Educação em Saúde para os Trabalhadores Rurais (Foto/LATOX)

O trabalho com esse tema se iniciou há mais de uma década com a professora Paula Nishiyama do Laboratório de Toxicologia (LATOX) da UEM. Você pode encontrar mais sobre esse projeto na matéria “Saúde do campo até a mesa”, disponível aqui no C². Os agrotóxicos são bem conhecidos em função de sua capacidade em aumentar a produtividade e controlar as pragas. Por isso, o seu uso é essencial para determinadas culturas. “Porém, já existem estudos que comprovam as propriedades carcinogênicas e/ou mutagênicas em alguns agrotóxicos, então, esse papel tóxico e os efeitos adversos deles à saúde humana ainda continuam a ser investigados”, explica Simone Mossini.

Essa investigação é algo que muitos pesquisadores têm procurado fazer, inclusive a professora Simone que possui uma parceria com a bióloga e doutora em Ciências Biológicas, Alice Maria de Souza Kaneshima, também docente da UEM, no DBS. Ela é coordenadora do projeto de extensão “Campanha Educativa para Conscientização e Prevenção do Câncer”, que surgiu em 2016. A área da professora Alice é a Patologia e nela se trabalha muito com doenças crônicas não infecciosas, como o câncer, e o modo que suas ocorrências estão relacionadas aos hábitos de vida.

“Modificando os hábitos de vida de uma população, é possível diminuir muito a incidência dessas doenças. Nossa linha de pesquisa está relacionada ao câncer. Começamos a trabalhar com a mudança de hábitos de vida na prevenção, pois sabemos que alguns tipos de câncer estão associados com a questão genética, mas a grande maioria dos casos estão relacionados com esses hábitos de vida”, conta Alice Kaneshima. Na vida dos agricultores, uma dessas práticas pode ser a exposição a agrotóxicos, por isso as professoras estão unindo forças nas pesquisas. 

Professora Alice Maria de Souza Kaneshima (à esquerda) com uma aluna do Laboratório de Toxicologia, no evento de Educação em Saúde para os Trabalhadores Rurais (Foto/LATOX)

Mas, a ligação entre o uso de agrotóxicos e o surgimento de alguns tipos de câncer não é uma tarefa simples de ser comprovada. “É uma questão delicada, porque logicamente existe um interesse econômico e reconhecemos isso. Porém, vemos que no mundo todo já existem estudos sobre esse tema e todos eles dão uma resposta única de que existe uma relação direta entre esses fatores. Nas próprias embalagens desses produtos têm uma caveirinha alertando para o fato de serem tóxicos. Agora, em termos laboratoriais, científicos, essas substâncias são classificadas como genotóxicas, e, como a professora Simone já adiantou, elas podem ter o potencial de serem carcinogênicas, ou seja, serem capazes de desenvolver o câncer”, explica Alice Kaneshima. 

Nesse estudo em parceria, as professoras têm avaliado as ações dos agrotóxicos diretamente com os agricultores, para avaliar a ocorrência de alterações orgânicas e anormalidades. Alguns estudos citogenéticos e moleculares realizados por elas têm mostrado que existem anomalias, mas ainda é preciso ir além no trabalho para afirmar qualquer coisa, pois o câncer é multifatorial. “Além disso, o desenvolvimento do câncer depende de etapas e nós sabemos que em algumas o agrotóxico é fundamental para que aconteça. Agora, será que ele está presente em todas? Isso que os estudos estão tentando esclarescer”, afirma a professora Alice.

A exposição aos agrotóxicos 

A literatura científica demonstra que a exposição insegura aos agrotóxicos podem causar uma série de doenças. “São vários fatores que influenciam isso, como o tipo de produto e da quantidade que foi utilizado, o grau de toxicidade do produto, o tempo que o agricultor ou o indivíduo ficou em exposição a esse composto, se é uma exposição crônica ou não. Toda essa questão do desenvolvimento de doenças ao longo do tempo, relacionada a essa exposição, é algo comprovado por vários relatos na literatura”, explica a professora Simone.

“No caso do trabalhador rural, essa exposição vai acontecer conforme ele vai manipulando o produto, seja no contato com a pele, por meio da inalação, no momento que ele está pulverizando, individualmente com aqueles equipamentos intercostais ou então na hora de preparar o produto para colocar no trator”, detalha Simone Mossini.

Na pulverização aérea, além do contato de quem prepara o produto, também pode haver exposição por contaminação ambiental, pois esse composto pode ser espalhado pelo ar, afetando a população que está no entorno dessa cultura. São várias vias de introdução dos agrotóxicos no organismo, por isso as professoras buscam sempre divulgar os modos mais seguros para manipular o produto, como o uso de equipamento de proteção. No vídeo abaixo, confira como os agricultores e a população podem se proteger dessas substâncias:

Apesar desses cuidados existirem, a professora Simone destaca que o uso do equipamento de proteção é uma dificuldade no setor, por conta do cenário brasileiro. “Nós temos uma temperatura elevada, dificuldades culturais de entendimento e isso vai dificultando a proteção do trabalhador e da comunidade que vive no entorno em relação a essa exposição”, explica ela. Nesse sentido, Alice Kaneshima também acrescenta que precisamos lembrar que essa população é vulnerável em todos os sentidos, seja pela falta de conhecimento ou a dificuldade econômica para adquirir esses equipamentos de segurança. Por isso, ela enfatiza a importância de estar levando essas informações até eles de uma maneira acessível.

Outro ponto importante da exposição aos agrotóxicos é o fato dos agricultores usarem várias substâncias dessas em conjunto, em uma situação de combinação de compostos, para um potencializar o efeito do outro. “Às vezes, nós analisamos eles separadamente um do outro e, assim, vemos o efeito de determinada substância para podermos dizer que ele pode ser usado em tal dosagem. Mas, na hora que esses agrotóxicos são colocados juntos, nós não temos informações sobre os efeitos que essas misturas podem causar”, explica a professora Alice.

Produtor rural fazendo uma mistura de agrotóxicos (Foto/Revista Campo e Negócios)

Nesse assunto, Simone Mossini enfatiza que o problema é a longo prazo. “Hoje é aplicado um ou mais fungicidas, amanhã um inseticida, no outro dia é outro produto. Então, no decorrer da sua vida de trabalho, o agricultor vai se expondo a vários tipos de compostos químicos. Essa combinação também dificulta a análise, pois eu tenho que associar não só ao fungicida ou ao herbicida, mas a todos. E essa mistura pode estar causando e contribuindo para que essa situação exista”, acrescenta ela.

No organismo, os agrotóxicos são absorvidos e podem promover alterações na molécula de DNA, assim eles podem provocar várias alterações, quebras e mutações nesta molécula. Existem algumas substâncias denominadas como genotóxicas que funcionam como iniciadores, ou seja, causam aquela primeira lesão. A partir desse momento, as reações vão acontecendo simultaneamente, até mesmo por ações de outros elementos. E é essa somatória de exposições e alterações na molécula de DNA que leva ao surgimento de doenças.

A professora Alice também aborda a questão do efeito tardio, pois existem algumas substâncias que são silenciosas e não apresentam efeitos por um longo período. “De repente, a pessoa começa a manifestar alguns sintomas, como é o caso das doenças neurodegenerativas. Aí, você vai fazer um levantamento de quais foram as substâncias tóxicas que essa pessoa entrou em contato e observa que a grande maioria delas estava envolvida, por exemplo, com agrotóxicos. É a partir de estudos assim que nós vamos obtendo respostas, mas é algo complicado porque, como eu falei, é multifatorial”, diz ela.

Estudos realizados no mundo inteiro vem demonstrando que os tipos de câncer mais comuns nessas populações expostas aos agrotóxicos são os do tipo hematopoiéticos (leucemias e linfomas). Outros que aparecem com certa frequência são os cânceres relacionados às gônadas, no caso o ovário e o testículo, e também são encontradas muitas ocorrências de câncer de mama e de próstata.

A exposição aos agrotóxicos também pode estar relacionada com casos de infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade e desregulação hormonal, que são situações que podem estar relacionadas com o desenvolvimento de algumas doenças crônicas e neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer. 

Além disso, Alice Kaneshima destaca a dificuldade dos produtores rurais em reconhecerem os sintomas. “Quando eles passam agrotóxicos e sentem dor de cabeça ou uma tontura leve, eles não procuram ajuda e acham que aquilo é algo que aconteceu naquele momento e não está relacionado àquela situação. É preciso ficar alerta em qualquer sintoma, por menor que ele seja”, avisa ela.

A saúde do trabalhador

A professora Simone chama a atenção para a saúde do trabalhador. Afinal, eles precisam de produtividade para lucrar economicamente com essa atividade e garantir sua renda. E não só o pequeno, mas também o grande produtor, pois eles sobrevivem disso. “Mas se a gente deixar de lado o aspecto da saúde, as perdas econômicas vão ser muito maiores a longo prazo comparadas ao bem estar e a qualidade de vida dos produtores rurais. Então, são coisas que têm que existir e caminhar juntas. Se eu preciso usar a substância para controlar a praga, ela precisa ser utilizada de maneira segura. Não podemos esquecer de quem está ali no campo trabalhando e produzindo alimento para toda a população. Principalmente na agricultura familiar, que é o nosso foco e traz uma população mais vulnerável e que carece muito dessas orientações”, explica. 

No Brasil, a agricultura é muito relevante no desenvolvimento da economia, mas a professora Alice ressalta a falta de uma preocupação efetiva dos órgãos responsáveis para práticas mais sustentáveis, apoiando a agricultura familiar com informações e recursos necessários. No entanto, “Muitos agricultores têm a falsa percepção de que talvez seja mais fácil você ir por esse caminho de passar o agrotóxico e resolver o problema. Mas nós precisamos pensar nessa cadeia alimentar toda que está envolvida e na saúde da população. É preciso ter um olhar mais voltado para essa agricultura.”

Se esse cenário não mudar, a tendência é o aumento no uso dessas substâncias químicas, pois as pragas vão ficando resistentes e se faz necessário aumentar a dosagem dos agrotóxicos para combatê-las. “Elas ficam mais resistentes, mas o indivíduo vai ficando cada vez mais frágil e passível dessa cascata de reações por conta da crescente exposição a esses compostos, que abrem caminhos para o desenvolvimento de doenças”, acrescenta Alice Kaneshima.

Para Simone Mossini, a pesquisa é uma grande aliada nessa mudança de mentalidade em relação ao uso de substâncias químicas. “Precisamos gerar uma preocupação voltada ao uso exagerado de agrotóxicos, para que essas situações sejam modificadas. Por exemplo, é necessário desenvolver equipamentos de proteção que sejam adequados ao ambiente no Brasil? Sim! Quem que vai fazer isso? A pesquisa. Preciso de alternativas para compostos muito tóxicos? Sim! Quem que vai fazer isso? A pesquisa”, enfatiza.

Sabemos que no sistema capitalista a sociedade busca muito mais o lucro na maioria das situações, o que não favorece projetos como os desenvolvidos pelas professoras. Afinal, que tipo de lucratividade se tem investindo na saúde do trabalhador? A curto prazo, nenhum. Porém, ao longo do tempo essas ações podem reduzir o índice de doenças, diminuir internações hospitalares e despesas com tratamentos e medicamentos, o que não só representa menor gasto de dinheiro público, como também maior qualidade de vida dessa população, algo que é ainda mais importante.

O conhecimento também desempenha um papel essencial no combate a essas doenças, pois as pessoas precisam conhecer os riscos a que estão sendo expostas, para saberem como agir e as formas de se protegerem. E não tem como elas fazerem isso sem acesso a informações. Por isso, o Conexão Ciência também preparou uma temporada de podcasts sobre o uso de agrotóxicos e os impactos causados à saúde humana. Não deixe de conferir o “Conexão Agrotóxicos”!

Glossário

Carcinogênicas: propriedades químicas, físicas ou biológicas que podem causar câncer.

Mutagênicas: agentes capazes de provocar uma mutação de origem física, química ou biológica.

Citogenéticos: estudo dos cromossomos.

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Texto:
Milena Massako Ito
Colaboração: Gabriel Vieira dos Santos e Gabrielli Ferreira
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Silvia Calciolari
Edição de vídeo: Luiza da Costa
Arte: Lucas Higashi
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

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