A incrível jornada do Português: descubra os caminhos do idioma

Os lugares e as práticas da Língua Portuguesa

No dia 5 de maio, comemora-se o dia mundial da Língua Portuguesa. E nós estamos aproveitamos a ocasião para mostrar o que a Ciência sabe e o que não sabe – e anda querendo saber – sobre a língua a Língua Portuguesa. Se você não leu o texto “Uma língua de muitas histórias” publicado anteriormente, aqui no Conexão Ciência, não deixe de fazê-lo. Vai mergulhar na História do surgimento da língua que é também a língua oficial do Brasil, Portugal, Moçambique, Angola, Cabo Verde, dentre outros países.

Países em que o português é a língua oficial (Reprodução/The Fools)

Bem, no texto anterior contamos todo o percurso que resultou na formação do Galego-Português lá por volta do Século XII ou XIII. Depois falamos que processos de variação e de mudança linguística, presentes em qualquer língua humana do planeta, também determinaram que o Galego se separasse do Português. Isso foi também favorecido pela anexação da Galícia ao que hoje conhecemos como Espanha.

Hoje, vamos nos dedicar a contar um pouco sobre o percurso da língua após o início da era dos “descobrimentos”, momento no qual o Português sai da Península Ibérica e chega à América, à Africa e à Ásia.

Para determinadas propostas de periodização da língua, por volta do Século XVI, período em que os Portugueses chegam ao Brasil, temos o chamado “Português Clássico”. Esse Português, bem mais próximo do Português que conhecemos hoje, tinha diferenças significativas para o Português Arcaico que marcou o período medieval. Por exemplo, no Clássico os falantes abandonaram formas como “ende” e “hi”, que foram substituídas por “daí” e “aí” que nós usamos até hoje. 

Também a conjunção “porém” que era usada no Arcaico como se fosse “por isso”, ganhou um valor adversativo no Clássico. “O quê? ‘Porém’ significava ‘por isso’ na fase arcaica da língua? Mas como é que ganhou esse sentido? Parece que virou o contrário do que era!” Isso mesmo, leitor atento! Foi exatamente o que aconteceu! Essas alterações, às vezes, acontecem na História da língua; um elemento ganha um valor negativo, diferente do que tinha. Isso aconteceu porque quando “porém” tinha o sentido de “por isso” deve ter sido usado muitas vezes em frases negativas pelos falantes. Com o tempo, o valor da negação foi transferido para o item ‘porém’. Aliás, isso aconteceu também com o “mas” que tinha um sentido exclusivamente de adição no passado da nossa língua. “Adição?”. Sim, leitor, “mas” era “mais”! 

Retomando a nossa narrativa, foi esse o Português Clássico que foi trazido pelos portugueses nas Caravelas chefiadas por Pedro Álvares Cabral. Ao avistar as terras, talvez o marujo de Cabral tenha gritado “terra à vista!” e quando disse “vista” não fez um “s” chiado como fariam atualmente em Portugal. Espera, porque o leitor incrédulo agora está se perguntando: “Como é que é? Não chiou o “s” como faz hoje um português?”. Não. Nem disse “esta terra é muito verd” sem o “e” final, como diriam hoje em dia lá em Lisboa. É que essas mudanças na fonética do Português de Portugal só foram implementadas lá durante o Século XVII e não atingiram o Português Brasileiro da mesma maneira.

Aqui no Brasil o “s” chiado só é predominante em lugares que receberam grande afluxo de imigrantes portugueses ou açorianos mais recentemente. E, em geral, os brasileiros pronunciam todas as vogais finais. Isso significa que aqui se preservou esses aspectos do Português Clássico que foram depois alterados em Portugal, onde a língua, claro, também é marcada por variação linguística e está sujeita às mudanças. Outras alterações, no entanto, ocorreram por aqui no Brasil, mas antes de falar delas vamos contar um pouco do processo de expansão da Língua Portuguesa em terras brasileiras.

Durante toda sua História por aqui, o Português sempre encontrou o que os estudiosos chamam de contexto de “multilinguísmo”. Isso significa que a língua portuguesa sempre esteve em contato com outras línguas, a partir das quais, pode se enriquecer, mas também rivalizar. O processo de imposição do Português como língua das maiorias dos brasileiros foi lento e marcado por muitas violências e silenciamento, do ponto de vista das demais línguas que aqui existiam. Mesmo nós, apaixonados pela Língua Portuguesa, temos que reconhecer esse lado triste da História Linguística de nosso país.

Ao desembarcar aqui com os primeiros colonos, o Português encontrou algo em torno de 300 línguas indígenas, pertencentes a dois grandes troncos linguísticos: o macro-tupi e o macro-gê. O número total de falantes dessas línguas naquela época é desconhecido, mas deveria gerar entre 1 e 6 milhões de falantes. Imaginem só, gente, a língua dos colonizadores europeus estava em ampla desvantagem numérica nos primeiros séculos da colonização!

Na realidade, o empreendimento colonizador adotou uma “língua geral”, baseada em língua indígena do tronco macrotupi, para realizar suas ações de colonização. Um dos braços da colonização, os jesuítas, lançaram mão dessa língua geral para evangelizar os indígenas nos aldeamentos. Em suas escolas, eles ensinavam em língua geral e não em Português. É provável que os bandeirantes usassem também essa mesma língua em suas ações pelo “sertão”, quando estavam em busca de metais preciosos ou de aprisionamento de indígena. Há quem defenda que esses paulistas, muitos dos quais formavam famílias com mulheres indígenas, usavam essa língua geral no seu dia a dia e que seus filhos não tinham o Português como língua materna. Mas também há estudos que contestam essa versão.

Essa língua geral colonial, que não foi a única a ser usada no Brasil – ainda hoje há a língua geral amazônica que chamamos de Nheengatu – foi proibida de ser usada como instrumento de colonização na metade do Século XVIII, pela edição do Diretório dos Índios. Esse documento determinou que o Português se tornasse a única língua a ser usada nas escolas por aqui. Muitos consideram esse fato como determinante para que as línguas indígenas começassem a sofrer com a imposição do Português no Brasil. Mas não há consenso sobre o quanto isso de fato colaborou para esse processo.

Nheengatu, língua geral amazônica (Arte/Paola Saliby)

Certo é que, mais do uma imposição pela lei, o instrumento silenciador das línguas indígenas no Brasil foi a violência contra os povos indígenas. Assim, o genocídio desses povos, ocorrido desde o século XVI – e que tristemente ocorre até hoje -, pode ser colocado como o grande fator para explicar a situação delicada que essas línguas vivem no Brasil. Devemos lembrar que essa população foi gradativamente sendo reduzida, seja pelo seu assassinato, seja pela enorme quantidade de doenças que a colonização trouxe para cá. Com a morte desses falantes, matou-se também inúmeras línguas indígenas. O resultado é que hoje restam cerca de 150 línguas (uma redução pela metade do cenário pré-colonização), sendo que boa parte dessas línguas encontram-se em situação de risco de desaparecimento breve.

Do contato com essas línguas indígenas, o Português no Brasil muito se enriqueceu. Palavras como “pipoca”, “mandioca”, “caipira”, “tapioca” – e muitas outras -, têm origem no tupi e foram largamente incorporadas a Língua Portuguesa. Aliás, a palavra “jaguar” – que dá nome a uma marca de carro de luxo e a um animal – é também é de origem tupi! “O quê? O tupi forneceu uma palavra para um carro tão chique?”. Sim, era na verdade “iaguara” que significava “onça” e foi incorporada por diversas línguas, não somente pelo Português.

Mas o cenário de multilinguísmo enfrentado pelo Português por aqui não se restringia apenas às línguas indígenas. As línguas africanas também aqui aportaram em função da escravidão, um dos pilares do sistema colonial lusitano. Esse processo trouxe para cá, durante todo o período de colonização, cerca de 18 milhões de africanos, segundo uma das estimativas de historiadores!!! Isso mesmo, gente demais, né! Com eles, vieram línguas de basicamente duas famílias linguísticas: o Cua e o Banto. Os traficantes dessa gente escravizada misturavam nos navios negreiros falantes de diferentes línguas para evitar que eles pudesse se organizar para resistir à situação criminosa na qual foram inseridos. Nas senzalas, essa mistura era mantida pelos fazendeiros pelo mesmo motivo. Essa situação deve ter favorecido a criação de línguas crioulas que permitissem a comunicação entre os escravizados. Alguns dos quilombos que chegaram ao nosso tempo mostram o que sobrou desses falares. Assim, o cenário linguístico colonial foi marcado não somente pela presença de línguas africanas em solo brasileiro, mas também de línguas crioulas criadas da mistura dessas línguas. 

É inegável que durante o período colonial a maior parcela da população do Brasil era constituída por africanos e seus descendentes. Então, o leitor deve concluir que o Português Brasileiro deve ter sido fortemente influenciado por tais línguas. No acervo de palavras da Língua Portuguesa, o léxico, é fácil comprovar isso, percebendo os inúmeros vocábulos com origem nas línguas africanas, como “cafuné”, “axé”, “calombo”, “camundongo”, “fubá”, etc.

Mas a questão do contato das línguas africanas com o Português levou a uma das controversas bem apaixonantes no palco da Ciência linguística brasileira. Trata-se da questão da origem do Português Brasileiro. Uma das hipóteses sustentadas por alguns pesquisadores dá conta de que o Português do Brasil, este que vemos em uso na oralidade, não teria sua origem na língua da Península Ibérica. Teria surgido como uma língua crioula, formada da mescla do Português – que forneceu seu inventário de palavras – com línguas africanas que teria cedido sua gramática. Um estudo da década de 1980 efetuado por Gregory Guy tentou sustentar isso, ao sugerir que a forma como o Português Popular do Brasil faz a concordância nominal (em, por exemplo, “Os menino”) segue a regra de línguas africanas que deixam no plural apenas o artigo. Mas pesquisa realizada Fernando Tarallo rebateu esse argumento, mostrando que se assim fosse o Português do Brasil estaria se aproximando do Português de Portugal, língua do dominador, como ocorrere, via de regra, com as línguas crioulas. No entanto, Tarallo argumenta que é a tendência ao distanciamento o que mais chama atenção quando comparamos a língua de Portugal com a nossa. 

Opondo-se a hipóteses de uma origem crioula do do Português Brasileiro, temos outra linha de pesquisa. Pesquisadores como Antony Naro e Martha Scherre sustentam que o Português Brasileiro é fruto de uma “deriva” do Português da Península Ibérica, ou seja, derivou desse português, sim. Fatos linguísticos como a concordância nominal e verbal variável do Português Brasileiro (“Os menino” e “Nós ama muito”) encontrariam sua origem não nas línguas africanas, mas no Português dialetal de Portugal, onde nunca se tornaram frequentes. Aqui no Brasil, a grande quantidade de falantes de diversas línguas favoreceu que essas formas linguísticas raras em Portugal pudessem se expandir na boca de nossa população.

Origens do Português Brasileiro, livro de Antony Naro e Martha Scherre (Reprodução)

Uma outra hipótese, que podemos considerar intermediária, é a sustentada hoje por pesquisadores como Dante Lucchesi. Para o pesquisador, embora o Português Brasileiro não seja fruto de um crioulo, é resultado do que chama de “transmissão irregular” da Língua Portuguesa. Em seu argumento, o Português que se expandiu no Brasil tem origem em um aprendizado da língua por africanos escravizados, que transmitiram o que sabiam para seus descendentes. Seus filhos tiveram um maior contato com a Língua Portuguesa falada pelos colonos europeus, de modo que passaram a falar de modo diferente dos seus pais, sem, no entanto, aplicar as mesmas regras gramaticais usadas pelos portugueses que aqui moravam. Isso teria resultado, então, no nosso Português popular, que seria fortemente influenciada pelas línguas africanas.

Mas a História do contexto de multilinguísmo da Língua Portuguesa no Brasil não para por aí. O Português manteve contatos com outras línguas ao longo de sua história no Brasil desde o século XVI. Uma história de contatos bem intensa ocorreu justamente com o fim do trabalho escravo no final do século XIX. Inspirados por ideias de branqueamento de nossa população, o Estado brasileiro estimulou e patrocinou a vinda de imigrantes europeus e asiáticos. Muitas cidades brasileiras se formaram a partir desses processos imigratórios. E boa parte dos centros urbanos existentes naquela época foi inundada por portugueses, espanhóis, italianos, alemães, poloneses, etc. Por exemplo, ao final do Século XIX a cidade de São Paulo tinha mais estrangeiros que brasileiros. Essas línguas puderam novamente enriquecer o inventário de palavras do Português Brasileiro (acrescentando vocábulos como “pizza”, “muçarela”, “sashimi”, etc), mas muito se discute sobre suas possíveis contribuições para a gramática da língua que usamos. 

Como a maior parte dos imigrantes que aqui chegaram nesse período era gente simples, de poucos recursos, tiveram intenso contato com o Português falado pela camada popular brasileira. Seus descendentes, quando aprenderam a nossa língua, ajudaram a expandir usos tipicamente brasileiros, por causa disso.

Por outro lado, é preciso dizer que tais línguas foram aos poucos sendo também sufocadas pelo Português, de modo que os descendentes de tais imigrantes foram, aos poucos, esquecendo as línguas maternas de seus antepassados, passando a adotar integralmente o Português. Um dos aliados desse processo foi a proibição, na época do Estado Novo de Getúlio Vargas, do uso de tais línguas nas ruas das cidades e nas escolas das comunidades de imigrantes, onde passaram a ensinar seus filhos a ler e escrever exclusivamente em Língua Portuguesa.

Mas leis como estas não seriam suficientes para explicar a imposição do Português sobre todas essas línguas que mencionamos. Como essa hegemonia se deu? Oras, a Língua Portuguesa era e é, no Brasil, a língua de poder. Sua imposição se aproveitou de todo o processo de ocupação do espaço territorial brasileiro, ocorrido desde o século XVI, feita como dissemos na base da força. Aproveitou-se também, a partir principalmente do século XIX e XX, da constituição de uma rede urbana vigorosa que ajudou a difundir o uso do Português. No espaço da cidade, diferentemente do campo, as redes de relações e contatos sociais se tornaram muito intensos e se alguém quiser partilhar de algum poder deveria, no Brasil, falar Português. 

Por fim, podemos contar algumas diferenças rápidas entre o Português Brasileiro e o Português de Portugal. Como se sabe, do ponto de vista fonético – do sotaque perceptível – as duas variedades são bem distintas. Mas há algumas diferenças gramaticais também. Em Portugal, o uso de “você” é bem restrito e usado para interações formais; é o pronome “tu” que marca informalidade e proximidade dos falantes. Se aqui nós adoramos, na oralidade, colocar sujeitos pronominais em nossas sentenças – note que falamos repetidos pronomes “eu” em frases como “Eu adoro ir ao cinema. Eu, sempre que posso, vou. Eu ontem iria, mas eu tive um problema” -, em Portugal a regra é evitar tais pronomes (“Adoro ir ao. Sempre que posso, vou…). Também usamos o pronome demonstrativo “esse” no lugar de “este”, fazendo inclusive combinações estranhas para um português como “esse aqui”. E por aí vai.

Algumas palavras diferentes entre o Português Brasileiro e o Português de Portugal (Reprodução/Aquila Oxford)

“Bom, professor, e hoje quem é o país mais importante para a Língua Portuguesa?”. Essa pergunta não tem resposta. Cada país tem o seu papel, não é?! Mas, hoje, o Brasil é, do ponto de vista numérico, o maior país de Língua Portuguesa do mundo. São cerca de 200 milhões de falantes brasileiros contra 10 milhões de portugueses. 

Para todos os falantes de Português do mundo, a língua portuguesa é instrumento de trabalho, meio de interação social, refúgio para expressar sonhos e desejos, além de ser, instrumento de resistência e de construção de suas identidades. Só esse fato bastaria para dizer que é fundamental estudar nossa língua com o olhar curioso de um cientista.

Sobre o autor do texto:

Hélcius Batista Pereira é Doutor e Mestre em Filologia e Língua Portuguesa pela USP, docente e pesquisador do Departamento de Língua Portuguesa e do Programa de Pós-graduação em Letras da UEM, coordenador do Mastigando Letras (projeto de extensão com objetivo de popularização dos conhecimentos e pesquisas da área de Letras).

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Hélcius Batista Pereira
Revisão: Ana Paula Machado Velho e Noth Camarão
Arte: Any Caroliny Veronezi
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior


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